terça-feira, 13 de setembro de 2011

PERIFERIA

PERIFERIA
Direitos autorais reservados



 



- A patroa de Jorgim é adevogada, num é não, Carlinho?
- É.
- E é o quê, que ela tá reclamano?
- A questã é que quando a mulher tem escola e é trabalhadera, chega dia de domingo quer descanso, por isso, quando vai passar os bife pra janta, já é com menas vontade. Quando o dia é de muita caloria então, igual hoje, ela tem mais é que ficar meia cheia mermo.
- Pior que é.
- E Jorgim ainda mandou ela ir comprar uns bagulho no mercado. Você foi? Nem ela.
- E num era pra ir, mermo.
- Já eu, com a minha patroa, é deferente. Ela pode ser sem escola, mas é a mãe de meus filho e tem meu respeito. Os filho é sangue do meu sangue, é ou nué? Meu caçula ainda é de menor, mas o meu do meio  tem estudo.
- O estudo é importante.
- Graças a Deus aqui em casa tem de um tudo, mas mermo que a gente passasse necessidade, o estudo eu não ia deixar faltar.
- É isso aí.
- E o meu maior é PM, quer dizer, está tudo encaminhado. É quando ele diz que sempre puxa pelos brio do elemento que cai nas malha da justiça.
- Ele tá certo.
- Mano, cheguei da rua agora com pó fresquinho. Vou pedir à patroa pra passar um café sem doce. Vai nessa?
- Falou.
- Café é bom. Só pela manhã é que eu não sei comer nada, antes de sair.
- Nem eu, só sei saí em jejum. Eu sou sistemático. Ih, Carlinho, que hora é essa?
- Já deu oito hora.
- Vamo com esse café que eu tenho que passar na casa do Valtencir.
- Quem que é Valtencir?
- Irmão da Flávia Jaqueline, colega da patroa.
- E é o que, que tem lá?
- Nada. A gente combinou tomar umas brama enquanto vê o Mengão acabar com os Pó de Arroz... Vai ser manero.
- Programão... Eu nem sabia que ia dar na televisão. Deixa vim o café que a gente sai junto. Vou buscar umas ceveja, também vou ver o jogo.
- Tu vai junto, na casa do compadre?
- Vou não, vou ficar mermo é no recesso do lar. Dia de domingo pra mim é sagrado, pertence à família... Olha o café chegando. Aí, patroa, valeu!
- E aí, Francineide, tu num falha, em?



























domingo, 11 de setembro de 2011

MARIA PURA


MARIA PURA

Junho - 2011



- Esta senhora... de onde a conheço?
Júlio murmurou baixinho, para si mesmo, quando a viu. Não conteve a surpresa, a impressão era muito forte. Era uma senhora bem vestida, elegante, os cabelos grisalhos lhe conferindo uma beleza madura. Viu que ela também o fitava, mas com um olhar disperso, distante.
Sabia que a conhecia... mas, de onde? Parou em frente à poltrona em que ela estava, no saguão do aeroporto, como que tentando lembrar-se onde a teria visto. Quando percebeu a inconveniência do seu gesto, como quem a estivesse examinando em atitude um tanto íntima, resolveu sentar-se ao seu lado, parra desfazer a impressão:
- Com licença?
Ela parecia não tê-lo ouvido, estava longe. Continuou a fitá-lo com o olhar vago, e não respondeu à sua tão simples solicitação. Pensava em outras coisas, coisas indefinidas que lhe povoavam a mente.
“Tenho uma estranha certeza de que vou ser ajudada...” - pensou. Mas, ajudada a que? Por quem? Não sabia onde estava, não sabia quem era. Uma vaga lembrança de que teria ido esperar alguém, mas... não seria um passageiro. Talvez algum viajante perdido no tempo, tanto quanto ela...
- Eu vou voltar, eu sei... – falou baixinho - mas não vou voltar sozinha...
Júlio não a ouviu. Repetiu, sorrindo:
- Com licença?... Posso sentar-me?
Só então ela se deu conta, como que acordando de um devaneio:
- Claro, por favor... Sente-se... Ora... desculpe-me, senhor. Eu... não sei o que há comigo...
