quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

BOITE-SHOW

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Quando a campainha da porta soou Maurício levantou os olhos da “Revista do Fluminense”. Quem seria? A noite estava chuvosa e quente, convidando ao repouso. Ele estava sozinho, preso em casa por uma forte gripe. Portanto, fosse quem fosse, seria bem vindo para uma boa conversa. Levantou-se da poltrona, com a lentidão que seu estado febril lhe permitia e foi atender a porta.
Era o Murilo.
- Posso entrar?
- Olá, Murilo! Vamos entrando... Que bom você ter se lembrado de seu amigo!
- Soube que você está adoentado. O que é? Não me parece tão mal assim.
- Não é nada, apenas uma gripe. Só que ela me pegou de jeito, por isso estou aqui de molho, por recomendação médica.
- É o melhor que você faz. Ainda mais com essa noite chuvosa...
Murilo entrou. No meio da sala antigo baú, aberto, tinha espalhado à sua volta o heterogêneo conteúdo. Eram fotos, revistas, pequenos objetos, papéis em quantidade. Enfim, a velharia típica que recheia velhos baús.
- Mas o que é isto? Altas arrumações?
- Você não queira saber... Eu estava aqui numa verdadeira sessão nostalgia. Aproveitei o descanso forçado para revirar este baú. Murilo, aqui há coisas guardadas há trinta anos! Se você me perguntar para que, nem eu mesmo sei. Mas, sabe? Trinta anos depois estas coisas começam a ficar curiosas.
- Um baú de trinta anos! Você era bem novo, não?
- Tinha meus vinte anos. Estou com cinquenta e três... Trinta e três anos, para ser mais preciso.
Murilo cruzou os braços e correu os olhos por tudo aquilo espalhado pelo chão. Não era uma caixa muito grande e as reminiscências iam ainda a meio, mas a desarrumação, esta já era total.
- E eu posso saber o que guardou para o futuro um jovem de vinte anos?
Maurício sorriu. Quantas coisas havia guardado! Abaixou-se e do meio daquela papelada apanhou um caderno. “Hora H”. Bastava a capa - dois estudantes chegando à escola e apontando para um enorme relógio por trás do prédio - para reiniciar o processo nostálgico interrompido. Estendeu-o ao amigo :
- Veja, Murilo. Poesias. Você sabia que já fui poeta?
- É, você tinha uns dotes literários. Mas poeta mesmo, é um pouco demais...
Enquanto ele folheava o caderno, interessado nos dotes do amigo, Maurício apanhou novamente o boletim do clube.
-Quando você chegou eu estava querendo me lembrar por que diabos eu teria guardado esta revista.
Murilo trocou o caderno pela revista.
- É um exemplar da “Revista do Fluminense”. Janeiro de 52. Circulava apenas entre os sócios com a programação social do mês, além de outros assuntos. Devo tê-la guardado pelo mesmo motivo que guardei todos esses objetos: para nada.
- Bem me lembro dela. Talvez esteja aqui o motivo, veja: está sublinhado o dia 19, um sábado - e houve uma “boite-show” nesse dia.
- Não tinha reparado. Deixe ver.
Murilo devolveu-lhe a revista.
- Realmente. Lembra ? Naquela época havia uma festa dessas por mês, e sempre aos sábados.
- Curioso.
- Por que curioso? Até hoje os sábados são dias preferidos para festas.
- Não, não é isso, Maurício. O que achei curioso é que hoje também é sábado, e também 19 de janeiro. Trinta e três anos depois, os dias da semana coincidem.
Maurício não deu muita importância à coincidência.
- É verdade. Mas ouça o que diz o programa social: “Dia 19: ‘Boite-show’, com início às 21 horas e término à 1 hora. Atração principal: Charles Trenet, o criador de ‘La Mer’ com Ferreira Filho e sua orquestra. Traje: Passeio Completo”.
- Charles Trenet! Como fez sucesso, lembra-se? Acho que ainda canta...
- Nada, já deve ter morrido. E Ferreira Filho? Era o titular dos salões do Fluminense. Uma beleza de conjunto, com a marca do bom gosto...
Maurício interrompeu bruscamente o seu comentário.
- Murilo!
- O que foi?
 -Acabei de me lembrar por que guardei esta revista!
- E por que foi?
- Nesse dia, 19 de janeiro, aconteceu um fato insólito - nunca esta palavra foi tão bem empregada - lá no clube. Por isso assinalei esta data. Lembro-me agora, aquela “boite-show” para mim foi memorável!
- Por que? Começou ou acabou algum namoro?
- Nem uma coisa, nem outra. Na verdade eu estava um tanto aborrecido por estar sem ninguém. Você me conhece. Eu nunca fui muito “entrão” com as meninas, gostava mesmo era de ter uma namoradinha certa. Lembro-me que tinha ido ao clube naquela noite apenas para assistir o Charles Trenet. Afinal, era uma atração internacional.
- Que eram raras, na época. E eu me lembro que perdi aquela “boite-show”, não sei por que motivo.
- Muito raras. Mas todos os artistas que vinham ao Brasil, ou quase todos, apresentavam-se no Fluminense. Eu não perdia nenhum daqueles shows. Estava firme, uma vez por mês, com a turma de sempre, todos nós impecáveis em nossos trajes “passeio completo”.
- Eu era um dos mais “engomados”... Mas afinal, o que houve naquela noite?
- Eu vou lhe contar:
Os três salões estavam repletos, e Ferreira Filho atacava de “Frio en el alma”. Nós, andando de um para outro lado, examinando as meninas, comentando os namoros, enfim...  as mesmas coisas de sempre.
De repente, um tipo estranho saiu do toalete. Roupas bizarras, largas e coloridas, cabelos grandes e encaracolados. Usava óculos redondos, de aro de metal, que na época me pareceram iguais aos de minha avó.
Ninguém entendeu nada. Olhamos uns para os outros, depois para ele. O rapaz parecia um pouco mais velho do que nós, talvez tivesse uns vinte e cinco anos, sei lá. Contrastava conosco em tudo, desde os nossos austeros ternos e gravatas aos cabelos impecavelmente domados por poderosas brilhantinas. Ocorreu-me que talvez fosse figurante no show. Mas não, a atração era um “chansonier”, portanto não haveria, nem antes ou depois, o clima para espetáculos de circo.
