sábado, 10 de setembro de 2011

Lívia


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L ívia


Maio - 2010





 Eu estava na praça, dando voltas e mais voltas em torno do almirante em seu pedestal, em torno do lago, em torno do gramado, em torno de mim mesmo, sem chegar a lugar nenhum. “Cópia da minha vida”, pensava. Sessenta anos acordando, trabalhando, comendo e dormindo. Cada dia, quando deixava a cama, era o início de mais uma volta na praça. À noite, quando me deitava, era como sentar-me em um daqueles bancos e ficar olhando para o nada.
Sentei-me. Nem as pessoas que passavam em frente ao meu banco - à minha cama - eu via. Não cumprimentava ninguém, não conhecia ninguém. Sozinho na praça, sozinho na vida.
- Por que deixei que isso acontecesse? - perguntei-me, baixinho. Não me respondi, seria muito trabalhoso. Estiquei as pernas, cruzei os braços. E deixei-me ficar ali, como esperando acontecer alguma coisa.
Mas não falei assim tão baixinho.
- Acontecesse o que? - era uma moça, um terço da minha idade, intrometendo-se na minha vida. Sentou-se ao meu lado. Eu poderia ter tomado satisfações, afinal o que aquela frangote tinha a ver?, mas não tomei. Seria muito trabalhoso.
- Nada, não.
- Como, nada? Ninguém fala uma coisa dessas à toa.
A mocinha insistia. “Com que direito?” - pensei, encarando-a, já forçando uma cara meio zangada, pra ver se ela me deixava em paz. Eu não queria conversa.
Ela pareceu ler-me os pensamentos.
- Sei que não tenho direito de intrometer-me. Quer que eu me vá?
Continuei de pernas esticadas e braços cruzados.
- Fica.
- Que bom. Não sei quanto a você, mas eu preciso conversar. Eu também não sei por que deixei acontecer.
- O que?
Ela abaixou a cabeça.
- Deixei queimar o feijão.
O feijão, ora essa. Os meus problemas eram muito mais sérios. E ela deixou queimar o feijão.
- Você veio passear na praça por causa disso?
- Foi.
Agora era ela, a reticente. Ironizei:
- Ao menos apagou o fogo?
- Era o último feijão. Não tenho mais nada.
- Por isso precisa conversar. Quer ajuda? Não tenho muito, mas...
- Não é comida o que preciso. Preciso conversar. Quando disse “deixei acontecer”, não foi o feijão.
Endireitei-me, descruzei os braços e virei-me de lado, apoiando-me no encosto do banco. Indiretamente, ela pedia-me atenção. Era uma moça bonita, de algum trato, até bem vestida. Não tinha aparência de quem estava com a despensa vazia.
- O que foi, então?
- Eu estava na janela, olhando pra longe, olhando sem ver, sabe como é? E o feijão cozinhando. Só quando aquele cheiro tomou conta de tudo é que acordei. Corri para apagar o fogo.
Fez uma pausa, ainda olhando pra longe, olhando sem ver:
- Ia ser a minha última refeição.
- Você não tem mais nada em casa, mesmo?
Eu insistia na comida. Ela pareceu não me ouvir.
- A última refeição. A úl-ti-ma. Depois eu não iria precisar mais de nenhuma refeição.
Só então entendi. A maneira como falou, o tom de sua voz, o olhar distante, não me deixaram dúvidas. Continuou:
- Parecia que estavam me chamando lá em baixo, na rua. Era uma compulsão, o caminho mais curto era pela janela. Não fosse aquele cheiro forte, eu teria ido... Como um fato banal pode interromper uma decisão tão séria? Uma panela de feijão...
- Por que você tomou essa decisão?
- Vem de longe, a idéia.
- Não pode vir de tão longe. Você é muito jovem...
- Mas vem. Da infância. Sei lá se até de antes da infância.
- Você mora sozinha? É daqui mesmo? Desculpe, agora sou eu que me intrometo.
Meus problemas tinham ficado menores.
- Sabe o que eu penso? As pessoas deviam era se intrometer mais umas com as outras. Talvez eu não tivesse chegado aonde eu cheguei, se não fossemos todos tão isolados... Isolados e cercados de gente por todos os lados, gente sempre rindo e brincando... mas fugindo de conversas mais sérias, mais profundas, de uma mão no ombro... Como a gente precisa, às vezes, de uma mão no ombro! Pai e mãe também estão nessa. Todos, todos...
