terça-feira, 31 de dezembro de 2013

MARIA ARREBITADA
 Maurício Meyer Ferreira - Junho de 2013


-Aninha, cadê Naldinho?
- Tá lá, naquela lata velha... na maria-arrebitada. Ele não sai de lá...
Antonio achou graça:
- Que maria arrebitada, Aninha?... O pessoal chama é de maria-empinada... Você troca tudo!
- Dá no mesmo. O certo mesmo não é maria-cremalheira? Ninguém chama assim... Aquilo é brinquedo perigoso, podem se cortar, tá tudo enferrujado...
- Qual nada, deixa eles brincarem. Esse menino é apaixonado pelo trem. Imagine se ele tivesse conhecido a maria-cremalheira subindo e descendo a serra todos os dias, empurrando o vagão cheio de gente... Se ele tivesse viajado ao menos uma vez, comigo, na cabine, ouvindo o ‘tec-tec-tec’ da engrenagem... Como iria ficar feliz!
- Ele diz que quer ser igual a você, “aguiador” de trem. E que quando crescer vai subir a serra dirigindo a maria-arrebitada.
- Qual... Ele que arranje outra profissão. Agora é tudo pelo asfalto. Aquela nunca mais vai voltar para os trilhos. O mato já está tomando conta de tudo... Quase não se vê mais a pobre coitada!
- É mesmo... Por que será que tem esse apelido de “maria”? Coitadas das Marias...
- Vem de maria-fumaça... E ela é maria-empinada...
- Antonio, vai até lá chamar ele. Tá na hora do almoço.  
- Bem que eu tenho saudades... mas, fazer o que?
-Oi, meu neto, larga a maria um pouco... Sua avó está chamando pra almoçar.
Para o velho ferroviário, ver aquela linha desativada, a sua antiga companheira de trabalho abandonada, suja e enferrujada, sendo aos poucos engolida pelo mato, causava muita tristeza. Por isso deixava que Arnaldo, na sua fértil imaginação infantil, ‘subisse a serra’ todos os dias, apitando nas curvas e dando ordens para o foguista alimentar a fornalha.
Arranjou até um boné de maquinista para ele.
- Vamos, Naldinho. Sua avó está esperando. Vem você também, Juninho, está na hora de comer.
O menino desceu da cabine e deu a mão ao avô.
- E então? Quantas vezes você subiu e desceu a serra hoje? E você, foguista, foi com ele?
- Fui... Conta pra ele, Naldinho...
- O que foi, meu neto? Qual foi a traquinada?
Antonio imaginou ter acontecido algo. Aquela máquina, enfim, era mesmo um brinquedo perigoso.
- Nada não, vô... É que a gente tava aqui ocupado, aí apareceu um cara, ficou encostado na lenha de braços cruzados olhando pra gente. Ria o tempo todo, não sei de que.
- Um cara? Apareceu, como?
- Sei lá... Eu tava subindo a serra, Juninho jogando lenha na fornalha, e quando olhei pra trás, tava lá ele, encostado, rindo. Falei com ele, mas ele nem me respondeu. Continuou rindo.
- E depois?
- Uai, depois que eu olhei de novo, ele tinha sumido.
- Sumido? Vai ver que era um fantasma...
Antonio brincou com o neto, mas não gostou da história. Quem seria aquele ‘cara’, olhando as crianças em suas brincadeiras, sem falar nada e sumindo de repente?
- Você não sabe quem é ele, Arnaldo? Você roda isso tudo por aqui, conhece todo mundo nessa cidade...
- Não, vô, nunca vi ele aqui. E nem Juninho num viu, tava de costas...
- Eu não vi ninguém.
- Meu neto, acho bom vocês pararem um pouco de subir a serra na maria-empinada, até eu ver quem é esse rapaz. A gente não sabe o que é que ele quer.
- Poxa, vô, vai ver que ele ficou lá no Alto e nem desceu com a gente. Nem vai aparecer mais...
A imaginação de Arnaldo não tinha limites.
