quinta-feira, 7 de outubro de 2010

O 882


Prêmio Talentos da Maturidade, Banco Real, 2006



Eu estava num 882, espremido, chacoalhando a 80 quilômetros por hora, parecia que o bicho ia se desmontar todo. Estava em pé, e achava justo que ninguém me desse o lugar. Todos voltando do trabalho, a maioria dormindo, muita gente dormindo em pé. Eu não estava trabalhando, não estava fazendo nada. Estava só voltando pra casa, mais nada.
Então eu vi, eu me vi, refletido no vidro da janela, era noite, lá fora estava escuro. Estava lá, aquele velho me olhando. Olhei pra ele, fiquei pensando: “Quem diria! Eu, nos meus setenta e três anos, estava ali, chacoalhando, chacoalhando...” Cheguei a esboçar um sorriso, que ele devolveu. É isso ai, meu velho. A vida é isso. Tá aí, ó.
Comecei a fitá-lo, sério. Ele, sério, também.
Então, de repente, foi se mostrando toda a minha vida. Ela foi se desenrolando - a minha vida, olha só - como um filme. Aquela casa, depois o apartamento, depois outros apartamentos, outras cidades, tudo bem rápido; meus filhos, adultos, tão longe estão, foram se juntando a mim, a ela, a nós, a família estava novamente unida. Eles adolescentes, e lá vinham outros apartamentos, outras casas, eles eram bem jovens, agora, na puberdade. Depois, duas crianças. Eu botava ele no colo, e ela, no colo dela, sempre juntos. Eu dizia: “Somos dois? Então são dois filhos. Um pra cada um. Um colo pra cada um.” Do colo, eles passaram pro berço. Do berço pro ventre, aquele ventre lindo, volumoso, uma vez, duas vezes... Aí, nós nos casamos. Depois, cada vez mais jovens, planejamos o casamento, estávamos sempre planejando o futuro, éramos duas quase crianças também, até que num dia três de fevereiro eu a conheci.
Foi aí que começou a minha vida.
Eu olhando pro velho, o velho olhando pra mim. E o 882 chacoalhando, balançando tudo, num barulho infernal. Então, atrás de mim, pelo vidro, eu vi uma senhora. Cabeça branquinha, sorrindo, o rosto dela bem perto do meu... Pensei: “Como é que essa senhora entrou no 882?” Pensei, mas não disse nada. E ela sorrindo. Sorrindo, quase, quase rindo, mesmo. Parecia estar muito alegre. Aí ela virou-se pra mim e falou, no meu ouvido: “Vamos embora daqui? Está muito cheio, muito apertado...” “Vamos embora, como? Como é que nós vamos sair daqui? A 80 quilômetros por hora?” “Por cima... A gente sai por cima...”
Então, de repente, o 882 não tinha mais o teto, não tinha mais as laterais, e corria, corria, e aquela gente toda se espremendo ali, as estrelas lá em cima, o vento batendo, desmanchando o cabelo de todo mundo, e ela “vamos, vamos...”. Me segurou, assim, por trás, com os dois braços e nós começamos a subir, subir...
Comecei a ouvir uma gritaria, olhei, sei lá, pra baixo, estava uma confusão dentro do 882, não sei de que jeito conseguiram abrir uma clareira no meio dos bancos, de repente como que uma clareira mesmo, e eu estava deitado, me puseram deitado no banco. E todo aquele vento... “Epa!”- pensei - “acho que eu indo embora! Mas... ali? Que mau gosto!... A oitenta quilômetros por hora...”
Não, eu não queria aquilo. “Que é que tem?” - ela me disse - “Você não está mais ali, você está aqui comigo... Você já não viu sua vida toda? Sua vida não foi tão boa? E então? Vamos, agora. Vamos embora daqui...” “Tudo bem, mas aqui, não... Aqui não... Não é nem por mim, é por minha família... Por ela, também... que vergonha... Não vai ser legal... Olha que confusão ficou lá embaixo, olha lá...” E lá de cima a gente via. “Deixa eu voltar, deixa eu voltar... Depois você me leva... Deixa eu voltar...”
Aí ela falou: “Mas vai me dar mais trabalho, eu já estou aqui...” “Não, não, deixa eu voltar, não é por mim, é por ela, por eles, pela minha família... Vamos fazer a coisa mais direitinha... Dentro de um 882, não...” “ bem, então. Volta. Depois a gente conversa.” E me deu um beijo. Me deu um beijinho no rosto. Aí, pronto, eu senti que escorreguei, de novo, pra dentro do 882 e não vi mais nada. Aquele anjo sorridente, de cabecinha branca, tinha deixado eu voltar.
Não vi mais nada, nada mesmo. Não sei o que é que houve, não sei o que é que fizeram, sei que quando abri os olhos, eu estava deitado, num hospital, me parecia, e outro anjo, do meu lado, olhando pra mim, sorrindo. Também de cabecinha branca, mas um anjo vivo, de verdade, sorrindo pra mim. Era aquele anjo que eu conheci, lá atrás, no dia três de fevereiro.
Aquela foi minha última viagem no 882. Nunca mais entrei num. Não me deixam mais sair sozinho. Agora, só de carro. Quando eu saio, vejo ele passar. Sempre cheio, entupido, chacoalhando, parece que o teto vai voar longe, como naquele dia. E torno a ver como é que foi, o 882 assim como se fosse uma barca, cheia de gente, a 80 quilômetros por hora, o vento batendo naquele povo todo, e eu subindo, subindo...
Qualquer dia aquela senhora aparece de novo. Mas desta vez vai me encontrar em casa, tranqüilo, esperando por ela. Aí, não tem importância. Aí a gente vai, todo mundo sabendo, meu outro anjinho avisado em casa, tudo bem. Aí, não tem problema. Eu já estou na moratória mesmo, já ganhei uma moratória boa, aí não me importo. O que eu não estava gostando era ir de surpresa, assim, de dentro de um 882 entupido, cheio de gente, barulhento, chacoalhando por tudo o que é lado, a oitenta quilômetros por hora.
Assim, não...

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