Mas o que me marcou muito foi o rapaz estar... apavorado! Literalmente apavorado, quase em estado de choque! Assustado, agia como se fosse louco, olhando para tudo e para todos. Estava a ponto de estourar.
Ficamos frente a frente. Ele fitou-me e disse, em voz baixa, enquanto me segurava pelos dois braços:
- Que brincadeira é essa?!
- Brincadeira? - eu lhe respondi, enquanto me soltava de suas mãos, que me apertavam nervosamente - Eu é que não estou entendendo. Você faz parte do show?
Eu sabia que não, mas foi a única pergunta que me veio à cabeça.
- Eu não faço parte de nenhum show! Eu sou sócio! Eu sou sócio!
Tentei puxar conversa com ele, enquanto andávamos pelo salão. Fui com ele para uma das varandas laterais, mas ele não se sentiu aliviado com o ar fresco da noite, como eu esperava. Debruçou-se no parapeito, olhando longamente para os carros que chegavam e partiam.
- Você bebeu? - arrisquei perguntar.
- Eu não bebi nada! Eu não sei de nada... Meu estomago está dando voltas...
Achei que ele ia desmaiar. De repente, levou a mão à boca e voltou correndo para o salão, em direção ao toalete. Fui atrás, mas já com dificuldade. O show já ia começar e nessa hora a movimentação para garantir um bom lugar era grande.
Nesse ponto, Murilo, que ouvia atento, interrompeu-o:
- E então? Conseguiu alcançá-lo?
- Não. Bem... na verdade, nunca mais o vi.
- Como? Nunca mais o viu?
- Eu nunca lhe contei esta história?
- Não, para mim tudo isso é novidade.
- É estranho, estávamos sempre juntos naqueles shows...
- É, mas eu perdi Charles Trenet, não lhe disse? Talvez por isso...
- Mas deixe-me continuar: Quanto tentava alcançá-lo, correndo também para o toalete, alguém da nossa turma parou-me por um instante, chamando-me para ver o show. Bastou isso para, quando cheguei ao toalete, já não mais o ver. Estava vazio. Conseguira sair sem que eu o visse. Mas havia esquecido seus óculos redondos em cima do lavatório.
Maurício voltou-se para o baú procurando alguma coisa entre os seus guardados.
- Olhe...
Eram os óculos, que estendeu para o amigo.
- Curioso - disse Murilo - São realmente parecidos com os da vovó... Mas é um modelo que está se usando por aí, novamente.
- É, a moda é assim mesmo. Vai e volta.
- E então, sobre o rapaz? Mais nada?
- Mais nada. Evaporou-se. Mas como estava assustado! Fiquei sem jamais saber por quê. Enfim, deixei o toalete, guardei os óculos no bolso e fui assistir o Charles Trenet. Afinal, não poderia perder o espetáculo.
Maurício então começou a relembrar os velhos tempos do Fluminense, enquanto brincava com o par de óculos que Murilo lhe devolvera. O assunto desviou-se, mas continuava nostálgico.
- Meu caro, aqueles shows eram realmente muito bons! Não fossem aquelas festas, nós jamais teríamos assistido Louis Armstrong, Pedro Vargas, Carlos Ramirez, Billy Eckstine... Os ídolos da época.
- Os ídolos de hoje dão shows para milhares de pés-soas de uma só vez.
- É. O que era privilégio de poucos hoje está massificado. É pena que a “galera” grita tanto que nem ouve o artista. E nem vê, de tão longe que assistem... Não fossem os telões...
- Ainda assim, vale a pena para quem nunca viu coisa melhor.
Murilo olhou o relógio, preocupado com a demora da visita. Estava ficando tarde.
- Maurício, já passa da meia-noite. Já vou indo. Como disse o seu médico, o que cura uma gripe é o repouso, não estas reminiscências até altas horas.
- Mas uma gripe se cura também com um bom papo. Fique por aqui, ainda falta meio baú...
A nostalgia continuaria, alimentada por aquele baú mágico, não fosse a chegada de Gustavo. Para uma noite de sábado, até que vinha voltando cedo.
- Olá, meu filho. Mas, já em casa a essa hora? O que houve?
- É, Gustavo. Sábado à noite não é para se estar em casa a essa hora. Deixe isso para seu pai e eu...
Gustavo entrara um tanto calado.
- Pois é, seu Murilo. Mas eu não estou legal.
- Que houve? Você não estava na discoteca? Está um pouco pálido!
- Não sei. Uma loucura.
Gustavo falava enquanto olhava alternadamente para o pai e para Murilo.
- Se eu lhes contar, vocês vão achar que estou ficando maluco.
- Ora, por que pensaríamos?
- Por que? Olhem só o que me aconteceu: Cheguei ao clube, fiquei rodando com a turma, como sempre. Tudo normal. Em certa hora, fui ao lavatório. Quando saí... vocês não vão acreditar...
- Em que?
- Eu dei de cara com uma festa - outra festa, não era a discoteca - inteira, completa, igualzinha àquelas do seu tempo, que você às vezes relembra, comentando comigo! Tudo real, pai! Falei com os rapazes, toquei neles, ouvi a orquestra tocando o maior bolero... Vi os carros, na rua, eram os da sua época de rapaz...
Olha... senti um tremendo mal estar, achei que meu estômago ia sair pela boca. Só tive tempo de correr de volta para o lavatório e me aliviar... Acalmei-me um pouco, lavei o rosto, molhei a cabeça e fiquei parado olhando-me no espelho, criando coragem para enfrentar de novo aquela loucura... Enfim, resolvi sair. Pois bem - no salão, a discoteca estava comendo solta, normalmente...
Maurício e Murilo, eles sim, agora pareciam estar em estado de choque. Imóveis, as palavras não saíam, presas na garganta. Gustavo ainda mais se impressionou com o mutismo dos dois.
- Pai, diga alguma coisa! Será que estou tão ruim assim?
Maurício não tirava os olhos do filho.
Ali estava o rapaz de roupas bizarras, largas e coloridas, cabelos grandes e encaracolados... sem os seus óculos...
Lentamente, estendeu-lhe a mão e conseguiu falar, num fio de voz:
- Olha, filho... os seus óculos... Você os esqueceu no toalete...

quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

FORMANDOS DE 58


 Quando eu cheguei já estavam todos reunidos. No mesmo local, perto da faculdade, onde nos bons tempos de estudante batíamos papo entre uma aula e outra. Faziam uma algazarra sadia, como na época em que eram um grupo de quase adolescentes semirreponsáveis, em meados de 50. Soube depois que todos os anos se encontravam para relembrar aqueles que foram, sem sombra de dúvida, os melhores anos de nossas vidas.
Para mim, entretanto, era a primeira vez, pois pelo menos naquela curiosa situação, eu estava debutando. O grupo era grande, quase todos os antigos colegas estavam presentes, trocando saudações e abraços efusivos. Alguns vinham acompanhados das esposas, outros sozinhos, mas todos com a mesma alegria que sempre caracterizava os encontros, alegria de quem não se via há muito, muito tempo.
Eu fui o último a chegar. Um tanto desconfiado, sorrindo meio amarelo, sentindo-me ao mesmo tempo veterano e calouro. Se nem mesmo sabia sobre aquele encontro... Quando entrei deparei, perto da porta, com o Antonio, com quem, na faculdade, eu formava uma dupla inseparável. Ao ver-me, ele exclamou:
- Mas olhem só quem vem chegando! 
Todos se voltaram para mim, logo envolvendo-me em carinhosos abraços de boas-vindas. Eu não esperava recepção tão calorosa, e a atitude dos colegas fez com que se dissipasse o meu desconforto inicial. Que boa gente, aquela...
Logo depois deixei de ser novidade e passei a ser não o “calouro” sem jeito e sim apenas mais um colega entre eles. Eu já estava inteiramente à vontade no meio da minha velha turma. Os assuntos eram os de sempre. Ninguém se interessava pelo que o companheiro foi ou deixou de ser, ao longo da vida. Se rico ou pobre, famoso ou obscuro,  feliz ou infeliz. Não se contavam as vantagens nem se choravam os fracassos. Estávamos irmanados não pelo que fomos, mas sim pelo que somos. Amigos, companheiros da turma de 58.
Eu e Antonio não nos víamos há muito tempo, por isso afastamo-nos um pouco daquele reboliço para pormos os assuntos em dia.
- Você demorou a chegar-se a nós, Maurício...
- É verdade, meu caro. Mas nem sempre a gente faz o que quer, não é mesmo? Na verdade, quase nunca. E vou lhe confessar uma coisa: eu nem sabia da existência dessa reunião...
- Para mim também foi surpresa, quando vim pela primeira vez. Mas, diga-se de passagem, uma bela surpresa!
- Não há dúvida, a turma está cada vez mais unida. Dá gosto ver...
Antonio bateu amistosamente nas minhas costas:
- Amigos... para sempre!
- Para sempre! - repeti. E demos uma gostosa gargalhada - Para sempre mesmo !
- E eles? - perguntou-me, apontando, com um movimento de cabeça, para um pequeno grupo que começava a tomar lugar nas mesas para o almoço.
- Estão firmes, não? - disse eu.
Antonio demorou-se, pensativo, vendo o pequeno grupo começar a ser servido pelos garçons. Não era de tristeza a sua atitude, mas talvez de frustração por não poder ir lá abraçá-los, um por um.
- Pena que não podem nos ver... Seria tão bom se todos já estivessem aqui conosco...
Achei graça naquela observação. Era um desejo sincero do Antonio, mas fiquei imaginando como seria recebida por qualquer um do pequeno grupo a sugestão do meu amigo...
Ele voltou a falar:
- Mas ao jeito deles também estão se divertindo, não é? E até que ainda estão muito bem dispostos! Acho que vai levar um bom tempo até que todos estejamos juntos por aqui...
- Você acha?
- Sim, uns quinze ou vinte anos...
- Qual o que! Muito menos... Você se esquece que até o ano passado eu estava lá comemorando com eles? E eu estava também muito “bem disposto”, no entanto, olhe-me aqui, debutando junto a vocês... Como eu disse, nem sempre é a gente que comanda o barco. Você vai ver, há de demorar muito menos do que você imagina, para estarmos todos juntos novamente...
- É... Os formandos de 58...


sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

VISTA CHINESA


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VISTA  CHINESA




-Miguel! Mas que surpresa! E você também, Marina! Nunca imaginei que fossem vocês, quando a campainha tocou! Vamos, entrem!
- Pois é, Rubens... Resolvemos viajar na última hora. Desculpe-nos não ter avisado...
- Ora, Miguel, nem precisava... Minha casa está sempre aberta...
- Você sabe, vida de fazendeiro é de sol a sol, nas lides do campo. Não sobra tempo para nada. Mas desta vez fechei os olhos, deixei tudo para trás, e vim com Marina curtir um pouco o Rio de Janeiro.
- Fez muito bem. Temos sempre muito a conversar... E você, Marina? Veio ver as novidades do Rio?
- Também... Mas vim mesmo foi para conhecer Raquel. Incrível, aquela história da praia, não? Eu não acreditaria, se alguém me contasse algo parecido. Mas não tive como duvidar do Miguel...
- É verdade. Acho que nem eu mesmo acreditaria, se me contassem...
- Onde está ela?
- Já deve estar chegando, não foi muito longe. Você vai gostar muito dela, eu garanto. Não é mesmo, Miguel?
- É o seu amor que a faz ainda mais especial do que ela já é. Eu a conheci com dezesseis anos... e isso foi há apenas... dois anos...
Rubens achou graça da observação do amigo.
- Para um estranho, difícil de explicar... Ainda mais porque Raquel acabou de comemorar seus quarenta e oito anos... Um tanto inusitada a maneira como a conheceu...
- Miguel só fala nisso, Rubens. Ah, como eu gostaria de ter participado daquele encontro!
- Quem sabe, Marina? Certamente Rubens irá nos levar a uns passeios pelo Rio. E do jeito que as coisas acontecem com ele, nunca se sabe...
- É verdade. Às vezes eu mesmo estranho... – e, depois de pequena pausa - Miguel... você sabe que aquele episódio da praia não foi o primeiro?
- Não? – Miguel exclamou, já interessado.
- Já tive outros parecidos. E há muito tempo que eles vêm acontecendo. No primário, no colégio do Professor Manga, por exemplo. Esse foi um dos primeiros. Em outra ocasião, na estrada, enquanto dirigia indo para Curitiba, outra vez aconteceu. Ou ainda quando era estudante de arquitetura, depois de uma certa prova... E, como gosto de escrever, resolvi adaptar essas minhas lembranças para pequenas histórias, é claro que mudando os personagens. Foi assim que escrevi “A Praia”, “O Manga”,“Diálogo em Dois Tempos”... Assim, estando registradas, não esqueço os episódios...
- Eu não esqueceria nunca! Mas, Professor Manga? Era apelido?
- Não, não... Era o sobrenome dele. Sabe? Um homem adiante de seu tempo. Sabia como dirigir um colégio... Tomava atitudes e solucionava problemas com uma psicologia inata. E isso em mil novecentos e quarenta e sete, quando tínhamos acabado de sair da palmatória... Era amigo de todos, não havia quem não gostasse dele.
- Palmatória... Que exagero! Mas você não me contou nenhum desses episódios, digamos, “sobrenaturais”.
- Talvez porque a gente se veja muito pouco, Miguel. Um dia eu lhe conto, se você tiver paciência para me escutar. Mas, olhe, Raquel vem chegando!
O ruído da chave na porta anunciou a presença de Raquel. Quando ela viu o casal, abriu ainda mais seus grandes olhos negros e exclamou:
- Meu Deus! É você, Miguel? Mas que surpresa agradável! – e voltando-se para Marina - E você deve ser Marina, não? Rubens fala muito sobre vocês dois. Que prazer encontrar vocês...
- Raquel, você está cada vez mais bonita...
Ela abraçou Miguel:
- É o amor, Miguel... A longa espera por Rubens fez o amor crescer ainda mais... Eu nunca me senti tão feliz como agora...
- Posso imaginar. Trinta anos de espera!
Rubens atalhou a conversa:
- E então, Miguel? Vamos passear? Quanto tempo vocês pretendem nos dar o prazer de estar conosco?
- Uma semana, um pouco mais, talvez. Não posso me ausentar muito.
- Olhe, da outra vez passeamos pela orla, não foi? Pois bem, vamos para o mato, agora, que o Rio tem de tudo para mostrar. Floresta da Tijuca, Alto da Boa Vista, Capela Mayrink, Vista Chinesa, Cascatinha, Santa Tereza... Vamos passar de bondinho por cima dos Arcos da Lapa... O Corcovado e o Pão de Açúcar ficam para o fim, você já os conhece.
- Vista Chinesa? O que é?
- É um quiosque construído pelo prefeito Pereira Passos, na estrada D. Castorina. Uma homenagem aos chineses que vieram para o Brasil, “importados” de Macau para tentarem o cultivo de chá e de arroz, no Rio de Janeiro. Isso ainda em fins do século dezenove. Mas nada deu certo, e eles ficaram perambulando pela cidade. Só uma pequena minoria voltou para a China. E o quiosque tornou-se um dos pontos turísticos da cidade. É linda a vista lá de cima. Não tem nada de chinesa... É bem carioca...
- Você já me convenceu. Vamos começar por lá, então...
- E é bom porque você vai conhecer também um pouco da história do Manga.
- Ele devia ser mesmo especial, pelo que você fala. Mas o que tem ele a ver com a Vista Chinesa?
- O Manga era assim: pelo menos um domingo por mês ele e sua mulher, D. Ena, juntavam um grupo de vinte ou trinta alunos, subiam conosco de bonde até o Alto da Boa Vista, e de lá descíamos a pé até cá em baixo. Uns bons quilômetros, pois as caminhadas duravam de manhã cedo até a tardinha. Era o que se chamaria hoje de ‘caminhada ecológica’. Eram três trilhas: uma, descia pela estrada das Canoas e acabava em S. Conrado. Outra, findava no Horto Florestal, e a terceira no Parque da Gávea. Duas delas passavam pela Vista Chinesa, onde fazíamos sempre uma pausa para o almoço. Por causa desses passeios é que acabei indo lá muitas vezes.
“Eu não perdia nenhum deles. Lembro-me até de uma vez – a única em que faltei – que amanheci com um febrão dos diabos. Fiquei o dia inteiro triste, de cama, acompanhando, em pensamento, o passeio que meus colegas estavam fazendo. Parecia-me que caminhava junto a eles. Em dado momento eu me vi na Vista Chinesa. Estava de costas para o quiosque, apreciando a vista que se descortinava à minha frente, e tão absorto pela paisagem, que deixei até de ouvir a algazarra que a criançada fazia. Para mim, o silêncio era total, exceto por um ruído que ouvia atrás de mim, de pás e picaretas, como se trabalhadores ali estivessem.
“Voltei-me, e... não mais vi a minha turma, nem tampouco o abrigo de concreto. Havia agora um grupo de operários e - coisa curiosa! - eram todos chineses, com roupas que eu não conhecia, alguns até com aqueles chapéus em forma de cones - como que escavando as fundações do que ainda viria a ser o quiosque. Um homem, apenas, não era chinês, e vestia-se com apuro, embora com roupas também estranhas aos meus olhos de criança. Este, quando me viu, veio ao meu encontro, sorrindo, e perguntou:
“- Bons dias! Por aqui, sozinho?
“Respondi com outra pergunta:
“- Quedê o quiosque?
“- O quiosque? Ora, você está com muita pressa... Se mal começamos a fazê-lo... Como é seu nome?
“- Rubens. E o seu?
“- Luis. Luis Rey. Rey com “y”, porque rei mesmo não sou...
“Ele disse-me aquilo sorrindo. Não me assustei com aquela aparição, pois sabia que eram apenas meus pensamentos divagando. Não me lembro de mais nada do que aconteceu, além do nome dele, que guardei por causa do “rey” com “y”... Se a conversa continuou ou não, não sei, só sei que voltei a imaginar-me com o grupo, agora descendo a estrada D. Castorina na volta para casa.”
- Curioso, esse seu sonho. Pena que não se recorde de mais nada.
- Não foi sonho, Miguel, tampouco um delírio, que a febre não era tão alta assim. Foi apenas uma divagação da minha mente. Veja você: nos meus nove anos, imaginei os trabalhadores serem todos chineses, com certeza porque, se a vista era chinesa... os que a construíram só poderiam ser chineses. Coisa de criança...
- E por que você teria imaginado o quiosque em construção, e não já pronto? Por que será que você naquele instante deixou de ver o grupo?
- Isso eu não sei. Talvez minha paixão por projetos e obras seja mais antiga do que penso. Se naquela idade o que fui imaginar foi já uma escavação para fundações, será porque já teria alguma tendência para a arquitetura.
Miguel bateu nas costas do amigo:
- Então, quer dizer que desde criança sua mente divaga...
- Pois é... Acho que estou sempre no mundo da lua... Mas agora vamos voltar à realidade: é hora do almoço. Vamos deixar nossos passeios para amanhã, e reservar a tarde de hoje para matar as saudades.
E, voltando-se para Raquel:  
- Raquel, vamos acomodá-los. Esses dois devem estar querendo tirar a poeira dos sapatos. Se bem que poeira em avião é meio difícil...

