domingo, 31 de julho de 2011

CINE PATHÉ


CINE  PATHÉ



Não que a reunião estivesse desagradável; não estava. Mas aquela alegria, embora sadia, não me contagiava, pois eu estava sozinho de amizades e intimidades. Cumpria apenas um dever social com a minha presença; se não me era penoso estar ali, também nada me acrescentava de agradável, pois meu temperamento introvertido não me permitia expansões sociais.
Todos os aposentos da casa estavam franqueados aos convidados, que se espalhavam por eles em pequenos grupos. Eu os passava em revista, um por um, à procura de um recanto menos festivo que acolhesse a minha momentânea solidão, quando reconheci, em uma pequena sala, entre quatro ou cinco pessoas que conversavam moderadamente, um velho conhecido com quem tinha bastante afinidade. Ele também me viu e fez sinal para que eu me aproximasse, convidando-me a participar da conversa, nestes termos:
- Eis aqui quem tem uma boa história para nós.
Surpreso, retruquei:
- Como assim? Que história eu poderia ter que interessasse a vocês? - perguntei, sentindo a minha timidez ameaçada, ao mesmo tempo em que me incorporava ao grupo.
- A do Cinema Pathé. - voltou a falar o amigo, relembrando antiga confidência que eu lhe havia feito - Nosso assunto é justamente esse, os casos que não se explicam...
Pronto: ele me havia apanhado de surpresa e minha escusa não seria um gesto delicado. Nunca havia comentado com mais ninguém além dele sobre o caso, pois seria levado em conta de um relato de ficção, apenas. E não me agradava a idéia de narrá-lo assim, de supetão, no meio de uma festa, a "velhos amigos" aos quais fora apresentado naquele instante, porque a narrativa pediria o uso constante da primeira pessoa, o que não me agradava muito. Além do mais, não havia provas - seria acreditar em mim ou não. Cheguei a ponderar tudo isso, mas os meus novos companheiros de conversa não abriram mão, atiçados pela curiosidade provocada pelo outro.
Formavam um grupo heterogêneo, composto de auto-apresentados durante a festa, agora unidos pela expectativa em torno da minha narrativa. Movido pelo descompromisso que me conferiria a sua dissolução no fim da festa, resolvi narrar o caso que havia confiado ao meu colega, que, médico como eu, interessava-se também por esses assuntos, e cuja irreverência agora me forçava a fazê-lo.
E assim, tomei a palavra.
- Eu havia tido um dia estafante no consultório, e resolvi entrar em um cinema antes de ir para casa. O filme era ameno e a penumbra facilitaria o meu relaxa-mento.
Entrei no salão já com a sessão iniciada, mostrando os jornais e trailers costumeiros. Recostei a cabeça para acostumar-me à escuridão, e desviei os olhos da tela, pois não me interessavam muito aqueles prólogos do programa.
Examinava os caprichosos relevos do teto, enquanto pensava no obsoletismo em que caíram os jornais da tela, provocado pelos atuais meios de comunicação, que nos põem a par das notícias no mesmo instante em que elas acontecem. Lembrei-me então da época da segunda guerra mundial, quando o cinema era o único meio de transmissão de imagens, as quais tinham o importante papel de confirmar as notícias ouvidas dias antes pelo rádio...
Absorto por estes pensamentos, nem percebi que o filme havia começado. Endireitei-me na poltrona e resolvi prestar atenção na tela, embora estivesse precisando era de descanso.
Mas a cena, em preto e branco - o que já estranhei - se passava na Cinelândia, mais exatamente em frente ao Cine Pathé. Não entendi. Era um filme estrangeiro, o que eu iria ver. Haveria alguma cena que se passava no Rio? Eu achava que não, mas ali estava a Cinelândia, sem dúvida. A ambientação do filme eram os anos 20, pois os trajes das pessoas, os automóveis, o próprio local pareciam ser daquela época. A ausência das cores tornava a fita ainda mais real. Nem a época, nem o Rio de Janeiro eram cenários para o filme que estava anunciado nos cartazes. Mesmo assim, eu aguardava o desenrolar daquele inusitado início, quando, já agora acostumado à escuridão, baixei casualmente os olhos para a platéia.
Para surpresa minha, não vi ninguém. Olhei para a frente, para os lados, para trás. Eu estava sozinho.
Pensei: “Impossível. É um filme premiado. Mesmo que não fosse, não me lembro de ter ouvido falar que alguém tenha assistido a uma sessão de cinema sozinho!”
Na tela, a Cinelândia e o Cine Pathé, “de saudosa lembrança”, como diriam os mais chegados à nostalgia.
