domingo, 14 de novembro de 2010

AMIGO FIEL


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- Boa tarde, doutor.
- Boa tarde. Sente-se, fique à vontade.
- Muito agradável, o seu consultório.
- Muito obrigado. 
André não estava à vontade. Era a velha timidez que o embaraçava. Sentou-se em frente ao médico e ficou calado. A custo, esboçou um sorriso amarelado.
- É a primeira vez que consulta um analista?
- É...
- Muito bem. O que o trouxe aqui?
- Não... não foi bem um problema. Isto é, talvez seja, não sei. É um leão...
- Um leão?
- Eu sou muito tímido. Muito tímido... Sempre fui...
- Sei. E isso o incomoda.
- Muito. A vida toda. Setenta anos...
- A minha idade...
- Por isso lhe procurei. Esses analistas mais jovens têm umas idéias estranhas...
Ele começava a se soltar. Melhor assim. “Daqui a pouco vai estar à vontade”, pensou o outro.
Então, a porta da sala abriu-se lentamente, e o leão entrou.
- Bonito, o bicho...
André voltou-se para o animal.
- É...
Ele veio caminhando lentamente e sentou-se ao lado de sua cadeira.
- Ele gosta de você...
- Nem sempre ele me acompanha. Às vezes aparece em ocasiões que eu não esperava. Como agora...
- Sei. Então?
- Eu acho melhor contar a história desde o princípio.
- Claro.
- Eu já era rapaz, quando o vi pela segunda vez.
- Pela segunda vez? E a primeira?
- Na primeira vez eu era garoto, e ele era só um gatinho.
André fez uma pausa.
- Mas deixe-me começar pela segunda. Foi de manhã, quando me levantei. Não o vi, mas sabia que ele estava na casa. Gozado... Depois de tanto tempo, aparecia novamente...
“Eu morava com minha irmã em um casarão enorme, em Botafogo, herança de família. Éramos jovens, eu devia ter uns vinte anos. Ela beirava os trinta.
“Acordei achando que tinha um leão no banheiro. Na hora pensei no leãozinho da minha infância. Fui até lá, e quando abri a porta, não tive dúvida - apesar do bicho já ser adulto e todos os leões serem iguais, eu sabia que era ele. Estava deitado dentro da banheira, imponente, muito imponente, apesar do ridículo da cena. Olhava-me mansamente. Fiquei parado na porta entreaberta, a mão na maçaneta, olhando para ele, como quem diz: “o que você está fazendo aí?”. Ele apoiou a cabeça na borda da banheira, lambeu o focinho duas vezes e fechou os olhos preguiçosamente. Até que escolheu bem o local. A banheira era o lugar mais fresco da casa, e o dia amanhecera muito quente.
“Deixei a porta aberta - por que fugiria? - e chamei minha irmã, que me respondeu espreguiçando-se. Disse-lhe que tinha um leão cochilando dentro da banheira. Ela sentou-se na cama, com cara de sono, aguardando o resto da brincadeira. Não tinha resto.
“- Vamos lá, pra você ver.
“Ela me acompanhou.
“- Como ele entrou? – perguntou-me, puxando pelo resto que não havia.
“- Não sei, mas ele está aí, olhe.
“Tomei-lhe a frente, sentei na borda da banheira e acariciei a juba do bicho. Ela encostou-se na porta, cruzou os braços, olhou para ele e sorriu.
“- E daí? - falou. Depois abriu o armário sobre o lavatório, apanhou a escova de dentes e o creme dental:
“- Agora dá o fora, senão acabo me atrasando para sair. E leve esse bicho com você.
“O leão sorriu para mim. Levantei-me, deixei o banheiro e ele me acompanhou, sem antes fazer um alongamento esticando as patas dianteiras, e, grande como era, ao sair esfregou-se nas pernas da minha irmã, que estava em frente à pia. Ela encolheu-se, para lhe dar passagem e olhou para mim, balançando a cabeça:
“- Qual...
“Depois desse incidente, foi que me lembrei do nosso primeiro encontro. Foi numa tarde, no colégio. Eu estava no primário, e já essa timidez me acompanhava. Meti-me, nem sei como, numa rixa com um coleguinha. Arrependi-me no ato, pois o garoto era mais avantajado do que eu. Mas a turma cercou-nos, e não me perdoaria se eu recuasse, com certeza chamando-me, no mínimo de maricas, que era o xingamento máximo da época. Preparei-me para receber o primeiro golpe, só ele já me poria fora de combate. Quando o outro se aproximou, já com a mão fechada, ouvi um rugido perto de mim. Era o leãozinho, sentado ao meu lado. A turma que esperava a briga debandou na hora, e o meu “agressor” ficou parado na minha frente, extático, de olhos arregalados, olhando para as presas que o reizinho das selvas exibia, assustadoramente. Então, começou a recuar, recuar, até perder o equilíbrio e cair de costas no chão. Mas levantou-se de um salto e saiu em disparada, enquanto eu acariciava o bichano, que lambia a minha mão.
“Dali a pouco o garoto voltou, rebocando a inspetora pela mão, enquanto apontava para mim. Ela gritou:
“- Não quero mais ver este bicho por aqui !
“Ele nunca mais voltou. Poxa, e lá se foram onze anos até que desse as caras outra vez...
“Depois do café, minha irmã saiu para o trabalho e eu para a faculdade. Ainda olhei em volta, com o rabo-de-olho, mas não vi mais o meu protetor.
“Curioso, inspirava-me confiança, a sua presença.”