No dia seguinte, cedo já estavam de pé. Miguel e Marina, por força dos hábitos da fazenda, e Rubens e Raquel já entusiasmados com a oportunidade dos passeios que as visitas lhes cobravam.
Após o café, rumaram para o Alto da Boa Vista. De lá, desceram pela estrada D. Castorina, e pouco depois chegavam à Mesa do Imperador. Rubens refez o trajeto que tantas vezes fez a pé com o Professor Manga.
- Aqui era onde o Imperador D. Pedro II parava para o lanche, nas suas caminhadas...
- Com certeza, “caminhadas” em cima de carruagens. O Imperador não devia ser muito afeito a passeios a pé... Mas, olha... Era muita coragem e também muita responsabilidade de seu professor, para tocar o rebanho a pé por esta estrada... Nunca ninguém se machucou, nunca houve um acidente?
- Eram outros os tempos, Miguel... Passava um carro por hora, éramos donos da estrada... Não havia violência, nem assaltos... Perigo nenhum...
Logo adiante surgiu, no meio de uma curva, o quiosque da Vista Chinesa.



- Veja, Miguel, lá está. A Vista Chinesa. Até aqui eram pelo menos quatro horas de caminhada.
Ele parou o carro em um arremedo de estaciona-mento, à beira da estrada. Miguel e Marina foram para o peitoril que circunda a construção, para apreciar a vista... carioca. Marina dirigiu-se ao seu anfitrião:
- Que beleza, Rubens! Esta cidade é mesmo maravilhosa, até pelos cartões postais que nos proporciona em cada curva da estrada!
E, voltando-se para a construção:
- E o quiosque é também muito bonito. Vê-se que foi construído com esmero. O teto duplo, as gárgulas simbolizando, talvez, os famosos dragões chineses, e toda essa alvenaria imitando galhos de árvores retorcidos... Quanto trabalho! Obra de artistas...
Estavam assim, apreciando os detalhes da construção, quando Miguel percebeu que mais alguém, um pouco afastado, também debruçava-se no peitoril:
- Olhe, Marina, não somos os únicos turistas por aqui. Vamos saber de onde ele vem.
- Você e sua mania de conversar com todo mundo! Deixe o homem em paz...
Miguel aproximou-se do homem. Era um velhinho, já bastante idoso, que parecia nem ter notado a presença dos outros visitantes. Já bem perto, viu que ele tinha feições asiáticas.
- Esse é chinês... Viu, Marina? Veio de longe...
E acercando-se do velho arriscou, mesmo em português:
- Bom dia, senhor. Tourist?China? From China?
O velhinho sorriu:
- Não, senhor... Já tenho tanto tempo de Brasil que me considero brasileiro...
- Ora... Mora mesmo aqui no Rio, então...
- Sim, eu nunca saí daqui, depois que cheguei da China...
Voltou-se, admirando o quiosque:
- Eu ajudei a construir ele...
- Como? O senhor trabalhou na obra do quiosque?
- Sim... Desde as fundações até a última gárgula...
- Não me diga... – e, falando mais alto – Rubens! Venha cá, Rubens! Imagine! Esse senhor trabalhou na construção da Vista Chinesa!
Rubens aproximou-se, curioso:
- Bom dia, senhor! O senhor então deve ter muitas histórias para contar...
- É verdade, meu filho... Histórias até de antes dessa construção... Histórias da minha juventude, um tanto sofrida, mas nada que me fizesse desistir de caminhar...
- Sofrida? Por que, senhor?
Ele olhou para os quatro, um por um, como que examinando-lhes a alma. Depois de uma pausa, continuou:
- Vocês não eram nem nascidos, quando cheguei aqui com mais uma das tantas levas de imigrantes. Isso foi em 1900, com 15 anos de idade e cheio de esperança, para trabalhar nas lavouras de arroz. Mas nada deu certo, e quando desistiram das plantações ficamos sem nada, perambulando pelas ruas, mendigando uma refeição. Vocês imaginem, um estrangeiro, sem falar nada de português, abandonado, sem emprego... E éramos muitos nessa situação, meu filho. Mas... não vamos contar desgraças, ? Se estou aqui firme, com meus oitenta e cinco anos bem vividos, foi graças ao Dr. Pereira Passos, que mandou construir esse quiosque, acho até que para pedir desculpas a nós... Todos os operários que trabalharam aqui eram chineses, vindos das roças de arroz. Foi uma homenagem que o prefeito quis nos fazer.
Miguel olhou para Rubens, Rubens para Miguel. Todos os operários... chineses?...
O velhinho continuou:
- Só quem não era chinês era o Dr. Luis. Ele acompanhava a obra de perto, queria que saísse tudo perfeito.
Imediatamente Rubens ligou as palavras do antigo operário à sua imaginação de criança.
- Esse Dr. Luis... Seu nome completo era Luis... Rey? – Rubens perguntou, já com a voz embargada.
- Sim, senhor. Luis Rey, né? Era o arquiteto. E ele fazia questão: “Rey com ‘y’... porque rei mesmo não sou...”,brincava conosco. Ele era uma pessoa muito boa. Tratava nós todos muito bem, ouvia nossas ponderações, aceitava às vezes sugestões que a gente dava, era muito humano, né? Muito humano, muito humano.
Coincidências não existem, pensou Rubens. Que história era aquela? Que mais saberia aquele senhor, que tivesse a ver com sua imaginação de criança? Luis Rey, “Rey com y”, operários chineses... Foi Miguel, já também intrigado e lembrando-se do que acontecera na Prainha, que tentou extrair algo mais do velho operário:
  - E então? Que histórias o senhor deve ter...
- Muitas. Mas... uma delas me impressionou muito. Lembro-me bem. Um dia, estávamos ainda começando as escavações para assentar as fundações das pilastras, quando apareceu por aqui um menino – não tinha mais que nove anos – e o Dr. Luis puxou conversa com ele. Ele mostrou interesse pelo quiosque, querendo saber como iria ficar depois de pronto, e fez tantas perguntas, que o Dr. Luis acabou por mostrar-lhe os desenhos do projeto. E, o senhor quer saber? ele entendeu tudo!
Miguel voltou-se para o amigo:
- Rubens... Que quer dizer isso?
Rubens respondeu, mas de olhos fixos no chinês:
- Não sei, não me lembro... Diga-me, senhor: O arquiteto mostrou os desenhos do quiosque para um menino de... nove anos?
- Isso mesmo. E ele começou a dar palpites, imagine! Primeiro, disse que ia ficar muito bonito, sim, mas que podia ficar mais bonito ainda.
“- Mais bonito ainda? Como? – perguntou-lhe o Dr. Luis, é claro que com evidente descrédito. Mas o menino não se deu por achado. Ele era muito esperto.
“- O senhor não acha que tem colunas demais pra segurar o teto? O senhor desenhou com oito colunas, vai parecer um paliteiro... Acho que se fosse só com seis ia ficar muito mais bonito.
“Meu senhor, imagine só... Primeiro o Dr. Luis riu muito da comparação. Então olhou para o desenho, depois para o menino, que também lhe sorria. Demorou muito a responder, examinando detidamente a folha de papel. Depois disse:
“- Sabe que você tem razão? Vou modificar esses desenhos! Há de ficar melhor com seis colunas!
“Eu fiquei surpreso vendo um doutor dar ouvidos a um pirralho. Mas... olhe para isto” – e apontou para a construção – “não ficou mesmo bonito?”
O coração de Rubens batia descompassado. Raquel já imaginava um desfecho no mínimo insólito para aquele encontro. Miguel e Marina, mudos. Seria, sem dúvida, mais um daqueles casos que só aconteciam com Rubens.
- Meu senhor... então eram oito colunas, antes?... – Rubens voltou-se para os três, repetindo – Eu não me lembrava disso... oito colunas?...
O velho chinês nada percebeu.
- Oito colunas, né? Mas não foi só isso.
- Não? O que houve mais?
- O menino disse:
“- O senhor vai botar um dragão em cada bico do telhado?
“- Sim. São as gárgulas, como se chamam esses dragões. Que é que você acha? Outra sugestão?...
“- Vai ficar muito bonito. – e, apontando para as gárgulas, no projeto - Mas por que eles estão olhando para cima?
“- As gárgulas são sempre colocadas de cabeça erguida. São sempre as guardiãs de qualquer monumento. Não vão deixar que nada de mal aconteça por aqui. Para os chineses os dragões são sagrados!
“- Sei... Mas a vista daqui é tão bonita... Por que elas não podem olhar para baixo, para apreciá-la também?
 “Eu me lembro que o Dr. Luis outra vez achou graça na observação do pirralho. Depois, ficou muito sério, né? Muito sério mesmo. Ficou um tempão examinando os desenhos, até que disse:
“- Meu filho, você vai longe... Vai ser um bom arquiteto...”
O ancião suspirou fundo, como que de saudades daquela época, e apontou para o alto, mostrando as gárgulas:
- Não é que o menino tinha razão? Há mais de sessenta anos que esses dragões velam pela cidade...
Rubens sorriu para o velho chinês e debruçou-se no peitoril, de olhos fixos na cidade que se movia lá em baixo. Raquel abraçou-se a ele, cúmplice que era de suas histórias. O sol de quase meio dia fazia brilhar a vegetação, tornando ainda mais bela a paisagem, emoldurada pelo Corcovado de um lado e as águas da lagoa ao centro. Era a mesma de mil novecentos e cinco, quando ele ali havia estado com o Dr. Luis Rey (com “y”...), agora acrescida de todas aquelas construções, que se faziam pequeninas lá do alto, e de muitos ruídos, transformados em tímidos sussurros pela distância. Inconfundíveis sussurros da cidade grande.
 Miguel e Marina, ao seu lado, nada falavam.
Permaneceram assim por longo tempo, degustando silenciosamente as palavras do velho chinês. Nenhum dos quatro ousava tecer um comentário que fosse, até que Marina resolveu acabar com o silêncio.
- Rubens... Aquela história do Manga... Vamos para casa, não vejo a hora de ouvi-la...





quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

O ANJINHO SORRIDENTE


O ANJINHO SORRIDENTE
Direitos autorais reservados

Março - 2007





Essa história se passou há muito tempo, em Ressaquinha. Perto de Barbacena.
Dorico era um caboclo esperto. Não dava ponto sem nó. Mas não fazia mal a ninguém. Conhecia todo mundo na cidade, e todo mundo gostava dele, e tinha fama de que ninguém o passava pra trás. Mas era temente a Deus, por isso que, o que o Vigário falava, pra ele era lei. Era a palavra de Deus.
Igual a ele só o próprio Vigário, com todo o respeito. Aquele também não deixava que ninguém o fizesse de bobo, não.
Um dia, chegou na cidade um pintor. Ninguém nunca o tinha visto. Chegou, foi procurando logo o padre, porque tinha que pagar uma promessa. Por ter recebido uma graça, ele prometeu que ia pintar o teto da igreja, igual àque-as capelas romanas. Tinha procurado Ressaquinha porque a igreja era de N.S. da Ajuda, e ele, além de ser devoto dela, bem que estava precisando de uma ajuda. Os negócios de pintura não iam muito bem.
Pensando bem, não ia ter muito trabalho, não. A igreja era pequena, o teto era pequeninho, e ele ia cumprir com facilidade a promessa. Ia pintar a N.S. da Ajuda, toda rodeada de anjinhos, aqueles anjinhos cacheados que têm umas asinhas saindo do pescoço. O padre ficou todo satisfeito.
Prometeu, e assim fez. Levantou os andaimes, e todo dia subia lá, deitava de costas nas tabuas e ficava pintando o teto. Demorou bem umas três semanas.
Nas missas de domingo o padre só falava na inauguração do teto novo da igreja. Era uma expectativa só.
Até que chegou o dia.
Naquele domingo, a cidade toda estava lá, pra ver a pintura do homem. Dorico também, não podia perder a festa.
Foi aquela beleza. Ninguém prestou atenção na missa. Era o padre rezando e todo mundo com a cabeça espichada pro alto olhando a pintura. Realmente ficou muito bonito, o teto, o camarada era bom, mesmo. Estava lá a santa, imponente, com os olhos revirados pro alto, em cima de uma nuvenzinha branca, o céu azul, as mãos postas, aquele monte de anjinhos em volta dela, uma beleza.
Foi uma festa.
E o pintor, o que queria mesmo, conseguiu: pegou o bar do Juca, o restaurante do Miguel e mais um outro lá, pra pintar pelas paredes aquelas paisagens que a gente conhece. Depois sumiu. Ganhou o dinheirinho que tinha que ganhar por ali e foi embora. Vai ver que pra pagar outra “promessa”...
Mas o teto da igreja ficou lá. Aquela boniztea... Dorico estava entusiasmado. Nunca tinha visto uma pintura tão bonita. Toda vez que ia na igreja ficava prestando atenção no teto, fuxicando, olhando os detalhes, olhando o rosto de Nossa Senhora, olhando as caras dos anjinhos, um por um...
Então, num domingo que ele estava lá distraído da missa, olhando pro teto, ele viu, bem num cantinho, que um dos anjinhos estava sorrindo. Disse baixinho, quase só pensando:
- Uai, por que é que esse pintor pintou aquele anjinho sorrindo? Se todos os outros tão com aquela cara de piedade, os olhos revirados como quem tá adorando a santa? Por que é que esse tá sorrindo?
Esperou a missa acabar e foi falar com o Vigário, na porta da igreja:
- Bença, padre Alonso.
- Deus te abençoe, meu filho. Quê que cê manda?
- Seu padre... por que é que tem um dos anjinhos que tá sorrindo?
- Sorrindo?...
- É, padre. Sorrindo. Aquele lá do cantinho.
- Vamos lá, vamos lá. Quero ver. Me mos-tra isso.
Entraram, os dois, na igreja. Dorico mostrou o anjinho pro padre.
E o padre:
- Qual é?
- Aquele, padre. Lá no canto...
- Mas aquele anjinho num tá sorrindo nada...
- Como que num tá sorrindo, se eu tô vendo ele sorrir? Se eu tô vendo o risinho na boca dele?
- Meu filho, meu filho! Eu acho que é só você que tá vendo esse anjinho sorrir. E isso é um bom sinal, viu? É um bom sinal!
- Só eu que tô vendo? O senhor não tá vendo aquele anjinho sorrindo?
- Meu filho, pra mim ele tá igual aos outros. Mas, olhe, fique tranquilo que é mesmo um bom sinal. Não conta isso pra ninguém, não, que pode atrapalhar... Vamos ver... Vamos esperar pra ver o que acontece...
Dorico saiu dali cismando com aquela história. Desde esse dia, nas missas, de vez em quando, ele olhava pro anjinho, estava lá ele sorrindo.
-Mas só eu que tô vendo? Não tô entendendo isso. 
E ia embora pra casa, de boca fechada, matutando no assunto.
Um dia, encontrou com o padre, na farmácia. O padre puxou-o pelo braço:
- Dorico, vem cá no canto. Quero te falar um negócio. Eu sonhei com aquele anjinho, Dorico! E no meu sonho ele tava sorrindo! - fez uma pausa, sério - Igual que você disse! Aquilo é um anjo enviado de Deus! - Outra pausa, ele mais sério ainda - Sabe o que é que ele me disse?
- O que, padre?
- Disse que quem consegue ver ele sorrindo, tá prestes a alcançar uma graça. E me disse mais: que se você todo mês der uma contri-buição pras obras sociais da igreja, você vai ter indulgência de todas as coisas mal feitas que você fez...
-Mas, seu padre, quê que eu fiz de mal feito, seu padre?
- Ah, Dorico, a gente sabe, esses negócios seus que você faz aí de vez em quando nem todo mundo pode ficar sabendo, né? A gente sabe disso, Dorico... Aproveita essa oportunidade... Dez mirréis, Dorico! Dez mirréis por mês, isso daí num é nada... Quem sabe?
- Dez miurréis, padre? Dez miurréis é dinheiro, em?
- Mas você vai ter indulgência plena! De tudo o que você fez, imagina só!