Ele estranhou a reação. Seria um pouco íntima, para um primeiro contato.
- A senhora está bem?
- Sim, estou bem. De saúde, estou bem... Mas, desorientada... – e sorriu.
Julio sentou-se ao seu lado.
- A senhora me conhece?
- Não sei...
- Não sabe?...
“Por que não saberia?...”, pensou ele.  Mas não disse nada.  
Percebeu que ela, embora estivesse vestida com elegância, estava de mãos vazias. Não portava nenhuma mala de viagem, ou sequer uma simples bolsa.     
- Pois eu creio que já a vi em algum lugar, mas não imagino onde tenha sido. – e, depois de uma pausa – Por que se sente desorientada? Desculpe-me se me intrometo, mas será que eu poderia ajudá-la? 
Era evidente o seu interesse pela senhora. Empenhava-se em descobrir onde a tinha visto. Além disso, era bonita, vistosa...
Ela chegou-se mais perto de Júlio, e, segurando-lhe o braço, baixou a voz, como quem quisesse segredar algo.
- Não sei se poderá me ajudar...
 Estava hesitante. Séria, agora.
- Meu senhor... não estranhe o que vou lhe dizer, por favor...
- Por que estranharia?
- Eu... não sei quem sou. Não me lembro de nada, minha mente está vazia...
- Nada? Seu nome, nada?
- Nada. Não sei há quanto tempo estou aqui, nem sequer como cheguei até aqui. Apenas sei que estou em um aeroporto, mas, onde? Estou confusa, mas, é curioso... não me sinto mal por isso. Tenho certeza de que vou conseguir...
- Conseguir? O que pretende conseguir? Estamos no Rio de Janeiro, no Galeão, mas com certeza a senhora não veio para viajar. Sem malas...
A senhora olhou para o chão, em volta da poltrona, depois voltou-se para Júlio, sem surpresa:
- Pois é, sem malas, sem nada... Vê? Não me havia dado conta... Sinto que estou viajando, sim, mas... pelo tempo, por lugares desconhecidos. Será isto possível? Nada disso aqui me é familiar... Sei que estou num aeroporto, e que vim em busca de alguém...
- Esse alguém, o que lhe fez? Procure lembrar-se: em que vôo ele vem?
Eram muitas as perguntas. Ela cruzou as mãos sobre o colo.
- Não sei, não sei... E mais estranho ainda: ao lhe ver, tive a vaga impressão de conhecê-lo... há muito tempo... mas, era um rapaz... Logo essa impressão se desfez... E quando o senhor falou comigo, vieram-me à mente três palavras: “Barão de Itambi.” Eu não imagino por que... Nunca ouvi nada sobre esse barão, não sei o que ele fez ou sequer quem foi. E não entendo qual seria a sua ligação com ele...
E, descontraída:
- O senhor não é barão, creio...
Júlio riu.
- Não, não sou...  Então, quando me viu, veio-lhe o barão... Ora, ora, nunca me imaginei um barão... Talvez a minha idade, essa barba e esses cabelos brancos a tenham transportado ao Brasil-colônia...
Ele procurava afastar o diálogo da desagradável sensação da amnésia, e um gracejo seria o melhor caminho. Mas ela não estava assustada.
- Barão de Itambi... Por que me veio o nome desse nobre, e por que o associei a você?...
Ela consertou:
- Oh, me desculpe... ao senhor...
O diálogo tornava-se mais íntimo.
- Por favor, não me trate por senhor... Assim vou sentir-me ainda mais velho do que sou... Aliás, preciso me apresentar. Meu nome é Júlio, moro aqui no Rio, e estou indo para Londrina para fazer umas compras. Sou comerciante. E você, quem é?
Júlio a custo conteve-se. Teve ímpetos inexplicáveis de continuar a expor a sua vida. Não disse que era um homem solitário, triste, que vivia por viver, sempre com uma sensação de que lhe faltava algo que não sabia definir. Carregara por toda sua existência a angústia de uma vida falsa e irreal. Mas isso era coisa só dele, por que iria dividir sua amargura com uma estranha? Porém, uma estranha que ele sabia que não lhe era desconhecida.
- Eu? Como posso me apresentar? Não sei o meu nome, não sei onde moro, não sei se estou indo, não sei se estou voltando...
E, com humor, embora com a verdade no olhar:
- Não sei nem se estou viva...