Levantei-me e resolvi averiguar por que eu seria o único espectador, e que filme era aquele, afinal. Mas lá fora tudo estava normal. Cruzei com outras pessoas, que iam entrando na sala de projeção. Olhei disfarçadamente para o recipiente onde o porteiro jogava os bilhetes recolhidos. Estava bastante cheio. Onde estava aquela gente? Tive vontade de perguntar alguma coisa a alguém, procurar o gerente, mas seria ridículo. Perguntar o quê, afinal?...
Voltei para a minha poltrona, já me imaginando vítima de algum mal passageiro, devido ao stress pelo dia pesado que tive, mas sem me convencer muito do meu diagnóstico, e maldizendo-me por certamente ter perdido o lugar.
Porém, quando novamente mergulhei na penumbra nada havia se alterado. Eu estava novamente sozinho na sala de projeção, era o único que via aquelas cenas da Cinelândia, com os carros passando em frente ao cinema - como antigamente - e as pessoas andando pela calçada. Por que estaria acontecendo aquilo? Eu vira outras pessoas entrando no cinema. Onde estavam elas?
Tinha meus olhos pregados na tela. Maquinalmente atravessei o corredor, entrei em qualquer fila e sentei-me. Tinha receio de interromper aquela “alucinação”, que haveria de ter um fim. Percebi também que o silêncio era absoluto. Tanto no salão como na tela, a ausência de sons chegava a incomodar. Nem a máquina de projeção emitia qualquer som. Tampouco os ruídos da rua eram ouvidos.
Na tela, a cena por fim começada a mudar. Algo como se o cineasta usasse uma lente “zoom”. A imagem, fixada na fachada do cinema, começou a aproximar-se até a câmera focalizar apenas a porta de saída, que enchia agora toda a tela. Voltou a cena a ficar parada.
De repente alguém aparece saindo do cinema. Um rapaz bem trajado, no rigor da moda... da época. Deixou a penumbra e mostrou-se à claridade noturna da calçada. Via agora nitidamente a sua fisionomia.
Era eu.
Sem sombra de dúvida, identifiquei-me com clareza. Não tanto pelos traços fisionômicos, bastante escondidos debaixo de um basto bigode, sob um chapéu coco e dentro de um impecável terno preto, colarinho duro e gravata bem aprumada. Mas não havia dúvida, era eu quem estava ali..
O homem parou na porta do cinema e ficou por algum tempo observando o movimento da rua. Depois, com gestos medidos, acendeu um enorme charuto e chegou ao meio-fio, aguardando que o guarda interrompesse o fluxo de veículos para atravessar a rua em direção ao jardim.
Eu suava em abundância. Olhei de soslaio para a platéia, com medo do que iria constatar. Continuava sozinho. Voltei ao “meu” filme no momento em que o guarda fechava o sinal para que o rapaz atravessasse.
Porém, mal havia ele alcançado a metade da travessia, surgiu repentinamente um automóvel, em velocidade que me pareceu bastante acelerada para a época, e desobedecendo o sinal fechado avançou sobre o rapaz, atropelando-o com violência e lançando-o a certa distância. O acidente foi muito real. Positivamente, não era um filme. Lembro-me que vi seus sapatos serem arrancados dos pés, com o impacto, e que batia com a cabeça no chão, com a queda.
A “minha” morte havia sido instantânea. Formou-se o tumulto, e em segundos o corpo estava cercado de curiosos. O automóvel parou adiante e seu imprudente motorista juntou-se à multidão. Ainda me lembro bem da sua fisionomia, um tanto fria. Olhou o corpo estendido no asfalto e senti que disse, entre dentes: “Dane-se. O que foi feito, está feito”. E, na confusão reinante, partiu em disparada...
- Mas tudo isso você viu com toda essa riqueza de detalhes?
Era um dos meus ouvintes que interrompia a minha narrativa. A história devia estar prendendo mesmo a atenção de todos, pois nem os ruídos da festa que se desenrolava à nossa volta atrapalhavam o interessado acompanhamento.
- Sim, era tudo tão nítido que jamais esquecerei aquela cena.
- E depois? - pediu-me uma moça, sentada no braço da poltrona ao meu lado - Continue...