Dorico pensou, pensou, e resolveu acertar com o padre. Valia a pena. Ele nunca ia desconfiar da palavra de um anjo enviado de Deus.
Dali pra frente, todo mês lá ia lá o Dorico procurar o padre e pingar dez mil réis na mão dele. E o padre enfiava logo no bolso, aquele ali o sacristão, que cuidava das contas da igreja, não via não.
E o anjinho, sorrindo...
Um dia, apareceu na cidade, de volta, o pintor. Quem sabe se podia ter algum outro trabalhinho pra ele, algum outro restaurante para ele pintar as paredes...
Quando Dorico encontrou com ele na rua, lembrou da história dos anjinhos. Não que ele desconfiasse, mas...
- Oi, como é que vai o senhor? Quanto tempo...
- É, tô aqui vendo se arranjo mais algum servicinho, mas tá difícil...
Então Dorico falou:
- Me diz uma coisa: o senhor pintou lá no teto da igreja, aqueles anjinho tudo igual? Tudo igualzinho?
- Pintei... Todos eles com aquela carinha, aquelas asinhas saindo do pescoço, tudo igual, do jeito que eu vi numa gravura...
- Aquele anjinho lá do canto, aquele bem no cantinho... É igual aos outros?
Ele disse:
- Ah, não, agora que eu tô lembrando. Tem um anjinho lá no canto, que eu pintei ele sorrindo...
Dorico olhou pra ele, sério.
- Cê pintou o anjinho sorrindo?!
- Pintei. Não sei por que, mas padre Alonso me pediu que pintasse o anjinho sorrindo...
Dorico esfriou. Aquele safado daquele padre estava passando ele pra trás... Mas ele ia saber dar o troco direitinho... Virou pro pintor, despedindo-se dele, e falou:
- Trabalho de primeira, viu? Ficou tudo muito bonito! Meus parabéns!
- Ah, muito obrigado...
Quando o homem se afastou, ele foi correndo procurar o padre.
- Bom dia, padre Alonso. Bença...
- Bom dia, Dorico. Abençoado. Tudo bem?
- Tudo bem, padre Alonso. Mas olhe: tá difícil dar aqueles dez miurréis por mês. Tá muito difícil... Quem sabe, eu tava aqui pensando... quem sabe em vez dos dez miurréis por mês eu possa lhe dar, assim, todo mês, assim, eu... eu lhe dou uma galinha? Aí já é uma despesa que o senhor não faz, pra comer, e... esse dinheirinho da despesa o senhor já bota nas obras sociais da igreja... Por que, ó, puxar dez miurréis todo mês pra dar tá difícil pra mim, não tô conseguindo não, seu padre...
O padre olhou pro Dorico, pensou bem, e disse pra ele mesmo:
“Bom, antes uma galinha por mês do que ficar sem os dez mirréis. É quase a mesma coisa, ta bom.”
E disse pro Dorico:
- Tá bom, Dorico.Vamos fazer isso.
- E a indulgência, padre?
- A indulgência continua a mesma. Cê me dá uma galinha por mês, pronto.
E assim foi. Todo mês estava lá o Dorico com uma galinha debaixo do braço. Um mês era uma branca, no outro uma galinha vermelha, uma galinha d'Angola... Cada mês uma galinha diferente. Tudo bem.
Mas um dia, a Ambrosina, que era a cozinheira do padre, chamou o padre Alonso e falou:
- Padre Alonso, tá acontecendo um negócio muito esquisito. O senhor sabe, eu cozinho pro senhor há quanto tempo. O senhor come seus franguinhos aí, eu que faço, eu que vou lá no galinheiro, eu mato os franguinhos... Eu conheço aquelas galinhas todas, conheço as que nascem, as que morrem, conheço todas elas. E tá acontecendo um negócio muito esquisito.
- Ora, Ambrosina, que é que pode tá acontecendo de esquisito com as galinhas, no galinheiro? Que é que pode ser?
- Não sei, padre Alonso. Mas acontece que todo mês que eu vou lá, pra catar uma bichinha pra fazer pro senhor, eu dou falta de uma galinha.
- Dá falta da galinha?
- É, seu padre. Dou falta dela, por mais que procure. Mas o pior o senhor não sabe. Que daí um, dois dias ela aparece de volta. A mesma galinha. Como é que pode isso, seu padre?
O padre, que não era besta nem nada, viu logo qual era o plano do Dorico, pra se livrar de dar o dinheiro. Pegava a galinha dele, de noite, no escuro, e no dia seguinte entregava a mesma galinha pro padre, em pagamento da indulgência.
Ele pensou igualzinho ao outro: "Aquele safado do Dorico tá me passando pra trás... Mas... eu não tenho como, como é que eu vou desmascarar ele? Vou dizer que ele tá me roubando galinha? Não posso... Ele vai mostrar o anjinho que ri pra todo mundo... Acho melhor eu ficar sem só essa penitência e dar o caso por encerrado..."
Procurou o Dorico, e disse:
- Vem cá, Dorico... Sonhei com o anjo, outra vez!
- Sonhou, padre? É mesmo? E o que é que houve, dessa vez?
- Cê sabe qual foi o recado que ele mandou? Que a sua indulgência já tá paga! Cê não precisa pagar mais nada, não precisa me dar galinha nenhuma, não precisa me dar dez mirréis, já tá tudo pago! Fica o dito pelo não dito... E você se livrou dos pecado daquelas coisas lá que você fazia...
Dórico deu um sorriso maroto:
- Que é isso, padre, eu nunca fiz nada... Mas... se o anjo disse que já tá pago, eu só tenho que agradecer a Deus Nosso Senhor, e fico feliz de saber que eu pude contribuir pras obras da igreja.
- Pois é, Dorico, então tá bom assim.
Mas acontece que ainda durante muito tempo continuou a sumir galinha do galinheiro. Era uma por mês, certinho como um relógio. Mas agora elas não voltavam, não. Iam pra outro galinheiro... Enquanto Dorico não repôs todos os “dez mirréis” que tinha dado pro padre, não parou de sumir galinha...
E o padre, calado... Chamou a Ambrosina e disse:
- Ambrosina, ó, acho que tem uma raposa por aí que tá pegando as galinha de noite, e eu não vou ficar de vigia não. Deixa isso pra lá, daqui a pouco ela vai embora pra outro sítio, e a gente se livra dela...
Daqueles dias em diante o padre passou a respeitar mais o Dorico...