Ambos riram, sem imaginar a profundidade do que ela havia dito.
- Senhora desconhecida: posso lhe chamar de, digamos, Maria? É difícil conversarmos sem que lhe chame por um nome... Além do mais, algo me diz que é esse o seu nome: Maria. Maria, apenas. Maria pura...
- Sim, pode, é lindo... Maria pura... Tão simples quanto bonito. Mas eu nem sei se tenho nome...
Ela continuava ingenuamente misteriosa.  
- Pois bem, Maria, agora já tem. Sabe? Estou aqui pensando no Barão de Itambi. Será que essas três palavras referem-se mesmo ao barão, ou apenas a algo que leve o seu nome? Uma rua, uma praça, sei lá...
- Não sei, pode ser.
- Quem sabe poderemos pesquisar? Acha-se qualquer coisa na internet. Podemos ir a uma lan house, aqui mesmo, no aeroporto.
Preocupada, ela toma a mão de Júlio entre as suas, com carinho impensado.
- A que horas é seu vôo? Dará tempo?
Subitamente, como um choque, o contato das mãos de Maria o transportou, por um átimo de segundo, a uma cena atemporal, insólita, em que ele a viu – na verdade não a viu, apenas sentiu – em uma noite, com uma aparência jovem, quase adolescente, com um olhar meigo, sorrindo para ele.
Logo, tudo voltou ao normal. Que teria havido? Naquele instante, não teve dúvidas: sentiu que a conhecia há mais tempo do que imaginava...
- Não se preocupe, há coisas mais importantes do que a minha viagem.
- Eu, por exemplo?
As palavras de Maria fizeram-no voltar da sua fantasia. Júlio retirou a mão dentre as dela, repentinamente, com respeito. Veio-lhe o pensamento de que ela poderia ser casada, ter uma família, filhos, talvez netos, que àquela hora poderiam estar desesperados procurando por ela.
Seria fantasia? Riu da sua idéia.
- De que você está rindo?
- Eu? Nada... Estou achando curioso esse nosso encontro... Parece que estava fadado a nos conhecermos, foi tudo tão rápido...
- É mesmo... Então, vamos à lan house? Se bem que eu não saiba nem o que é uma lan house...
- Vamos. Confie em mim...
- Júlio... o que é internet?...
- Aqui está... Rua Barão de Itambi. Fica em Botafogo, aqui no Rio. Vamos pegar um táxi, não quero me arriscar. Não conheço o bairro, podemos perder tempo na procura.
Durante a viagem, quase não se falaram. Júlio, embora desviando os olhos de sua companheira, sentia que Maria olhava-o durante todo o percurso. Voltou-se então para ela, à cata de algum assunto que tornasse menos monótona a viagem, mas foi ela quem tomou a iniciativa:
- Júlio, de onde o conheço? Não sei...
Era já íntimo o diálogo. Pareciam dois amigos de longa data. Novamente Maria pegou em suas mãos, e mais uma vez Júlio sentiu transportar-se a um outro tempo. Ele sentiu-se um rapaz.
- Maria... Você consegue imaginar-me mais jovem? Um rapaz?
A pergunta não tinha nenhuma razão de ser, e Júlio sabia disso. Apenas ele, e não ela, estava tendo aquelas sensações. Ainda assim, soltou-a no ar, não esperando resposta sensata. No entanto, a senhora não o decepcionou:
- Sim, Júlio... Desde quando chegou perto de mim, no aeroporto. Da primeira vez que disse “Com licença?” você era, aos meus olhos, um jovem rapaz, parado diante da minha poltrona, sorrindo para mim. Mas da segunda vez, era este senhor...
Apontou-o, com a mão. 
- Naquela hora não dei importância à minha confusão, creditei-a como parte das minhas incertezas. Mas agora... Se ao menos eu me lembrasse quem sou, as coisas seriam facilitadas, não é mesmo?
- Não se preocupe. Estamos no caminho. Há de chegar a hora em que você se lembrará de tudo.
- Não sei, não creio...
- Mas, por que o pessimismo? Todos os casos de amnésia são assim... Há um certo momento em que a pessoa vê um objeto, ouve uma frase, ou sente um perfume que a traz de volta ao mundo...
- Amnésia? Não... Comigo não será assim...