Ela queria e precisava conversar, como disse. Mas custava a se abrir. Eu, já tinha me esquecido das voltas e mais voltas em torno do almirante, do gramado, do lago, era todo ouvidos para aquela moça, tão jovem, tão bonita, que tinha deixado queimar o feijão. Intimei-a:
- Não dê mais voltas. Fale comigo. Não estou rindo nem brincando.
Parece que ela ouviu o que queria ouvir. Encarou-me de frente, sorriu agradecida.
- Você quer me ouvir?
Emocionei-me. Nunca ninguém estivera disposto a depositar em mim tanta confiança. De repente uma mocinha surge do nada, precisando de mim. Não sei qual dos dois estaria precisando mais um do outro. Será que ambos “deixamos acontecer” o que poderia ser evitado?
- Claro, minha filha.
- Não vou lhe contar a história da minha vida, não se assuste... Para quem ainda não viveu muito, como você disse, já é uma longa história. Mas há coisas que gostaria de dividir com alguém. Coisas com as quais nem sempre a gente sabe lidar.
Para mim, já era um ensinamento. Dividir com os outros. Deixar que se intrometam na minha vida. Nunca fiz isso.
- Que coisas são essas?
- A gente vai deixando elas crescerem, crescerem, até que um dia, não fosse uma panela de feijão, tudo acabaria lá em baixo, na calçada.
Ela continuava dando voltas. Senti que queria confiar em mim, mas era difícil, talvez, expor-se tanto.
- Eu sou adotada, sabe? Nem conheci meus pais. Já saí da maternidade com meus outros pais. Até então minha nova mãe nunca podia ter tido filhos, e eu era a gracinha da casa. Isso até os cinco anos. Mas um dia minha mãe engravidou, veio meu irmão, depois vieram mais três, e aí começou o calvário da gracinha da casa.
- Calvário? Tanto assim?
- Como é seu nome?
- Otávio.
- Olha, Otávio, você pode não acreditar, mas foi um calvário. Uma via crucis que dura até hoje. Passei do carinho à rejeição, como da água pro vinho.
- É uma maldade, mas não é muito incomum.
- O que aconteceu comigo é muito incomum, sim. Ainda não lhe contei tudo.
Ela estava mais à vontade.
- Meu pai é muito rico. Morávamos em uma de suas fazendas. Quando vieram os filhos, eu passei a ser literalmente ignorada dentro de casa, como um fantasma que ninguém visse. Era doentio. Não me maltrataram fisicamente, mas antes o tivessem feito. O desprezo dói muito mais por dentro. Ninguém me ouvia, nem me dirigia uma palavra. Eu sentava à mesa, fazia as refeições em silêncio. Mais tarde pagaram-me os melhores colégios, deram-me as melhores roupas. Nada me faltava, tudo por monossílabos. Na fala e na mente.
Quando mostrei vontade de estudar, foi um alívio para eles. Mandaram-me para a cidade, puseram-me nesse apartamento, e só então minha mãe dirigiu-me algumas palavras: “Você vai ter tudo o que precisa”. E só. Como se tudo o que eu precisasse fosse um apartamento. Livraram-se de mim, como quem põe um cachorro na rua. Há quatro anos atrás. Nunca mais os vi. Mas eu era muito nova, e o que fizeram comigo deixei repercutir no resto da minha vida. Não soube reagir, dar a volta por cima, como se diz. Tranquei-me. Trabalho, me sustento, curso a faculdade, mas não consigo me relacionar com ninguém. Não confio em ninguém, sou só no mundo.
- E o seu nome, como é?
Escapei das inoportunas palavras de consolo com a pergunta fora de hora.
- Lívia.
- Pelo menos deram-lhe um nome muito bonito.
Ela pareceu não ouvir.
- Quando lhe vi, senti que você era parecido comigo, embora em outras circunstâncias. Sozinho, como eu. Alguma coisa me atraiu pra conversar com você.
Eu poderia ter dito que ela tinha razão, que eu era assim mesmo, que vegetava, não vivia. Mas não disse. Não porque não quisesse me expor, mas porque se dissesse, desmoronaria a fortaleza - entre aspas - que ela conseguiu ver em mim.
- Não se arrependeu, então...