E ainda aconteceu mais uma coisa engraçada.
Um dia, o Dorico viu o Doca falando com o padre, na porta da farmácia. Trocaram meia dúzia de palavras, o Doca meteu a mão no bolso, tirou alguma coisa e deu pro padre. Ele olhou prum lado, olhou pro outro, e enfiou a coisa no bolso da batina.
E Dorico:
- Eta ferro... Acho que o Doca também viu a risada do anjo...
Esperou o padre se afastar e chamou o Doca.
- Oi, Doca, tudo bem?
- Tudo bem, Dorico. Como vai?
- Tudo bem... Vem cá, me diz uma coisa: que tal cê achou aquela pintura lá do teto da igreja?
- Ah, mas é muito bonita, né? Gostei muito!
- E me diz outra coisa: você viu, lá no cantinho, um daqueles anjinho sorrindo?
Doca olhou pra ele desconfiado, e falou, baixando a voz, como se alguém estivesse na escuta:
- Cê também viu, Dorico? Ó, a gente tem que fazer segredo daquilo!
- Eu vi. Cê tá pagando a sua indulgência, não tá? Dez miurréis? Todo mês. dez miurréis?
- Tô. Como é que cê sabe?
- Porque eu paguei a minha também. Ó, qué um conselho? Propõe pro padre, em vez dos dez miurréis, dar uma galinha, todo mês. Garanto que ele vai ficar muito satisfeito, e você inda vai sair ganhando.
- Uma galinha, Dorico? E o padre vai aceitar isso? E eu vou sair ganhando, por que?
- Vai por mim... Porque com certeza ele ainda vai lhe dizer que a sua indulgência já tá paga. Pode estar certo que ele vai dizer isso... Vai por mim, Doca... Cê sabe que eu não dou ponto sem nó...