- Por que não, Maria? Não entendo...
Ela continuava reticente:
- Júlio, eu nem sei se existo...
O taxi parou numa esquina.
- Chegamos, senhor. Rua Barão de Itambi. Ela começa aqui. Qual o número?
Júlio procurou a numeração das casas.
- Aqui é o fim da rua, não o princípio. Está bom, pode nos deixar aqui mesmo, obrigado.
De onde desceram, via-se toda a rua. Naquele momento teve outro lampejo que o levou ao passado. Novamente apenas um flash, que logo se desvaneceu. Viu a rua como ela teria sido, na sua adolescência. Sentiu-se com pouco menos de vinte anos. Era uma rua tranquila, pouco extensa, sem movimento, com calçamento antigo, de pedras, quase sem árvores e com casas, apenas casas, em ambos os lados. Quando a imagem se esfumou, viu que a rua não era muito diferente da visão que o acometera. Um ou outro prédio, árvores copadas amenizando o sol de meio dia, o asfalto substituindo as pedras, e mais nada.
- Então aqui é a rua Barão de Itambi? Pois nada me acrescenta... – disse Maria, correndo os olhos em volta.
- Vamos, Maria, a rua não é grande. Vamos andando devagar, quem sabe?
Começam a caminhar lentamente, observando as casas, as outras construções mais novas, mas nada a fazia recordar o passado, ao contrário de Júlio, que a cada passo via, com emoção, recrudescerem suas até então inexistentes lembranças.
Quase no fim da rua, Maria subitamente exclama:
- Dezoito! Lembrei-me, é isso, rua Barão de Itambi, 18! Era esse o endereço!
- Isso, Maria! O que tem nesse endereço? Era sua casa? Procure lembrar-se!
- Não sei, não sei... Lembrei-me apenas do número. Devo ter estado por aqui, deve haver uma casa no número 18. E, se liguei o endereço a você, quer dizer que...
- Teremos estado por aqui juntos?
Já com o objetivo definido apressaram o passo, procurando entre as placas das casas o número 18. Logo o encontraram – era um casarão muito antigo, desses que carregam um passado de esplendor, mas já um tanto mal tratado, transformado ingloriamente em uma casa de cômodos. Se antes, apenas o nome da rua a sensibilizava, agora, mais ainda, o número 18 a deixava instigada.
Júlio, a seu tempo, sentiu a sua crescente emoção chegar ao auge, quando deparou com a casa. Disse, parado em frente ao casarão:
- Eu já estive aqui... há muito tempo... Você não se lembrou de mais nada?
Ela, olhando para o casarão, continuava repetindo:
- Barão de Itambi, 18...
Júlio sugeriu que entrassem na casa, teve a intuição que algo estava prestes a acontecer. Ela relutou, por ser uma casa multifamiliar. O que pensariam deles os moradores, intrometendo-se assim?
- Exatamente por isso, Maria, não tenha receio. Por ser uma casa de habitação coletiva, inventaremos que estamos à procura de alguém, um nome qualquer. Não vamos desistir, agora que estamos tão perto...
- Mas a casa nada me despertou, Júlio. Apenas o endereço, o endereço...
- Pois mesmo sem saber o nome da rua, e tampouco o número da casa, quando a vi senti uma emoção muito forte, inexplicável...
- Júlio... Sinto, cada vez mais, que eu não sou...
Maria silenciou.
- O que, Maria? Olhe, esteja certa de que você está prestes a deixar de ser Maria... Esta casa vai lhe mostrar quem você é, tenho certeza...
Maria, de frente para Júlio, segurou-lhe os dois braços com força:
- Eu... não sei se existo, Júlio...
- Ora, meu bem, você está com amnésia, é natural que pense assim. Confie que algo vai acontecer...
Maria sorriu:
- Eu sei... Algo vai acontecer...
- Vamos, senhora desconhecida... Vamos entrar, vamos conhecer o seu verdadeiro nome...
Maria olhou-o com ternura, e falou, bem baixinho:
- Júlio... eu... já lhe amei tanto...
Júlio sequer ouviu as palavras tão doces quanto misteriosas, daquela senhora desconhecida. Não tirava os olhos da casa.
- Vamos...
Segurou-a pelo braço e encaminharam-se, os dois, à varanda do casarão.
-o-
- É aqui.