- É, mas primeiro deixa eu ver quem é ele.
À noite, depois da janta, Naldinho já na cama, Antonio comentou com Aninha o acontecido. Podia não ser nada demais, mas nunca se sabe. A cidadezinha era muito pacata, ainda mais porque, depois que a cremalheira fora desativada, Guapimirim passou a ser o fim da linha. Só quem morava lá é que ia no trem, por sinal agora elétrico, até o final,
-Eu não disse, Aninha, que a gente tem que ter cuidado? Quem será esse rapaz que Naldinho viu lá na locomotiva? Disse que ele nem falou nada e sumiu, de repente. Só ficou rindo. Não é estranho?
- É, a gente tem que tomar cuidado.É tão raro aparecer gente nova por aqui que a gente tem que ver quem é.
- Vou fazer isso. Enquanto não descubro, não o deixe voltar lá. O mato está fechando em volta da maria-empinada e aquilo ali está ficando muito ermo.
No dia seguinte Antonio rodou a cidade toda, o que, aliás, não demorou muito. Procurou o paradeiro do rapaz pela barbearia, pela farmácia, pela delegacia. Ninguém o tinha visto.
Voltou a puxar o assunto com o neto:
- Meu neto... como era esse rapaz? Era muito ou pou-co velho?
- Velho, vô. Assim, igual a você...
O ‘velho’ achou graça. Para uma criança de sete anos, qualquer um com mais de cinquenta é velho...
- Eu não vou poder mais ir lá, vô?
- Vai, sim. Ele deve ter ficado lá em cima, na serra. Já que não desceu, na viagem de volta... Mas se aparecer de novo, você me fala!
- Pode deixar que eu falo.
Mas Arnaldo estava disposto a não falar nada, se o outro voltasse. E se o vô o proibisse de ser maquinista?
- Juninho, se o cara voltar, bico calado! Senão a gente não sobe mais a serra!


A revista era um pouco antiga. Quando Arnaldo viu a reportagem sobre a reabertura do Museu do Trem, dois meses atrás, logo vieram à tona lembranças de sua infância, em Guapimirim, nos anos oitenta. Do seu avô “aguiador de trem”, como ele o chamava, das histórias que ele contava do “tec-tec-tec” da cremalheira subindo a serra - que ele nem conheceu - e a maria-empinada...
Maria-empinada! Será que ela estava no museu? Será que haviam conseguido restaurar a ‘lata velha’ das suas brincadeiras de criança?
Falou entre dentes, para si mesmo:
- Abril de 2013! Parada desde abril de 1957, relegada ao abandono todo esse tempo... 56 anos! um crime...  Se na minha infância já não era sombra do que foi, imagine agora... Bem, antes tarde do que nunca...
Fechou o jornal sobre os joelhos, recostou a cabeça da poltrona e entregou-se às reminiscências.
Onde andaria o ‘foguista’ Juninho? Levava a sério, tanto quanto ele, as ‘subidas da serra’. Ia colocando os gravetos na fornalha enferrujada, enquanto ele próprio, nos comandos, movia a alavanca do apito e puxava a já inexistente cordinha que tocava o sino. Lembrou-se de uma vez que, tentando dar mais realismo à ‘viagem’, ateou fogo aos gravetos, e foi um custo apagá-lo... Isso, o vô nunca soube.
E das lembranças ao transporte até a velha máquina, foi um pulo...
Viu-se na cabine, encostado no tender, apreciando os dois garotos brincarem na locomotiva. Eles levavam jeito, imitando em tudo as histórias que o vovô contava. Em certa hora, chegou a pensar que tinham percebido a sua – hmm... – presença...
- Bobagem... A imaginação não é assim tão forte...
De um salto, levantou-se e consultou o relógio.
- É cedo ainda. Vou já conferir se conseguiram embelezar a maria-empinada...
