terça-feira, 31 de dezembro de 2013

MARIA ARREBITADA
 Maurício Meyer Ferreira - Junho de 2013


-Aninha, cadê Naldinho?
- Tá lá, naquela lata velha... na maria-arrebitada. Ele não sai de lá...
Antonio achou graça:
- Que maria arrebitada, Aninha?... O pessoal chama é de maria-empinada... Você troca tudo!
- Dá no mesmo. O certo mesmo não é maria-cremalheira? Ninguém chama assim... Aquilo é brinquedo perigoso, podem se cortar, tá tudo enferrujado...
- Qual nada, deixa eles brincarem. Esse menino é apaixonado pelo trem. Imagine se ele tivesse conhecido a maria-cremalheira subindo e descendo a serra todos os dias, empurrando o vagão cheio de gente... Se ele tivesse viajado ao menos uma vez, comigo, na cabine, ouvindo o ‘tec-tec-tec’ da engrenagem... Como iria ficar feliz!
- Ele diz que quer ser igual a você, “aguiador” de trem. E que quando crescer vai subir a serra dirigindo a maria-arrebitada.
- Qual... Ele que arranje outra profissão. Agora é tudo pelo asfalto. Aquela nunca mais vai voltar para os trilhos. O mato já está tomando conta de tudo... Quase não se vê mais a pobre coitada!
- É mesmo... Por que será que tem esse apelido de “maria”? Coitadas das Marias...
- Vem de maria-fumaça... E ela é maria-empinada...
- Antonio, vai até lá chamar ele. Tá na hora do almoço.  
- Bem que eu tenho saudades... mas, fazer o que?
-Oi, meu neto, larga a maria um pouco... Sua avó está chamando pra almoçar.
Para o velho ferroviário, ver aquela linha desativada, a sua antiga companheira de trabalho abandonada, suja e enferrujada, sendo aos poucos engolida pelo mato, causava muita tristeza. Por isso deixava que Arnaldo, na sua fértil imaginação infantil, ‘subisse a serra’ todos os dias, apitando nas curvas e dando ordens para o foguista alimentar a fornalha.
Arranjou até um boné de maquinista para ele.
- Vamos, Naldinho. Sua avó está esperando. Vem você também, Juninho, está na hora de comer.
O menino desceu da cabine e deu a mão ao avô.
- E então? Quantas vezes você subiu e desceu a serra hoje? E você, foguista, foi com ele?
- Fui... Conta pra ele, Naldinho...
- O que foi, meu neto? Qual foi a traquinada?
Antonio imaginou ter acontecido algo. Aquela máquina, enfim, era mesmo um brinquedo perigoso.
- Nada não, vô... É que a gente tava aqui ocupado, aí apareceu um cara, ficou encostado na lenha de braços cruzados olhando pra gente. Ria o tempo todo, não sei de que.
- Um cara? Apareceu, como?
- Sei lá... Eu tava subindo a serra, Juninho jogando lenha na fornalha, e quando olhei pra trás, tava lá ele, encostado, rindo. Falei com ele, mas ele nem me respondeu. Continuou rindo.
- E depois?
- Uai, depois que eu olhei de novo, ele tinha sumido.
- Sumido? Vai ver que era um fantasma...
Antonio brincou com o neto, mas não gostou da história. Quem seria aquele ‘cara’, olhando as crianças em suas brincadeiras, sem falar nada e sumindo de repente?
- Você não sabe quem é ele, Arnaldo? Você roda isso tudo por aqui, conhece todo mundo nessa cidade...
- Não, vô, nunca vi ele aqui. E nem Juninho num viu, tava de costas...
- Eu não vi ninguém.
- Meu neto, acho bom vocês pararem um pouco de subir a serra na maria-empinada, até eu ver quem é esse rapaz. A gente não sabe o que é que ele quer.
- Poxa, vô, vai ver que ele ficou lá no Alto e nem desceu com a gente. Nem vai aparecer mais...
A imaginação de Arnaldo não tinha limites.
- É, mas primeiro deixa eu ver quem é ele.
À noite, depois da janta, Naldinho já na cama, Antonio comentou com Aninha o acontecido. Podia não ser nada demais, mas nunca se sabe. A cidadezinha era muito pacata, ainda mais porque, depois que a cremalheira fora desativada, Guapimirim passou a ser o fim da linha. Só quem morava lá é que ia no trem, por sinal agora elétrico, até o final,
-Eu não disse, Aninha, que a gente tem que ter cuidado? Quem será esse rapaz que Naldinho viu lá na locomotiva? Disse que ele nem falou nada e sumiu, de repente. Só ficou rindo. Não é estranho?
- É, a gente tem que tomar cuidado.É tão raro aparecer gente nova por aqui que a gente tem que ver quem é.
- Vou fazer isso. Enquanto não descubro, não o deixe voltar lá. O mato está fechando em volta da maria-empinada e aquilo ali está ficando muito ermo.
No dia seguinte Antonio rodou a cidade toda, o que, aliás, não demorou muito. Procurou o paradeiro do rapaz pela barbearia, pela farmácia, pela delegacia. Ninguém o tinha visto.
Voltou a puxar o assunto com o neto:
- Meu neto... como era esse rapaz? Era muito ou pou-co velho?
- Velho, vô. Assim, igual a você...
O ‘velho’ achou graça. Para uma criança de sete anos, qualquer um com mais de cinquenta é velho...
- Eu não vou poder mais ir lá, vô?
- Vai, sim. Ele deve ter ficado lá em cima, na serra. Já que não desceu, na viagem de volta... Mas se aparecer de novo, você me fala!
- Pode deixar que eu falo.
Mas Arnaldo estava disposto a não falar nada, se o outro voltasse. E se o vô o proibisse de ser maquinista?
- Juninho, se o cara voltar, bico calado! Senão a gente não sobe mais a serra!