- Bem, após aquela cena fiquei petrificado. Na fachada, ressaltava o anúncio luminoso: “Cine Pathé”. Embaixo dele, continuava o tumulto. Novamente pareceu-me estar sendo usada a lente “zoom”. A câmera agora se elevava, afastando-se do local e mostrando uma panorâmica de toda a área, desde o luminoso da fachada até a Praça Paris, onde pude distinguir ainda o carro assassino, que demandava a Praia do Flamengo, em célere disparada. Enquanto via aquelas cenas, senti que era eu próprio e não a câmera que estava subindo, subindo, ampliando espantosamente o meu campo de visão, embora as trevas da noite e a ausência de cores no “filme” nivelassem toda a paisagem em tons de cinza.
Lembro-me que foi só nesta hora que, assustado, na platéia, falei, e falei alto: “Mas que será isso?!”
Foi então que subitamente ouvi alguém perguntar, do meu lado:
- O senhor está se sentindo bem?
Eram os primeiros sons que ouvia, cortando de vez aquele pesadelo que começava a me atormentar. Olhei para o lado. Era uma moça que se preocupava comigo, e com justa razão, porque eu estava desfigurado, suando por todos os poros e desencostado da poltrona, quase em pé. Vi também que o salão estava bastante cheio. Claro que aquelas pessoas tinham estado ali todo o tempo.



- Não,- respondi a ela - não estou nada bem. Não sei o que há comigo.
Ela convidou-me então a sair, disposta a me assistir. Com palavras de ânimo, disse que um pouco de ar puro me faria bem, talvez fosse um início de congestão. Eu sabia que não poderia ser, mas obedeci de bom grado. Não me aguentaria sozinho, de maneira nenhuma. Na sala de espera, sentamo-nos, para que eu me refizesse.. Eu respirava fundo, esforçando-me para que ninguém percebesse o estado lastimável em que me encontrava, mas pouco tempo depois já dava mostras de recuperação. Porém todas as imagens do “meu” filme ainda estavam muito nítidas e cheguei a ter vontade de narrar à minha benfeitora tudo o que acontecera, mas resolvi aguardar mais um pouco, a ver como iria acabar aquela novela.
Ainda fiquei refazendo-me algum tempo, durante o qual eu e minha acompanhante não trocamos uma só palavra. Eu, por total impossibilidade, ela por respeito ao meu estado.
Veio-me uma vaga idéia de que eu deveria evitar as imediações do Cine Pathé, que, aliás, nem mais existia, pois, em raciocínio imediatista, eu seria fatalmente atropelado mais uma vez, se desobedecesse ao “aviso”.
De repente, um estridente ruído de freios seguido de um baque surdo veio da rua. Um homem fora atropelado ali mesmo, em frente ao cinema. Voltei a cabeça ainda a ponto de vê-lo sendo arremessado à distância. Eu não estava no inexistente Cine Pathé, lógico. Era outro o cinema, mas a minha primeira reação foi fazer a ligação entre aquele acidente e o que havia acontecido comigo.
Logo depois caí na realidade. Não, não havia ligação nenhuma. Era meu dever de médico - isto sim - prestar socorro àquele homem, e não preocupar-me com as minhas “alucinações”. Ganhei a rua de um salto, e aos gritos de “sou médico!” cheguei até o local do acidente. O homem jazia de bruços, havia sangue - não muito, mas o bastante para tingir parte de sua alva cabeleira. Era já bastante idoso, o pobre coitado. Queriam movê-lo, mas não consenti. Examinei-o como pude, enquanto alguém chamava uma ambulância. Não havia lesão grave aparente, apesar da violência do choque.
Logo chegou o socorro, e ele foi removido com a técnica necessária. Declinei minha condição de médico, para acompanhá-lo até o hospital. Já na viatura lembrei-me que havia me esquecido inteiramente da minha benfeitora do cinema, a qual, aliás, jamais tornei a encontrar.
No Pronto Socorro aguardei que o ancião fosse atendido. Após alguma espera, o médico que o examinou chegou-me com notícias de que ele estava bem, lúcido, e insistindo em agradecer-me pessoalmente.
Quando entrei no quarto vi seu rosto pela primeira vez. Quase faltaram-me as forças. Ali estava, envelhecido, alquebrado pelo tempo mas sem sombra de dúvida facilmente reconhecível, o atropelador que havia tirado “minha” vida naquele inusitado espetáculo dos idos de 1920. Era ele o rapaz que fugira sem ser notado, de quem eu ainda parecia ouvir aquelas terríveis palavras:
“- Dane-se...”
Também ele pareceu reconhecer-me, pelo espanto que não conseguiu disfarçar quando me viu. Mas a sua fisionomia foi se suavizando e leve sorriso lhe veio aos lábios. E seu olhar já era calmo e tranquilo, quando me disse:
- Você está aqui...Você voltou para me perdoar, por certo! Durante toda a minha vida mal pude suportar o peso que carreguei na consciência... Mas agora estou aliviado... Obrigado... muito obrigado!