Júlio parou em frente ao portão. A casa, toda iluminada, resplandecia. Nas janelas, abertas par a par, rapazes e moças conversavam.
Júlio seguira pela rua, calma àquela hora da noite, recordando as palavras do amigo: “Não tem o que errar, Júlio. Nem vou lhe dar o endereço. É uma rua pequena, logo no início de Botafogo, e paralela à praia. Procure a casa: onde estiver acontecendo uma festa, é a minha, você entra... Não deixe de ir.”
- Com licença?
A jovem sorriu para ele. Distraído, Júlio postara-se em frente ao portão, impedindo a entrada.
- Será que posso entrar?
Júlio afastou-se.
- Ora, desculpe... Por favor...
A mocinha passou pelo portão, subiu até a varanda e entrou na casa, confundindo-se com os outros convidados. Ele seguiu-a, mas não passou da entrada, à espera que o dono da casa aparecesse. Embora convidado, não era íntimo da família.
O alpendre dava acesso ao salão, repleto de rapazes e moças. A festa seguia animada, com a agitação educada, típica dos anos cinquenta. A vitrola, discreta, rodava boleros e foxtrotes, e os pares dançavam coladinhos.
Por fim, entrou, acompanhando o aniversariante, que veio buscá-lo. Apresentou-o a alguns rapazes e moças, e desculpou-se:
- Fique à vontade, Júlio. Não repare, preciso dar atenção a todos os convidados. Mais tarde conversaremos com calma.
A música seguindo, os pares dançando, uma mesa com salgadinhos e refrigerantes. Júlio serviu-se de um canapé e correu os olhos pelo ambiente, a ver se encontrava alguém conhecido. Então, seus olhos se cruzaram com os da mocinha que vira na entrada, perto de uma das janelas, talvez à espera de quem a convidasse à dança.
Instintivamente, foi em sua direção.
 - Eu conheço você, não sei de onde...
Ela meneou a cabeça:
- É velha essa “cantada”... Não conhece uma mais novinha?...
- É sério...
- Pois sim, eu acredito... Conhece-me de longa data, com certeza? Uns dez minutos, talvez?...
- Não é “cantada”... Eu conheço você, tenho certeza. Vou me lembrar de onde.
- Se nem reparou em mim, quando entramos juntos...
- Desculpe, eu estava alheado, procurando por “uma casa onde estava acontecendo uma festa”... Não tinha nem o endereço...
- Pois eu só tinha o endereço: Barão de Itambi, 18. Não fazia a menor idéia onde ficava a rua. Não fosse o motorista do táxi...
- Como é o seu nome? O meu é...
- Júlio?...
- Como você sabe?
- Não sei... Acho que ouvi alguém lhe chamando...
- Quem me chamaria, se eu só conheço o aniversariante, e agora... você?
- Então foi ele quem lhe chamou.
- Talvez... – Júlio não estava convencido, mas resolveu não continuar o assunto - Você ainda não me disse o seu...
- Maria...
- Maria? Só Maria, pura?
- Sim, por que? Maria... pura...
- É que quase sempre as Marias vêm acompanhadas de outro nome.
- Eu, não. Não há outro nome acompanhando-me...
- Que tal “Júlio”, para lhe acompanhar?
- Ah, agora sim, a “cantada” melhorou muito...
A vitrola tocava “Frio en el alma”.
- Vamos dançar?
Dançaram em par constante, como se dizia então, por toda a noite, até o fim da festa. Ao final, saíram juntos, e Júlio levou-a em casa, sentindo que havia despertado em Maria algo mais sério do que uma simples amizade. Para ele, não; havia sido apenas um agradável encontro, sem maiores compromissos.
No portão de casa, Maria viu Júlio despedir-se e entrar no táxi. Quando o carro ia partir, teve uma incômoda sensação de que não mais veria aquele rapaz, e mais: que aquela cena algum dia já havia acontecido. Assim como um dejà vu.
- Não posso deixá-lo escapar... – pensou - outra vez...
Outra vez?...
- Júlio... espere... Não se vá...
O rapaz dispensou o táxi. Sem imaginar que estava começando ali uma união que iria durar toda uma vida...
- Eu fui lhe buscar, Júlio. Agora sei...