André se deu ao direito à nostalgia. Sem perceber, soltava-se. Por um instante, esqueceu até o bichano:
- A faculdade era na Praia Vermelha, dava gosto estudar lá. O ambiente, a construção colonial, os salões grandes e arejados, os professores cultos e interessados em passar adiante o seu conhecimento, os colegas bons companheiros, enfim... Já não se fazem mais faculdades como antigamente...
Ele agora estava à vontade:
- Sabe, eu tinha até uma colega muito especial, a Aline. Muito especial... E eu achava que o era também, para ela. Mas, e a coragem? Eu continuava o mesmo garoto tímido da infância...
“Um dia, entre uma aula e outra, fui para o pátio atrás da escola. Um pátio que mais parecia um bosque. Uma beleza. Estava lá pensando na vida, quando vi Aline se aproximando. Ao seu lado, caminhando calmamente, lá vinha ele.”
- O leão...
- É. Ela chegou e sentou-se ao meu lado:
“- Não sei por que esse leão está me acompanhando.
“- Ele é manso.
“- Eu sei. Se até agora não me fez nada...
“Aline irradiava tanto charme, tanta simpatia, que cativou a nós todos, na faculdade. Desde que a vi pela primeira vez, senti que seria a mulher da minha vida. E estava certo. Ela é a mulher da minha vida até hoje.”
- Bonito, isso. Muito bonito. - O médico apontou na sua direção - E raro. Muito raro.
André sorriu, vaidoso.
- Então, tomei coragem :
“- Aline, tenho uma coisa para te falar.
“- Sim?
- Olhe, vou dizer tudo de uma vez.
“E declarei-me, deixando a timidez de lado, como se fosse o mais intrépido dos amantes. Não terminei o meu discurso. Ela interrompeu-me, para dizer :
“- Não precisa dizer mais nada. Até que enfim ouvi o que queria ouvir de você, há tanto tempo...
“Ela olhou com carinho para o leão, que se deitara em frente ao banco onde estávamos. Depois, beijou o dedo indicador e encostou-o na minha boca.
“- Ele é muito bonito. Tão manso...
“Levantamo-nos e seguimos para a próxima aula, abraçados... Ele ficou lá, nos olhando.”
André baixou os olhos. O leão dormia tranquilamente ao seu lado. Afagou-o:
- Meu amigo é fiel. Aparece sempre que eu preciso dele. Impõe respeito.
O médico balançou a cabeça, concordando.
- De outra vez - eu já formado - quando participava de uma reunião onde não estava conseguindo expor minhas idéias sobre um projeto de arquitetura - e eram boas idéias, melhores do que as de todos os outros, modéstia à parte - comecei a sentir-me derrotado. Os argumentos dos outros ganhavam força, graças às palavras enfáticas que me faltaram, na minha explanação. Afundava-me na cadeira, enquanto recolhia meus projetos. Ouvi, então, o rugido tão conhecido. A porta da sala entreabriu-se e o meu amigo meteu a juba pela fresta. Mostrou os dentes, como o mais temível rei das selvas. Eu sabia que era blefe, mas funcionou. Pedi a palavra, mais uma vez, e elas soltaram-se da minha boca com facilidade, em argumentos imbatíveis.
 “- O contrato é seu. – o cliente disse-me, entusiasmado - É muito bom o seu projeto. Não tenho medo de leões...
“O bichano veio e encostou-se nele, como que apoiando-o. Os outros colegas saíram da sala, um tanto decepcionados.
“Saímos, depois, os três. Ele com a mão no meu ombro, e eu com o contrato na mão. E o meu amigo ao meu lado.
“Eu poderia dar mais meia dúzia de exemplos, doutor. Coincidência ou não, meu companheiro aparece sempre que preciso destravar a língua...”

O felino deitado ao lado de André, ressonava.
- Que bom, André. Mas ainda não entendi por que você veio procurar-me. Se não é por causa dele...
- Não, não é. Não diretamente.
- Por que foi que veio, então?
- Tenho medo, doutor. Acostumei-me tanto com ele, com o respeito que impõe às pessoas, que tenho receio de um dia achar-me em situação difícil e ele não aparecer.
- Quantos anos você tem?
- Setenta e quatro.
- E quantos tinha quando o viu pela primeira vez?
- Bem... uns dez anos.
- Quer dizer que ele é seu amigo há sessenta e quatro anos?
- É...
- Quantos anos tem o leão?
- Não sei...
- Meu caro André... Esse leão nasceu com você e vai morrer com você... E na nossa idade, cada vez menos iremos precisar de um leão ao nosso lado... Logo agora, você com essa idade, que as coisas estão mais fáceis... talvez você nem precise mais dele... e está preocupado? Você não precisa nem de mim... Deixe sua vida seguir...
André sentiu-se aliviado com aquelas palavras. Precisou, sim, do analista. Como não? Precisaria ainda do seu amigo fiel? E ele iria abandoná-lo? Logo agora, quando, por certo, teria menos trabalho?...
Levantou-se, encheu o peito, cumprimentou o médico e ganhou a porta. Atrás dele, o leão voltou-se, deu uma rosnada suave, como que se despedindo do médico, e seguiu André.

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