Rendeu-se, então, ao efeito dos anestésicos, fechando os olhos com um sorriso nos lábios.

Eu não sei até hoje se meus atentos ouvintes acreditaram ou não na minha história. Só sei que me ouviram, silenciosos e atenciosos, alheios à algazarra que regurgitava à nossa volta.
Exatamente como fiquei, alheio a tudo, enquanto me era exibido, o intrigante episódio no Cine Pathé, há alguns anos atrás...
Não importa. Narrei exatamente o que me aconteceu. É pena que nunca mais tenha conseguido encontrar o anjo bom que me amparou, no cinema. Ela poderia me ajudar novamente. Talvez acreditassem mais facilmente na minha história...



segunda-feira, 25 de julho de 2011

FRIDA




Eu estava viajando do Rio para Curitiba. Sozinho. Viagem tranquila. Estrada vazia, céu azul, boa temperatura. Clima ideal e condições perfeitas, para quem gosta de dirigir. Havia dormido em S. Paulo, estava, portanto, descansado para continuar a viagem.
Ia pensando na minha vida. Era sem maiores preocupações além das costumeiras, que todos nós temos. O bom emprego e um salário bastante razoável proporcionavam-me tranquilidade e segurança. Não tinha maiores ambições, dava conta do meu recado.
Uma vez por ano, férias. Era a minha rotina.
Pelo menos desta vez eu não sairia sozinho; teria companhia, pois havia sido convidado para passar uns dias com um casal amigo. Nós nos revezávamos. Ou eles vinham ao Rio, ou eu os visitava em Curitiba. A nossa amizade era sólida, desde que nos conhecemos em uma excursão turística, há alguns anos. Eles eram então apenas namorados, e no fim da viagem eu já estava convidado para ser padrinho do casamento, tamanha a afinidade que nos uniu. Ainda não tinham filhos, não por não quererem, mas por ainda não terem sido brindados com a gravidez.
- Quando eu engravidar, Felipe engravida junto, de tanta vontade... - Fernanda brincava. 
Mas por enquanto, na viagem, eu estava só. Aliás, eu não estava, eu era só, e isso fazia toda a diferença. De que adiantava o dia tão bonito, a viagem tranquila, o clima perfeito?... Eu trocaria tudo por uma companhia, por alguém que dividisse comigo alegrias e tristezas. Na viagem, no dia a dia, enfim, sempre... Por isso ia pensando na vida. Atento à estrada, mas distraído nos pensamentos.
Então comecei a ter uma curiosa sensação, a de não estar mais sozinho, de haver mais alguém no carro. “O que consegue criar uma mente dispersa...” - pensei, e comecei a alimentar a ilusão. “Quem eu preferiria estivesse aqui comigo?... Um a loura? Uma morena? Qual das duas?... Ou as duas?...” Então, criei as duas na minha cabeça. Gordinha, magrinha, bonita ou não tanto, como seria a minha acompanhante?
Mas, para minha surpresa, o que me veio na mente foi a imagem de uma... menininha. Foi tão inesperada a sugestão, que exclamei, em voz alta :
- Uma menina?
Ato contínuo, num impulso, olhei pelo retrovisor para o banco traseiro. Lógico, não havia ninguém. Ri de mim mesmo, pela ingênua conferida. Se eu apenas brincava, entre louras e morenas, por que tão de repente vinha-me à idéia a lembrança de uma menina? “Coisa curiosa... Nem estava pensando em nenhuma criança...” - pensei.
Viagem afora, a sensação continuou, cada vez  mais forte. Ela estava sentada bem no meio do banco traseiro, teria talvez uns seis anos, lourinha de cabelos cacheados como um anjo barroco. Usava um vestido branco com pequeninas flores azuis. E ria, um riso moleque de quem estava se divertindo com a situação. Nítida, na minha mente.
Relutei em dar outra conferida pelo retrovisor. Dirigia de olhos pregados na estrada, com receio de olhar para trás, como quem evita ser apanhado fazendo uma bobagem. Mas ela ria da minha indecisão, e parecia-me até ouvir o seu risinho infantil. Aquilo foi mexendo comigo. Parei, então, no acostamento, mas continuei olhando para a frente, já com a improvável certeza de ser real a minha acompanhante.