sábado, 10 de setembro de 2011

Lívia


Direitos autorais reservados
L ívia


Maio - 2010





 Eu estava na praça, dando voltas e mais voltas em torno do almirante em seu pedestal, em torno do lago, em torno do gramado, em torno de mim mesmo, sem chegar a lugar nenhum. “Cópia da minha vida”, pensava. Sessenta anos acordando, trabalhando, comendo e dormindo. Cada dia, quando deixava a cama, era o início de mais uma volta na praça. À noite, quando me deitava, era como sentar-me em um daqueles bancos e ficar olhando para o nada.
Sentei-me. Nem as pessoas que passavam em frente ao meu banco - à minha cama - eu via. Não cumprimentava ninguém, não conhecia ninguém. Sozinho na praça, sozinho na vida.
- Por que deixei que isso acontecesse? - perguntei-me, baixinho. Não me respondi, seria muito trabalhoso. Estiquei as pernas, cruzei os braços. E deixei-me ficar ali, como esperando acontecer alguma coisa.
Mas não falei assim tão baixinho.
- Acontecesse o que? - era uma moça, um terço da minha idade, intrometendo-se na minha vida. Sentou-se ao meu lado. Eu poderia ter tomado satisfações, afinal o que aquela frangote tinha a ver?, mas não tomei. Seria muito trabalhoso.
- Nada, não.
- Como, nada? Ninguém fala uma coisa dessas à toa.
A mocinha insistia. “Com que direito?” - pensei, encarando-a, já forçando uma cara meio zangada, pra ver se ela me deixava em paz. Eu não queria conversa.
Ela pareceu ler-me os pensamentos.
- Sei que não tenho direito de intrometer-me. Quer que eu me vá?
Continuei de pernas esticadas e braços cruzados.
- Fica.
- Que bom. Não sei quanto a você, mas eu preciso conversar. Eu também não sei por que deixei acontecer.
- O que?
Ela abaixou a cabeça.
- Deixei queimar o feijão.
O feijão, ora essa. Os meus problemas eram muito mais sérios. E ela deixou queimar o feijão.
- Você veio passear na praça por causa disso?
- Foi.
Agora era ela, a reticente. Ironizei:
- Ao menos apagou o fogo?
- Era o último feijão. Não tenho mais nada.
- Por isso precisa conversar. Quer ajuda? Não tenho muito, mas...
- Não é comida o que preciso. Preciso conversar. Quando disse “deixei acontecer”, não foi o feijão.
Endireitei-me, descruzei os braços e virei-me de lado, apoiando-me no encosto do banco. Indiretamente, ela pedia-me atenção. Era uma moça bonita, de algum trato, até bem vestida. Não tinha aparência de quem estava com a despensa vazia.
- O que foi, então?
- Eu estava na janela, olhando pra longe, olhando sem ver, sabe como é? E o feijão cozinhando. Só quando aquele cheiro tomou conta de tudo é que acordei. Corri para apagar o fogo.
Fez uma pausa, ainda olhando pra longe, olhando sem ver:
- Ia ser a minha última refeição.
- Você não tem mais nada em casa, mesmo?
Eu insistia na comida. Ela pareceu não me ouvir.
- A última refeição. A úl-ti-ma. Depois eu não iria precisar mais de nenhuma refeição.
Só então entendi. A maneira como falou, o tom de sua voz, o olhar distante, não me deixaram dúvidas. Continuou:
- Parecia que estavam me chamando lá em baixo, na rua. Era uma compulsão, o caminho mais curto era pela janela. Não fosse aquele cheiro forte, eu teria ido... Como um fato banal pode interromper uma decisão tão séria? Uma panela de feijão...
- Por que você tomou essa decisão?
- Vem de longe, a idéia.
- Não pode vir de tão longe. Você é muito jovem...
- Mas vem. Da infância. Sei lá se até de antes da infância.
- Você mora sozinha? É daqui mesmo? Desculpe, agora sou eu que me intrometo.
Meus problemas tinham ficado menores.
- Sabe o que eu penso? As pessoas deviam era se intrometer mais umas com as outras. Talvez eu não tivesse chegado aonde eu cheguei, se não fossemos todos tão isolados... Isolados e cercados de gente por todos os lados, gente sempre rindo e brincando... mas fugindo de conversas mais sérias, mais profundas, de uma mão no ombro... Como a gente precisa, às vezes, de uma mão no ombro! Pai e mãe também estão nessa. Todos, todos...
