quarta-feira, 29 de setembro de 2010

O BARCO FANTASMA

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Eram todos velhos lobos do mar. Desde jovens, pescadores de águas profundas, mares bravios e borrascas intermináveis. Seis homens de fibra, pele salgada pelos ventos e curtida pelo sol inclemente, profundos conhecedores dos caprichos da natureza, haviam aprendido com a dura lida diária a desconhecer o medo.
Tinham consciência de que uma daquelas saídas mar afora poderia não ter retorno, mas até mesmo esta dúvida, esta incerteza do cumprimento da missão já fazia parte de sua rotina. Eles já eram parte integrante do “Anita”, quase que moravam no velho pesqueiro há mais de metade de suas vidas. Tratavam-no quase como que um membro da tripulação, tal o carinho e o desvelo com que faziam a sua manutenção. E o “Anita” retribuía, trazendo de volta, em seus porões abarrotados de pescado, o sustento de toda a comunidade.
Desta vez estavam há doze dias no mar, longe das famílias, que já começavam todas as tardes a perscrutar o horizonte, na esperança de verem as benditas velas que lhes davam a certeza de mais uma vez estarem voltando aos lares sãos e salvos. E já não era sem tempo. A pesca havia terminado e o “Anita” não demoraria nem mais dois dias para aportar na colônia. Pelo rádio, as posições do barco eram transmitidas frequentemente, mas somente quando o diminuto ponto negro começava a avolumar-se no horizonte é que o pequeno clã, na praia, começava mais uma vez a respirar aliviado.
Porém, pelo rádio também veio a notícia, naquela tarde, que uma forte tempestade estava a caminho. E ela agora vinha chegando, lentamente. Primeiro os ventos, suaves a princípio, encrespando as ondas e cobrindo-as de espuma branca; depois, o céu rapidamente acinzentando-se e os primeiros grossos pingos de chuva como que avisavam à tripulação que a noite seria de intensa luta. Mas eles já estavam acostumados àquele tipo de emergência.
- Que cada um fique no seu posto! - gritou o mestre agarrado ao timão, que começava a teimar em desobedecer-lho - Recolham as velas e não desliguem o rádio! Temos que nos manter atentos a qualquer informação da patrulha!
A estática captada pelo pequeno transmissor atestava a violência da tempestade que se aproximava. De quase nada adiantava deixá-lo ligado, pois só se ouviam o ruído das descargas elétricas entremeado de algumas frases incompreensíveis.
Por fim a tempestade mostrou-se em toda a sua sinistra pujança. Desta vez os valorosos marinheiros estavam assustados. Nunca haviam visto tamanha demonstração de força em tantos anos de convívio com o mar. Parecia-lhes que naquela noite - pois já era então noite cerrada - seriam submetidos à máxima provação, ao teste definitivo de coragem e competência frente à ira dos elementos.
Em pouco tempo - meia hora, se tanto - viram a borrasca transformar o velho pesqueiro em uma carcaça semidestruída. O valente “Anita” perdera seus mastros, partidos como se partem palitos de fósforos entre os dedos, e suas velas eram trapos disformes dependurados nos restos de madeira. O possante “diesel” de noventa cavalos jazia inerte, subjugado pelos vagalhões que lavavam o convés da proa à popa. Somente o rádio - único instrumento a bordo que ainda se mantinha funcionando - emitia sons inaudíveis em meio às descargas que acompanhavam cada trovão que arrebentava nos céus. O tanque de óleo soltara-se das amarras e rolava de um para outro lado no convés, como um cão danado que perseguisse os seis apavorados marinheiros que, encharcados pelo combustível, seguravam-se nos restos da embarcação como lhes era possível.
Ondas descomunais elevavam o que restava do “Anita” até a sua crista, em meio à escuridão total, para depois lançá-lo em vertiginosa descida que parecia querer levá-los ao fundo do oceano. Vez por outra mais um relâmpago rasgava os céus, iluminando por alguns segundos aquela cena dantesca. Quando voltava a escuridão, o estrondo tardio da descarga elétrica quase os ensurdecia. E o barco, sustentado nas águas pelo pesado lastro da pescaria, começava a subir, subir outra vez até o topo do mundo, iniciando mais um apavorante ciclo da incrível montanha-russa.
Quando mais uma vez no alto parecia dominar por instantes as águas revoltas, o “Anita” foi atingido por outra onda enfurecida que o atacou de estibordo, levantando-lhe o casco pela lateral. E os seis homens, já exaustos e traídos pela surpresa, viram-se lançados às águas.
Era o caos. Aqueles homens, que haviam presenciado a agonia do velho barco, companheiro de tantas lutas, sentiam que também eles estavam chegando ao fim. A tragédia atingia a todos de uma só vez, irmanando-os na morte que se avizinhava, pois a cada clarão nos céus viam o “Anita” afastando-se mais e mais do pequeno grupo.
Foi quando um deles, já semidesfalecido, sentiu que algo se enroscava em seu braço. Tateou, angustiado.  Era uma corda, uma grossa corda que se agitava como uma serpente. Prontamente segurou-a, puxando-a para si. Sentiu-a retesar-se, como se estivesse presa no convés do barco. Passou-a pela cintura, enlaçando-se por um forte nó e gritou, gritou desesperadamente tentando localizar os outros companheiros.
Um a um, com dificuldade, foram todos agarrando-se àquele pedaço de cânhamo salvador. Com o resto das forças de que dispunham puxaram-se para a embarcação, subindo novamente ao convés e segurando-se como era possível aos restos do madeirame. Se tivessem que desaparecer, o fiel “Anita” parecia querer que soçobrassem juntos. Gritavam uns para os outros, a saber, na escuridão, se todos estavam salvos. E mantiveram-se assim, como que cravados no convés, sem entender qual o anjo celeste que lhes havia lançado o providencial socorro.