Disfarcei, como se estivesse sendo observado e olhei para trás, pelo retrovisor, fingindo para mim mesmo que queria ver algo mais longe, lá fora, na estrada. O banco continuava vazio. Tive coragem, então, de olhar diretamente para onde ela estaria sentada. Ninguém, claro.
Ainda fiquei parado um bom tempo, com as duas mãos no volante, pensando não sei em que. Depois, sem pressa, dei a partida no motor, engrenei a primeira e saí, devagar. Mas logo adiante entrei num posto de abastecimento, para - sei lá - lavar o rosto, tomar um café, talvez deixar por ali a menina e novamente enfrentar a estrada.
Foi o que fiz. Por algum tempo ainda viajei... sozinho. Mas daí a pouco lá estava ela novamente, no mesmo lugar. Não me assustei mais, tampouco olhei o retrovisor. Resolvi conversar com ela.
- Oi...
E ela, sorrindo :
- Oi...
- Como é o seu nome?
- Frida. E o seu?
- O meu? Maurício. Está gostando do passeio?
- Eu não estou passeando...
- Não? Então por que entrou no meu carro? Eu estou passeando...
- Eu queria uma caroninha... Maurício... E lhe conhecer, também...
Gostei da intimidade.
- Queria me conhecer? Mas, por que?
- Quantas perguntas... Não é sempre a criança, que faz um monte de perguntas?
- É, mas também não é sempre que as crianças de repente vão entrando assim, no carro da gente...
- Se você quiser, eu vou embora...
- Não! Por favor... Gostei muito de você... Só que você apareceu de um jeito que não é muito comum, e eu não sei se está certo eu levá-la para longe de seus pais.
- Eu ainda não tenho pais...
- Você ainda não tem pais? Como é isso?
- Não sei... Ainda não achei eles. Acho que ninguém me quer.
- Não, claro que não é isso... Quem não iria querer uma menina tão linda? Eu mesmo gostaria muito que você fosse minha filha.
- Você?...
- Claro, porque não?
- Ia ser muito engraçado...
- Que é que tem? Eu seria um pai muito bom, garanto. Por que ia ser engraçado?
Ela deu uma sonora gargalhada.
- Só se você me adotasse... Mas aí eu não ia ter mãe.
Não entendi. Parei de falar. Afinal, eu estava falando sozinho. As respostas de Frida vinham diretas na minha mente, eu nada ouvia. A sensação de sua presença continuava tão forte que eu não me dava conta de que ela... não existia. Eu me perguntava, e me respondia? Seria isso? Por que estaria acontecendo tão insólito diálogo? Afinal, até fazia sentido a “nossa” conversa, parecia caminhar para um fim definido.
Então, mais uma vez senti suas palavras em minha mente, respondendo minha muda pergunta:
- Mas eu existo... - ela pareceu responder-me, magoada com os meus pensamentos.
- Frida... Eu sei que você existe... - tentei consertar - mas eu não a vejo...
- Quantas coisas que a gente não vê, mas sabe que existe... Você vê o amor? - ela já não parecia mais tão criança - No entanto, as pessoas quando se amam acabam vendo o amor, umas nas outras...
- É, você tem razão. Mas eu gostaria muito de vê-la, pois, se estamos conversando...
- Você já sabe como eu sou...
- Eu sei. Logo que você entrou no meu carro fiquei sabendo como você era. Uma linda menina, lourinha, de olhos muito azuis e muito sorridente... Mas eu queria ver você.
- Então por que não tenta? Feche os olhos, fique com eles fechadinhos bastante tempo e pensando em mim. Quando não tiver mais nada na sua cabeça, só eu, tente me ver. Quem sabe? Mas, ó: não feche os olhos agora, antes pare o carro...
Frida ainda brincava. Convenceu-me de que era real. Fiz o que mandou. Quando abri os olhos, lá estava ela, sentadinha no banco de trás, rindo para mim.
- Viu? É só querer, que a gente consegue tudo...
Ela era linda. Estendi a mão, acariciei seus cabelos e segurei sua mãozinha.
- Venha, sente-se aqui ao meu lado. Crianças têm que ir no banco de trás, mas só eu a estou vendo... então não faz mal...
- Pronto, vamos embora. Estou doida pra chegar em Curitiba. Acho que desta vez vou acertar.
- Vai acertar o quê?
- Será que você ainda não entendeu nada? Você não está indo para a casa de Felipe e Fernanda?
- Estou.
- E então?
Novamente ela estava com aquele sorriso maroto.
- Não me diga que você quis essa carona para ir conhecer seus pais...
- Se eles me quiserem... Eu já sei como eles são. Eles é que ainda não sabem que eu existo. Eu queria era viajar com você. Assim você não ia sozinho.
