quarta-feira, 15 de setembro de 2010

O TIGRE VOADOR



Foi no tempo da guerra. Colecionávamos figurinhas “Asas da Vitória”, que vinham nuns tabletes de chocolate deliciosos. É claro, havia as fáceis, aquelas que saíam a toda hora, e as difíceis, praticamente impossíveis de sair, e que valiam vinte ou trinta das outras, na troca. Eu vivia juntando as duplicatas para tentar trocar com quem as tivesse. Fernando estava também colecionando, para dar para um filho dele, no futuro. Cada chocolate que ele mandava eu comprar, dava outro para mim. Nunca teve filhos e eu nunca soube que fim levou a coleção dele. Era outra que hoje valeria um bom dinheiro.
Um dia, tirei o número um, o Tigre Voador ! Era um caça que tinha uma boca de dentes de tubarão na ponta da hélice. Não sei porque se chamava Tigre Voador, se os dentes eram de tubarão.
Eu não podia acreditar ! Com 400 réis, apenas, tirei a figurinha que valia uns cinco mil réis ! Lembro-me que naquela noite não jantei. A comida não descia. Fiquei sentado no meu lugar, olhando para a figurinha apoiada no copo, na minha frente, embasbacado.

Suco de Uva - 600 Réis
Um dia fomos, eu e Alceu, à praia de Copacabana, com meu pai. Não preciso dizer que inteiramente vestidos, com sapatos e meias. Na saída, paramos para tirar a areia dos pés, na calçada, ao lado de uma carrocinha de suco de uva. Eu sabia ler há pouco tempo, e resolvi usar um estratagema. Comecei a ler o letreiro em voz alta, várias vezes : “Suco de uva - 600 réis”, para ver se o Chiquito - como a gente o chamava - se tocava. Não adiantou nada. Voltamos com sede para casa. Só aí revelei o meu falhado truque. Ficou sendo um desses ditos de família. Até hoje se repete a frase, quando se sugere sutilmente algo e não se consegue.

Os Sorvetes do Francisquinho
Na rua General Canabarro, pros lados do Colégio Militar, tinha a sorveteria do Francisquinho. Era uma festa quando sobravam cem ou duzentos réis do meu escasso dinheiro. Cem para o picolé, dos redondos, que o retangular era mais caro, ou duzentos para a casquinha. Eu gostava de ver a máquina rodando, misturando a massa do sorvete, que era feito ali, na cara da gente. Ao lado, tinha a barbearia. Davam-me quatrocentos réis - aquela moeda enorme, quase do tamanho da minha mão - para eu cortar o cabelo, à la “Príncipe Danilo”. Era a conta, não tinha troco. Quando eu acabava, entrava na sorveteria e ficava só olhando para dentro da misturadora de fazer os sorvetes. Olhando e mais nada. Um dia me deram uma moeda de quinhentos réis. Não precisa dizer que com o troco comprei um picolé. De uva. Gostava do de uva, porque eu dava um chupão mais forte e ele ficava todo branco. Gelo puro.
Num dia daqueles de calor de 40 graus, Júlia me levou para tomar um sorvete. Quando atravessávamos a rua General Canabarro, pisei no trilho do bonde. Ele estava tão quente que queimou a sola do meu pé. Voltei dali mesmo, chorando, no colo da Júlia. Naquele dia não teve sorvete.

Soí
Esse era diferente. Era um negro que se vestia todo de branco, de torso também branco na cabeça, que servia para apoiar um caixote de sorvete quadrado, que segurava por uma alça. Cada dia com um sabor diferente. Não tinha escolha, era só aquele. Uma delícia. Era uma festa quando ele passava, à noite, depois do jantar, e Chiquito mandava arriar a caixa. Era casquinha pra todo mundo, que ele servia generosamente com uma pá reta, de madeira. Menos para a Mãezinha, que vinha com um copo lá de dentro, que o Soí enchia de sorvete até quase derramar.
Ela era privilegiada. Era a mãe...

Poda das Árvores
Uma vez por ano eram podadas as árvores da rua. Eram dois dias de festa, entre a poda e o recolhimento dos galhos, que nunca era imediato. Com os galhos podados fazíamos cabanas, prendendo-os entre os muros e as grades das casas, nas quais nós cabíamos, sentados. Visitávamos as cabanas uns dos outros, levávamos o que comer para dentro delas e velas para iluminá-las à noite. Em frente a cada casa tinha uma cabana. Era comum também queimarmo-nos com as lagartas - bicho cabeludo - que vinham nas folhas, quando um de nós saia chorando de dor pra dentro de casa. Mas ninguém ligava, e em pouco tempo estávamos de volta. Tínhamos muito pouco tempo para curtir as cabanas. O álcool em cima da queimadura resolvia tudo.
Era realmente um outro tempo... Num dos anos, conseguimos que o caminhão da Prefeitura que ia buscar os galhos cortados e consequentemente desmanchar as cabanas, voltasse no dia seguinte, porque à noite íamos fazer um concurso para escolher a cabana mais bem feita. E eles toparam...

Seu Lôres
Era comum, depois do jantar, Chiquito sair para conversar com o seu Lôres, dono de uma farmácia na rua S. Francisco Xavier. Lá ia eu junto, não sei fazer o que, porque nada me poderia interessar na farmácia. Voltava sempre com uma escova de dentes nova que o seu Lôres me dava. Ele era bem magro, não muito alto e meio russo, com o cabelo meio chegadinho alourado e sobrancelhas idem. Eu pensava que ele se chamava seu Lôres por causa do cabelo.

Um comentário:

  1. Sucos, sorvetes, chocolates... qual é a criança que não gosta? O "problema" é que nada disso passa incólume por você, até hoje!

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