Ela queria e precisava conversar, como disse. Mas custava a se abrir. Eu, já tinha me esquecido das voltas e mais voltas em torno do almirante, do gramado, do lago, era todo ouvidos para aquela moça, tão jovem, tão bonita, que tinha deixado queimar o feijão. Intimei-a:
- Não dê mais voltas. Fale comigo. Não estou rindo nem brincando.
Parece que ela ouviu o que queria ouvir. Encarou-me de frente, sorriu agradecida.
- Você quer me ouvir?
Emocionei-me. Nunca ninguém estivera disposto a depositar em mim tanta confiança. De repente uma mocinha surge do nada, precisando de mim. Não sei qual dos dois estaria precisando mais um do outro. Será que ambos “deixamos acontecer” o que poderia ser evitado?
- Claro, minha filha.
- Não vou lhe contar a história da minha vida, não se assuste... Para quem ainda não viveu muito, como você disse, já é uma longa história. Mas há coisas que gostaria de dividir com alguém. Coisas com as quais nem sempre a gente sabe lidar.
Para mim, já era um ensinamento. Dividir com os outros. Deixar que se intrometam na minha vida. Nunca fiz isso.
- Que coisas são essas?
- A gente vai deixando elas crescerem, crescerem, até que um dia, não fosse uma panela de feijão, tudo acabaria lá em baixo, na calçada.
Ela continuava dando voltas. Senti que queria confiar em mim, mas era difícil, talvez, expor-se tanto.
- Eu sou adotada, sabe? Nem conheci meus pais. Já saí da maternidade com meus outros pais. Até então minha nova mãe nunca podia ter tido filhos, e eu era a gracinha da casa. Isso até os cinco anos. Mas um dia minha mãe engravidou, veio meu irmão, depois vieram mais três, e aí começou o calvário da gracinha da casa.
- Calvário? Tanto assim?
- Como é seu nome?
- Otávio.
- Olha, Otávio, você pode não acreditar, mas foi um calvário. Uma via crucis que dura até hoje. Passei do carinho à rejeição, como da água pro vinho.
- É uma maldade, mas não é muito incomum.
- O que aconteceu comigo é muito incomum, sim. Ainda não lhe contei tudo.
Ela estava mais à vontade.
- Meu pai é muito rico. Morávamos em uma de suas fazendas. Quando vieram os filhos, eu passei a ser literalmente ignorada dentro de casa, como um fantasma que ninguém visse. Era doentio. Não me maltrataram fisicamente, mas antes o tivessem feito. O desprezo dói muito mais por dentro. Ninguém me ouvia, nem me dirigia uma palavra. Eu sentava à mesa, fazia as refeições em silêncio. Mais tarde pagaram-me os melhores colégios, deram-me as melhores roupas. Nada me faltava, tudo por monossílabos. Na fala e na mente.
Quando mostrei vontade de estudar, foi um alívio para eles. Mandaram-me para a cidade, puseram-me nesse apartamento, e só então minha mãe dirigiu-me algumas palavras: “Você vai ter tudo o que precisa”. E só. Como se tudo o que eu precisasse fosse um apartamento. Livraram-se de mim, como quem põe um cachorro na rua. Há quatro anos atrás. Nunca mais os vi. Mas eu era muito nova, e o que fizeram comigo deixei repercutir no resto da minha vida. Não soube reagir, dar a volta por cima, como se diz. Tranquei-me. Trabalho, me sustento, curso a faculdade, mas não consigo me relacionar com ninguém. Não confio em ninguém, sou só no mundo.
- E o seu nome, como é?
Escapei das inoportunas palavras de consolo com a pergunta fora de hora.
- Lívia.
- Pelo menos deram-lhe um nome muito bonito.
Ela pareceu não ouvir.
- Quando lhe vi, senti que você era parecido comigo, embora em outras circunstâncias. Sozinho, como eu. Alguma coisa me atraiu pra conversar com você.
Eu poderia ter dito que ela tinha razão, que eu era assim mesmo, que vegetava, não vivia. Mas não disse. Não porque não quisesse me expor, mas porque se dissesse, desmoronaria a fortaleza - entre aspas - que ela conseguiu ver em mim.