Depois, muito tempo depois, a tempestade amainou. Cansaram-se os ventos, esgotara-se a chuva, silenciaram-se os trovões. Aos poucos as imensas vagas reduziam a sua fúria e voltavam ao seu eterno e suave vai-vem. Os homens, exânimes, deixaram-se enfim dominar por profundo sono.
Já agora a noite começava a ceder aos primeiros albores da madrugada. Um denso nevoeiro substituíra a tempestade, no meio do qual os restos do “Anita” vagavam sem rumo.
Era total a calmaria.
O silêncio, mortal.
Apenas o ruído da água chocando-se com o casco se fazia ouvir. Os homens, atordoados ainda, aos poucos se levantavam, procurando nos companheiros a confirmação de que estavam realmente salvos. Abraçavam-se em silêncio, sem forças nem mesmo para externar a sua alegria.
Estavam assim, refazendo-se ainda da trágica noite, quando um deles percebeu que um facho de luz tentava rasgar a espessa neblina.
- Vejam, deve ser um barco! - o homem gritou, apontando na direção do tênue foco luminoso.
- É um barco, tem que ser um barco! Gritem, gritem, ele assim nos localizará!
O receio de que não fossem vistos ou ouvidos fez com que lhes voltassem as forças. Todos, em uníssono, gritavam freneticamente, tentando chamar a atenção do possível salvador.
De repente, começaram a se definir no meio da névoa os contornos de uma embarcação. Lentamente a sua proa afastava a neblina e mostrava-se aos excitados marinheiros, que faziam sinais e dançavam de alegria, já esquecidos da extenuante noite de lutas.
- É a Costeira, vejam, o “PN-16”! - disse um dos homens, apontando para a alva proa da embarcação - Olá, companheiros! Sejam bem vindos!
Mas o “PN-16” não se aproximou.
Manteve-se afastado, na sua marcha silenciosa, lenta, enigmática, com três dos seus tripulantes de pé, no convés, imóveis em suas fardas brancas. Começou a rodear o pesqueiro, guardando considerável distância, para surpresa de sua tripulação, entre atônita e desconfiada.
- Mas o que é que eles querem? Será que não nos estão vendo? Por que não vêm nos salvar? Por que estão dando voltas, parados feito estátuas no convés?  
O velho marinheiro começava a descontrolar-se:
- Ei, vocês! Lancem a corda! O que estão esperando?
O barco salvador continuava descrevendo seu estranho círculo, distante uma ou duas dezenas de metros do “Anita”. Desaparecia no denso nevoeiro para reaparecer adiante, com sua branca proa ostentando sua identificação em grandes letras azuis: “PN-16”.
- É um barco fantasma! - gritou o mais velho dos pescadores - Eu já ouvi falar sobre ele, sobre uma patrulha que desapareceu numa noite de borrasca e nunca mais foi vista! São eles, que aparecem na bonança, depois daquele inferno de ontem! São todos fantasmas, que se arrastam nesse barco pensando que ainda podem ajudar alguém!
Os supersticiosos marinheiros arregalaram os olhos. Um barco fantasma! Que fariam agora? Nada, por certo, além de aguardar o desfecho da inusitada visita. Talvez fossem embora, da mesma maneira como apareceram: no meio de densa neblina...
Mas o barco não desapareceu. Aos poucos reduziu sua marcha até parar por completo. Então, mais uma vez foi encoberto pela neblina. Quando voltou a se mostrar, não havia mais ninguém no convés.
- Eu não disse? Onde está a tripulação? Eu não disse que era um barco fantasma?
Os seis homens pareciam ter os pés cravados no convés. Ninguém arriscava dizer uma palavra, à espera do que faria o insólito visitante.
Então, de repente o rádio do “Anita”, servo fiel e infalível, começou a receber nitidamente uma mensagem:
“Atenção, base. Atenção, base. Aqui fala o “PN-16”. Localizamos o “Anita”. Latitude “X”, longitude “Y”. Foi totalmente destroçado pela tempestade. Apenas o casco se mantém flutuando. Fizemos uma volta de reconhecimento e não há sinais de vida a bordo. Estamos nos preparando para a abordagem e posterior reboque. Câmbio. Desligo.”


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