A revista era um pouco antiga. Quando Arnaldo viu a reportagem sobre a reabertura do Museu do Trem, dois meses atrás, logo vieram à tona lembranças de sua infância, em Guapimirim, nos anos oitenta. Do seu avô “aguiador de trem”, como ele o chamava, das histórias que ele contava do “tec-tec-tec” da cremalheira subindo a serra - que ele nem conheceu - e a maria-empinada...
Maria-empinada! Será que ela estava no museu? Será que haviam conseguido restaurar a ‘lata velha’ das suas brincadeiras de criança?
Falou entre dentes, para si mesmo:
- Abril de 2013! Parada desde abril de 1957, relegada ao abandono todo esse tempo... 56 anos! um crime...  Se na minha infância já não era sombra do que foi, imagine agora... Bem, antes tarde do que nunca...
Fechou o jornal sobre os joelhos, recostou a cabeça da poltrona e entregou-se às reminiscências.
Onde andaria o ‘foguista’ Juninho? Levava a sério, tanto quanto ele, as ‘subidas da serra’. Ia colocando os gravetos na fornalha enferrujada, enquanto ele próprio, nos comandos, movia a alavanca do apito e puxava a já inexistente cordinha que tocava o sino. Lembrou-se de uma vez que, tentando dar mais realismo à ‘viagem’, ateou fogo aos gravetos, e foi um custo apagá-lo... Isso, o vô nunca soube.
E das lembranças ao transporte até a velha máquina, foi um pulo...
Viu-se na cabine, encostado no tender, apreciando os dois garotos brincarem na locomotiva. Eles levavam jeito, imitando em tudo as histórias que o vovô contava. Em certa hora, chegou a pensar que tinham percebido a sua – hmm... – presença...
- Bobagem... A imaginação não é assim tão forte...
De um salto, levantou-se e consultou o relógio.
- É cedo ainda. Vou já conferir se conseguiram embelezar a maria-empinada...
O museu era bastante completo e diversificado. Havia trens de todos os tipos, desde as primeiras locomotivas a vapor, às ‘diesel’ mais novas; dos antigos vagões imperiais, restaurados com todo o luxo característico, às litorinas que tanto sucesso fizeram nos anos setenta. Arnaldo estava maravilhado, mas seus olhos percorriam as antigas oficinas do Engenho de Dentro em busca de uma só peça: a maria-arrebitada, como dizia sua avó....
Enfim, lá estava ela, em posição de destaque. A tração por cremalheira dava-lhe um status diferente, em meio às suas irmãs. Era delicada, pequena e elegante, com a traseira arrebitada como as damas do início do século vinte.
E nova, novinha, brilhante e reluzente, como Arnaldo nunca poderia imaginar que iria vê-la um dia...