- Meu Deus, Frida! Claro que vão querer você! E eu é que serei o transmissor da novidade?
- Não, tio! Você vai ficar caladinho. Eu é que tenho que fazer com que eles me escutem, direitinho como fiz com você. Eles vão sonhar comigo, vão conversar comigo... Se eles me quiserem, tenho a certeza de que vão acabar até me chamando de Frida. Você gosta do meu nome?
- E você ainda duvida que eles lhe queiram? Eles pensam num filhinho dia e noite!
- Eles pensam em ter um filho qualquer... mas têm que pensar em mim, sabe como é? - e repetiu : Você gosta do meu nome?
- É muito bonito. Foi você quem escolheu?
- Foi...
Calamo-nos, - se é que posso usar esse termo - ambos estávamos um tanto ansiosos, com razão. Acho até que Frida, mais do que eu, pela expectativa de ser ou não aceita. Aliás, sem nenhum fundamento, se eu bem conhecia Felipe e Fernanda.
Fizemos longa pausa. Depois de, com certeza, ler meus pensamentos, ela se manifestou:
- Um dia, alguma outra criança vai ter uma outra conversa com você, parecida com essa que eu tive. É só arranjar uma pessoa para “dividir alegrias e tristezas”, como você mesmo imaginou.
- Cheguei a pensar em você...
- Não... Ia ser engraçado... - ela tornou a repetir, rindo -  Só se eles não me quiserem. Aí você me adota...
- Mas por que ia ser engraçado, se você fosse minha filha? E por que eu a adotaria, em vez de tê-la, com alguém com quem eu me casasse?
- Já pensou? Um preto com filha branca?...
Para ela, tudo era engraçado...
 Ao entrar em Curitiba, avisei a Felipe que já estava por perto de sua casa. Quando cheguei, o casal já estava no portão, abraçado, aguardando-me. Pareciam radiantes, muito mais do que poderia lhes proporcionar a minha chegada.
- Maurício, que alegria revê-lo! Fernanda estava ansiosa pela sua chegada, ela tem muito boas notícias! Fez boa viagem? O dia esteve muito bom para viajar, mas você deve estar cansado. Vamos entrando...
- Nem um pouco. Fiz ótima viagem! Muito melhor do que vocês possam imaginar. Vim quase todo o tempo conversando com uma “carona” muito agradável.
Olhei disfarçadamente em volta. É claro que ela devia estar por ali...
- Mas, Fernanda, que boas notícias são estas?
- Você nem imagina, Maurício! Depois de tanto tempo, “estamos” grávidos! Soubemos hoje, que coincidência, no dia da sua chegada! Tenho certeza que vai ser uma menina. Já escolhemos até o seu nome...
Sorri:
- Frida?...

sexta-feira, 15 de julho de 2011

A MINHA PARTIDA


Lembro-me bem de como tudo aconteceu. Na verdade, nunca poderia esquecer.
Eu estava sozinho em casa. Sentado, na sala, bem no meio do espaçoso sofá, de olhos fechados, braços estendidos para os lados, mãos espalmadas sobre as almofadas. Imóvel, tentava relaxar os músculos, a ver se conseguia dissipar, ou ao menos minorar a terrível dor de cabeça que aos poucos me consumia. Não usufruía nem do silêncio nem da paz reinante na casa. Minhas dores de cabeça eram frequentes, mas nunca com tanta intensidade. Tinha a sensação de que uma torquês esmagava-me as têmporas, enquanto sentia forte pressão na nuca.
Já me havia medicado. Pacientemente aguardava sentir o efeito do analgésico, mas o tempo se escoava e o mal estar recrudescia. Não sabia mais onde buscar forças para resistir àquele suplício.
Foi quando tudo começou.
Eu vi - ou melhor, senti - aproximando-se, pelo meu lado esquerdo, oposto à janela, que estava com as cortinas cerradas, mergulhando o ambiente em suave penumbra, eu vi - dizia - uma moça. Uma diáfana, etérea figura. Alta, loura, de cabelos lisos e bem curtos, que sorria para mim.
Não andava; deslizava. Não sei mesmo se tocava o chão, pois suas alvas vestes lhe escondiam os pés. Mas não me surpreenderia se a percebesse flutuando no ar, tal era a sua leveza e quase transparência.
Ajoelhou-se ao meu lado e cruzou as mãos sobre minhas pernas, sem deixar de me fitar um só instante. Meus olhos permaneciam fechados, mas eu sabia que ela estava ali, eu a via.