- Não se arrependeu, então...
- Claro que não. Nunca ninguém teve a paciência de me ouvir. A paciência, não, a caridade. Otávio... Eu nunca dei um motivo sequer para que tudo isso acontecesse... Eu nunca soube de ninguém que fosse tratada assim... e por que, meu Deus?
- Lívia... Um dia, um homem muito sábio, disse: “Embora ninguém possa voltar atrás e fazer um novo começo, qualquer um pode começar agora e fazer um novo fim”...
- Palavras de efeito...
- Não, Lívia... Não é mesmo verdade? Você poderia modificar as coisas? Você poderia fazer com que seus pais viessem a lhe amar? E ter uma infância alegre e feliz, junto à família, e uma adolescência cheia de amigos? Não... Isso já passou, você não pode voltar atrás e “fazer um novo começo”...
- Eu queria mesmo é mudar o meu passado. Eu estou marcada para sempre... Não sei viver como todo mundo...
- Nada é para sempre... Qualquer um pode...
- ...começar agora e fazer um novo fim? Você acredita nisso? Por que não aplicou essas palavras em você mesmo?
Ela tocou no ponto certo. Por que?
- Porque eu pensava que meus problemas eram os maiores do mundo. Todos nós pensamos, mas sempre aparece alguém para nos desmentir. Eu precisava conversar com você, Lívia. Eu precisava que você queimasse o feijão, e que saísse daquela janela correndo para apagar o fogo, e que viesse até essa praça e que me encontrasse... Nada acontece por acaso.
- Então... meus problemas são maiores que os seus... Eu teria que encontrar alguém com outros maiores ainda, para aceitá-los?...
- Não, há outros meios... Você precisa apenas reeducar sua mente, ela está desvirtuada. Mas não busque o passado, para isso. Apague-o da sua mente, veja o que você quer, daqui pra frente.
- Bem sei o que eu quero: ser tudo o que não fui. Ativa, vibrante, resoluta... e simpática, acima de tudo... não essa figura apagada, aquele fantasma que andava pela fazenda sem assustar ninguém ...
- Ainda querendo resgatar o passado... Você é muito nova, Lívia... Você tem que ser o que você é, o que está escondido lá no fundo, o que ainda não veio à tona. Descubra quem você é, o que você quer, mas... daqui pra frente.
Calei-me. Ela já não olhava para longe, com aqueles lindos olhos... de não ver. Encontrou alguém que queria ouvi-la. Olhava para mim, como querendo adivinhar coisas que eu não havia dito. Parecia-me pedir: Continue...
- Uma vez li um poema, cujo título era “Sei quem sou”. O autor descobriu-se, e depois de escrevê-lo, com certeza nunca quis ser mais do que era.
- Está muito complicado.
- “Sou as asas que sustentam o vôo, não sou o engenho que impulsiona”. Entende? “Sou o vagão que conduz a lenha, não sou a locomotiva que a queima, sôfrega”. Todos nós somos importantes, não importa de que lado estejamos. Mais que importantes, necessários. A vida não é feita só de locomotivas.
Lívia já não era aquela moça triste que chegou do nada, na praça, e sentou-se ao meu lado, intrometendo-se em meu mundo. Era-me íntima, agora. Senti que ouvira minhas palavras no momento certo e no lugar certo. Logo eu... que nunca falei mais de três palavras com ninguém, estava ali dando aulas de vida a quem, sem saber, ensinava-me também. E com um terço da minha idade! Lembrei-me da primeira lição que me deu, que eu guardaria para toda a vida: “as pessoas deviam se intrometer mais, umas com as outras”.
Sem tirar os olhos de mim, apenas disse:
- Você tem razão...
E sorriu. Um sorriso tão terno, tão meigo, que me fez o coração bater mais forte. Segurou minhas mãos e trouxe-me junto a si, envolvendo-me num carinhoso abraço. E assim ficamos, longo tempo, em silêncio, revendo nossas vidas, que jamais seriam as mesmas.
Sozinhos, na praça cheia de gente...
Ela era a filha que eu não tive. Completou meu pensamento:
- Meu terceiro e único pai...
Quase não consegui falar, agora mais ainda comovido com as suas palavras:
- Lívia... Prometa-me que não vai mais deixar queimar o feijão...