Um cordão de isolamento a circundava.
Mas, como? Ele não poderia subir na cabine? Deu a volta em torno, pensou até em burlar a vigilância. Não havia jeito. Na lateral, uma placa mostrava um pequeno histórico sobre a locomotiva, além da foto de uma medalha, verso e reverso, esclarecendo terem sido cunhados poucos exemplares, em 1908, para comemoração da inauguração da ferrovia.
À visão daquela medalha, com o ‘Dedo de Deus’ cunhado em uma das faces, a data: 1908... a ponte sobre o rio Soberbo na outra face... Arnaldo sentiu insólita comoção. Veio-lhe à mente a ideia de que tinha tido uma medalha daquelas nas mãos, quando criança, ignorando que fim teria dado a ela. Por que essa sensação?
Quando novamente levantou os olhos para a máquina, viu, na pequena janela da cabine, um homem usando um antigo boné dos maquinistas, idêntico ao que um dia ganhara do seu avô. Ele levantou-se e chegou até a borda da cabine. Afora o boné, de uso em serviço, estava elegantemente vestido, para os padrões do início do século vinte. Fixou os olhos em Arnaldo, apontou para o piso da locomotiva e disse: “Há uma dessas medalhas aqui. É a que me foi ofertada, e que perdi durante as festividades de inauguração da ferrovia...”
Arnaldo olhou em torno. As pessoas iam e vinham, admirando as peças expostas, sem se deterem no que seria a ‘apresentação’ do artista.
Mas... aquela figura não era de nenhum ator contratado pelo museu. Percebeu que somente ele o via. O homem continuou dirigindo-se a ele: “Leve-a para seu avô, ele sempre quis ter uma dessas. Diga-lhe que é uma lembrança de José Augusto Vieira.”
Arnaldo estava extático. Quem era, ou quem foi José Augusto Vieira? E a medalha? “Há uma dessas aqui”... Aqui, onde? Como iria apanhá-la, se nem podia chegar perto da maria-empinada? E, se conseguisse? como iria entregá-la ao seu vô Antonio?... que Deus o tenha...
O etéreo personagem pareceu-lhe ouvir as perguntas: “Vou lhe mostrar onde está a medalha... Pegue-a, e leve-a para seu avô... leve-a, ele vai gostar...” Em seguida, lentamente foi-se fazendo invisível aos olhos arregalados do rapaz.
Então, ele viu uma suave claridade azulada, que pulsava, intermitente, por baixo da placa metálica do piso. A medalha estaria encaixada entre as duas placas, e teria passado despercebida até mesmo pelos perspicazes restauradores da composição.
Seria impossível resgatá-la. Frustrado, tornou a ler a placa indicativa da peça. Estava lá: “José Augusto Vieira” construtor da ferrovia Rio-Teresópolis”.
 Voltou para casa decepcionado, pensando em algum outro um meio de satisfazer o pedido do ilustre fantasma.
-Juninho, olhe aquele cara de novo...
-Arnaldo, pede pro Juninho buscar mais lenha. Tenho que falar com você.
- Pra que? Quem é você? Meu vô quer saber...
- Que cara, Naldinho? Não estou vendo ninguém.
- Vai buscar mais lenha, foguista. A fornalha tá vazia.
O ‘foguista’ saiu.
- Pronto, pode falar. Por que tem que ser eu sozinho?
- Porque ninguém mais me vê, só você. Você sabia que tem uma moeda escondida na maria-empinada?
- Uma moeda escondida? Onde?
- Não é bem uma moeda, é uma medalha.
- Pra que ela serve? Se não é moeda, não serve pra comprar nada.
- Vou lhe mostrar onde ela está. Leva ela para o seu avô. Diga que foi José Augusto Vieira que mandou pra ele.
- Quem é esse cara?
-José Augusto Vieira? Você tem certeza?
- Foi o que o moço disse, vô.
Antonio não sabia o que pensar. Quem teria dado a medalha a Arnaldo? O engenheiro já não pertencia ao mundo dos vivos há muito tempo. Ele já tinha ouvido falar sobre aquela medalha, mas nunca a havia visto. Sempre tivera vontade de possuir uma, mas... quem era ele, um simples ferroviário de Guapimirim... Tinham sido cunhadas tão poucas, só para as autoridades... E isso em 1908!
- E quedê esse moço, que não aparece nunca?
- Sumiu igual à primeira vez.
- Sumiu, Naldinho? Como, sumiu? Ele não estava na sua frente?
- Poie é, vô, mas foi sumindo, sumindo, sumiu...
- O que? Virou fumaça?
- É...
- E você, não ficou com medo?
- Não, vô... Ele era igual a mim... Não era fantasma...
Antonio silenciou. Ficou olhando para Arnaldo sem saber o que dizer. O garoto sorriu:
- Posso ir, vô?
- Pode, meu filho... Vai... vai subir a serra...
-Vovó, o vovô tinha alguma medalhinha de estimação? Assim... que ele gostasse muito?
- Medalhinha?... Sim, tinha... Era da inauguração da estrada de ferro. Curioso, você se lembrar dela agora... Nem eu me lembrava mais... Aliás, essa medalhinha devia ter algum segredo, porque quando seu avô chegou com ela em casa, mostrou-me e disse: “Olha o que eu ganhei...” Perguntei quem tinha dado aquele presente tão valioso – era uma medalha de ouro... – e ele disse: “Pra falar a verdade, não sei... É melhor até a gente não mexer com essas coisas, Aninha...” Eu me lembro que fiquei nervosa, com medo não sei de que. Uma medalha de ouro... ‘Essas coisas’, o que? Ele nunca me disse...
Então, a medalha existia... e foi entregue ao vô, como pediu o Dr. José Augusto Vieira...
- O que ele fez com a medalha, vovó?
- Ela tinha um furinho em cima... Ele mandou fazer um cordãozinho de ouro e usou até o dia da morte. Não tirava nem pro banho. E eu nunca soube de onde ela veio...
Aninha fez uma pausa. Olhou para o neto, que sorria como quem não estava com coragem para pedir alguma coisa. Adivinhou o que era:
- Quer ela pra você, Naldinho? Seu avô bem que gostaria que você ficasse com ela...
 Em seguida levantou-se e buscou uma pequena caixa de madeira, com a locomotiva incrustada na tampa, num fino trabalho de machetaria. Arnaldo pensou não aguentar a emoção. A medalha estava junto com outros pertences de Antonio: o relógio da ferrovia, o crachá de maquinista, a chave da maria-empinada...
Aninha abriu a caixinha, e lá estava ela, envolta numa claridade azulada que apenas ele via, pulsando, intermitente...
- Leve-a, Naldinho... a sua maria-arrebitada...


segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

RETORNO

Retorno hoje a este blog. Devo continuar postando meus contos e poemas