Era linda. Suavemente ergueu a mão direita e encostou-a na minha fronte. Depois, correu a mão sobre meus cabelos e pousou-a na minha nuca. Assim ficou por breve tempo. Minhas dores e todo o meu mal estar desapareceram por completo.
Então ela levantou-se lentamente. Tive a impressão de que ia sentar-se em meu colo... Mas, ao invés disso, aquela vaporosa figura começou, não sei como, pois tenho dificuldade de expressar-me nesta narrativa, a... fundir-se comigo, seus braços tomando o mesmo espaço que os meus, suas pernas mesclando-se com as minhas, seu tórax arfando compassadamente comigo. Nossas mentes eram, agora, uma só.
Sentia que não poderia falar, ainda que quisesse, mas que de alguma forma poderíamos nos comunicar. Júbilo indescritível tomou conta de mim. Eu não necessitava de explicações. Apenas havia alguém em meu corpo, além de mim. Compartilhava a minha carne e o meu sangue, que me serviam de veículo, com outro ser, que eu sabia estar ali para me ajudar. Em que, não sabia. Mas entreguei-me, por inteiro.
Cruzavam-se nossas mentes, unas agora. E, sem palavras, ela comunicava-me que 'precisávamos ir'. Para onde? Não me opus, e creio que também não conseguiria me opor, se quisesse.
São pobres as palavras para descrever o que aconteceu, então. Olhávamo-nos, sorríamos, entendíamo-nos. Éramos um só. 'Vamos ?' - ela transmitiu-me com candura. Mudamente aquiesci. E levantamo-nos, deixando o meu corpo vazio, sentado no meio do sofá da sala.
Enquanto nos afastávamos - deslizando, realmente, agora eu sabia - fomos lentamente separando-nos, um do outro. Braços e pernas, tóraxes e mentes eram novamente de seres distintos. Agora, porém, ambos etéreos, ambos quintessenciados. Ela tomou-me a mão. Ato contínuo, olhamos para trás. Lá estava a minha roupa de carne, que por tantos anos havia me servido. Os braços estendidos para os lados, as mãos espalmadas nas almofadas. Mas agora, a cabeça pendia levemente para o lado.
Não sei se o caminho que percorremos foi longo ou curto. Não sei mesmo se houve um caminho. Não me lembro. Nada vi.
Chegamos, enfim, a algum lugar. Eu não sabia onde estávamos, embora pudesse imaginar o que estava acontecendo comigo. Mas, nada perguntei. Não sei se por receio da resposta que ouviria, ou se porque me agradasse a incerteza da situação.
Era um lugar muito bonito, e havia muita gente. Andavam em todas as direções, conversavam, sorriam. Talvez a beleza estivesse mais na atmosfera do que na paisagem.
Eu podia distinguir, por intuição, entre as pessoas, os que já pertenciam àquele lugar, daqueles que ali haviam chegado, como eu, trazidos por alguém. Éramos todos nós, agora, semelhantes. Pertencíamos a um mesmo mundo e podíamos por isso, entendermo-nos sem barreiras.
Minha moça loira estava bem perto de mim, conversava com alguém. Talvez dando conta de sua recente missão. Eu, observador, aguardava.
Era um forasteiro, perscrutando o ambiente. Tinha a impressão de que todos algum dia e em algum lugar haviam também deixado o seu corpo denso, como eu o havia feito.
Eu não tinha noção do tempo. Não saberia há quantas horas ou há quantos dias já estava naquele lugar. Nem mesmo se haveria horas ou dias a serem contados. Eu era levado de um para outro aposento, parecia-me que de alguma forma muito sutil medicavam-me.
Fizeram-me saber que após um período de adaptação e de compreensão plena, eu teria também a oportunidade e a vontade de ajudar, ao invés de ser ajudado.
Ajudar... então eu não voltaria mais?
Busquei que me tirassem daquela dúvida, mas os pensamentos não tinham segredos. E veio-me a resposta. Sim, eu voltaria um dia. Mas antes que esse dia chegasse, eu teria ainda muito o que aprender.
Tive um pequeno sobressalto. Senti meu coração pulsar com mais força e um tanto mais acelerado. Meu Deus, eu queria voltar logo. Minha mulher, meus filhos, como estariam? Eu precisava voltar antes que dessem por minha falta, precisava novamente vestir a minha 'roupa'... Como poderia fazê-lo?
Meus novos amigos se entreolharam, tolerantes e pacientes. Por certo eu ainda não havia compreendido inteiramente os acontecimentos. Voltaram a confabular, por isso. Mas seus pensamentos, sua ‘linguagem’, ainda não me eram acessíveis.