- Claro que não. Nunca ninguém teve a paciência de me ouvir. A paciência, não, a caridade. Otávio... Eu nunca dei um motivo sequer para que tudo isso acontecesse... Eu nunca soube de ninguém que fosse tratada assim... e por que, meu Deus?
- Lívia... Um dia, um homem muito sábio, disse: “Embora ninguém possa voltar atrás e fazer um novo começo, qualquer um pode começar agora e fazer um novo fim”...
- Palavras de efeito...
- Não, Lívia... Não é mesmo verdade? Você poderia modificar as coisas? Você poderia fazer com que seus pais viessem a lhe amar? E ter uma infância alegre e feliz, junto à família, e uma adolescência cheia de amigos? Não... Isso já passou, você não pode voltar atrás e “fazer um novo começo”...
- Eu queria mesmo é mudar o meu passado. Eu estou marcada para sempre... Não sei viver como todo mundo...
- Nada é para sempre... Qualquer um pode...
- ...começar agora e fazer um novo fim? Você acredita nisso? Por que não aplicou essas palavras em você mesmo?
Ela tocou no ponto certo. Por que?
- Porque eu pensava que meus problemas eram os maiores do mundo. Todos nós pensamos, mas sempre aparece alguém para nos desmentir. Eu precisava conversar com você, Lívia. Eu precisava que você queimasse o feijão, e que saísse daquela janela correndo para apagar o fogo, e que viesse até essa praça e que me encontrasse... Nada acontece por acaso.
- Então... meus problemas são maiores que os seus... Eu teria que encontrar alguém com outros maiores ainda, para aceitá-los?...
- Não, há outros meios... Você precisa apenas reeducar sua mente, ela está desvirtuada. Mas não busque o passado, para isso. Apague-o da sua mente, veja o que você quer, daqui pra frente.
- Bem sei o que eu quero: ser tudo o que não fui. Ativa, vibrante, resoluta... e simpática, acima de tudo... não essa figura apagada, aquele fantasma que andava pela fazenda sem assustar ninguém ...
- Ainda querendo resgatar o passado... Você é muito nova, Lívia... Você tem que ser o que você é, o que está escondido lá no fundo, o que ainda não veio à tona. Descubra quem você é, o que você quer, mas... daqui pra frente.
Calei-me. Ela já não olhava para longe, com aqueles lindos olhos... de não ver. Encontrou alguém que queria ouvi-la. Olhava para mim, como querendo adivinhar coisas que eu não havia dito. Parecia-me pedir: Continue...
- Uma vez li um poema, cujo título era “Sei quem sou”. O autor descobriu-se, e depois de escrevê-lo, com certeza nunca quis ser mais do que era.
- Está muito complicado.
- “Sou as asas que sustentam o vôo, não sou o engenho que impulsiona”. Entende? “Sou o vagão que conduz a lenha, não sou a locomotiva que a queima, sôfrega”. Todos nós somos importantes, não importa de que lado estejamos. Mais que importantes, necessários. A vida não é feita só de locomotivas.
Lívia já não era aquela moça triste que chegou do nada, na praça, e sentou-se ao meu lado, intrometendo-se em meu mundo. Era-me íntima, agora. Senti que ouvira minhas palavras no momento certo e no lugar certo. Logo eu... que nunca falei mais de três palavras com ninguém, estava ali dando aulas de vida a quem, sem saber, ensinava-me também. E com um terço da minha idade! Lembrei-me da primeira lição que me deu, que eu guardaria para toda a vida: “as pessoas deviam se intrometer mais, umas com as outras”.
Sem tirar os olhos de mim, apenas disse:
- Você tem razão...
E sorriu. Um sorriso tão terno, tão meigo, que me fez o coração bater mais forte. Segurou minhas mãos e trouxe-me junto a si, envolvendo-me num carinhoso abraço. E assim ficamos, longo tempo, em silêncio, revendo nossas vidas, que jamais seriam as mesmas.
Sozinhos, na praça cheia de gente...
Ela era a filha que eu não tive. Completou meu pensamento:
- Meu terceiro e único pai...
Quase não consegui falar, agora mais ainda comovido com as suas palavras:
- Lívia... Prometa-me que não vai mais deixar queimar o feijão...



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