Por isso, a minha solícita guia veio informar-me que eu poderia retornar. Se era o que eu queria... Ela me acompanharia. Achei curioso que minha vontade prevalecesse tão facilmente.
Então, naquela mesma hora, demo-nos novamente as mãos. Despedi-me de meus novos companheiros, que me sorriam, compreensivos, enquanto nós dois iniciávamos a viagem de volta.
Vi-me novamente em minha sala, em frente ao sofá, prestes a retomar o meu corpo. Procederia da mesma forma como procedeu a minha etérea amiga. Mas não seríamos, agora, dois seres amalgamados em um só. Eu teria apenas que reintegrar-me em minha vestimenta de carne, e... acordar.
A sala continuava mergulhava na penumbra. Já eram as primeiras sombras da noite que se avizinhava, e a casa parecia vazia. Eu estava confuso, e o que vi ainda mais me atordoou.
Não era meu, aquele corpo que repousava no sofá da sala. Agucei a visão, no meio das sombras cada vez mais espessas. Era a minha mulher que ali estava, minha querida companheira de tantos e tantos anos, para os braços de quem eu estaria voltando.
Meu Deus, só agora começava realmente a compreender... Eu havia deixado ali um vaso inerte, um veículo gasto pelo tempo, frio e imprestável, já há quanto tempo? Era impossível voltar...
Voltar... para onde?
Lentamente, medindo cada um dos meus movimentos, com receio sem saber ao certo de que, ajoelhei-me aos pés de minha companheira. Toquei-a com carinho, afaguei-lhe os cabelos. Ela fitava o vazio, com os olhos úmidos que não deixavam cair as lágrimas. Olhos de quem estava muito, muito só.
Ela não me identificou a presença.
De pé, minha etérea amiga observava a cena, com a tranquilidade de quem estava ciente do desfecho, mas deixando-me em liberdade para exercer a minha escolha. Voltei a cabeça e procurei seus olhos, a pergunta muda no ar :
Por que, meu Deus?
Se houve resposta, não cheguei a captar.
Novamente procurei a minha parceira de tantas lutas, que continuava fitando o infinito. Eu estava angustiado, queria falar com ela, dizer-lhe que não estava só, que eu estava ao seu lado... Mas nossos mundos eram agora muito diferentes...
Foi então que me veio a idéia de levá-la comigo. Como eu mesmo havia sido levado, por que não? Ficaríamos juntos, naquele lugar maravilhoso, talvez para sempre! Sorri de alegria, agradecendo-me a boa lembrança. Mas, se naquele momento eu tivesse olhado para trás, teria visto o apreensivo olhar de minha amiga...
Fibra por fibra, aos poucos fundi-me com minha companheira, como antes havia acontecido comigo. Éramos também nós dois tornando-nos um só. Eu podia agora penetrar em seus pensamentos, e senti que ela começava a registrar minha presença, sem consciência de que eu estava, na verdade, bem mais perto do que poderia imaginar.
Captei, então, toda a sua dor pela minha perda, toda a tristeza de sua solidão. Sentindo-me tão perto, suas lembranças avivaram-se. E eram muito mais nobres os seus pensamentos do que as egoístas soluções que eu havia aventado para que ficássemos juntos. Todo o seu altruísmo, que eu bem conhecia, aflorou naquele momento em que, silenciosamente, ela dava asas aos seus planos de continuidade à obra que havíamos começado juntos, que era de fazer sorrir aqueles de quem a vida exigia sacrifícios...
Um leve sorriso misturou-se às lágrimas contidas e ela murmurou baixinho, como me procurando para que eu ouvisse as suas palavras :
-Não se preocupe, meu amor, onde você estiver... Eu não vou deixar que se apague essa chama...
Percebi, acabrunhado, a extensão de meu egoísmo, querendo-a só para mim, buscando interromper uma caminhada onde ainda havia muito a fazer...
E ela, propondo-se a continuar sozinha na lida, em nome de nós dois...
Respeitoso, desfiz os laços que nos uniam e afastei-me. Admirei-a longamente, sem que ela percebesse a minha sutil presença. Pousei minhas mãos sobre as suas e beijei-lhe a face. Era o adeus... ou o até breve, quem saberia? Mas pelo menos sabia, agora, que jamais caberia a mim decidir.
Voltei-me para a minha amiga, que aguardava paciente o meu colóquio. Seu olhar era de aprovação e de orgulho pelo seu tutelado. Demo-nos as mãos, e novamente iniciamos a viagem.
Desta vez, sem volta.