O museu era bastante completo e diversificado. Havia trens de todos os tipos, desde as primeiras locomotivas a vapor, às ‘diesel’ mais novas; dos antigos vagões imperiais, restaurados com todo o luxo característico, às litorinas que tanto sucesso fizeram nos anos setenta. Arnaldo estava maravilhado, mas seus olhos percorriam as antigas oficinas do Engenho de Dentro em busca de uma só peça: a maria-arrebitada, como dizia sua avó....
Enfim, lá estava ela, em posição de destaque. A tração por cremalheira dava-lhe um status diferente, em meio às suas irmãs. Era delicada, pequena e elegante, com a traseira arrebitada como as damas do início do século vinte.
E nova, novinha, brilhante e reluzente, como Arnaldo nunca poderia imaginar que iria vê-la um dia...


Um cordão de isolamento a circundava.
Mas, como? Ele não poderia subir na cabine? Deu a volta em torno, pensou até em burlar a vigilância. Não havia jeito. Na lateral, uma placa mostrava um pequeno histórico sobre a locomotiva, além da foto de uma medalha, verso e reverso, esclarecendo terem sido cunhados poucos exemplares, em 1908, para comemoração da inauguração da ferrovia.
À visão daquela medalha, com o ‘Dedo de Deus’ cunhado em uma das faces, a data: 1908... a ponte sobre o rio Soberbo na outra face... Arnaldo sentiu insólita comoção. Veio-lhe à mente a ideia de que tinha tido uma medalha daquelas nas mãos, quando criança, ignorando que fim teria dado a ela. Por que essa sensação?
Quando novamente levantou os olhos para a máquina, viu, na pequena janela da cabine, um homem usando um antigo boné dos maquinistas, idêntico ao que um dia ganhara do seu avô. Ele levantou-se e chegou até a borda da cabine. Afora o boné, de uso em serviço, estava elegantemente vestido, para os padrões do início do século vinte. Fixou os olhos em Arnaldo, apontou para o piso da locomotiva e disse: “Há uma dessas medalhas aqui. É a que me foi ofertada, e que perdi durante as festividades de inauguração da ferrovia...”
Arnaldo olhou em torno. As pessoas iam e vinham, admirando as peças expostas, sem se deterem no que seria a ‘apresentação’ do artista.
Mas... aquela figura não era de nenhum ator contratado pelo museu. Percebeu que somente ele o via. O homem continuou dirigindo-se a ele: “Leve-a para seu avô, ele sempre quis ter uma dessas. Diga-lhe que é uma lembrança de José Augusto Vieira.”
Arnaldo estava extático. Quem era, ou quem foi José Augusto Vieira? E a medalha? “Há uma dessas aqui”... Aqui, onde? Como iria apanhá-la, se nem podia chegar perto da maria-empinada? E, se conseguisse? como iria entregá-la ao seu vô Antonio?... que Deus o tenha...
O etéreo personagem pareceu-lhe ouvir as perguntas: “Vou lhe mostrar onde está a medalha... Pegue-a, e leve-a para seu avô... leve-a, ele vai gostar...” Em seguida, lentamente foi-se fazendo invisível aos olhos arregalados do rapaz.
Então, ele viu uma suave claridade azulada, que pulsava, intermitente, por baixo da placa metálica do piso. A medalha estaria encaixada entre as duas placas, e teria passado despercebida até mesmo pelos perspicazes restauradores da composição.
Seria impossível resgatá-la. Frustrado, tornou a ler a placa indicativa da peça. Estava lá: “José Augusto Vieira” construtor da ferrovia Rio-Teresópolis”.
 Voltou para casa decepcionado, pensando em algum outro um meio de satisfazer o pedido do ilustre fantasma.
-Juninho, olhe aquele cara de novo...
-Arnaldo, pede pro Juninho buscar mais lenha. Tenho que falar com você.
- Pra que? Quem é você? Meu vô quer saber...
- Que cara, Naldinho? Não estou vendo ninguém.
- Vai buscar mais lenha, foguista. A fornalha tá vazia.
O ‘foguista’ saiu.
- Pronto, pode falar. Por que tem que ser eu sozinho?
- Porque ninguém mais me vê, só você. Você sabia que tem uma moeda escondida na maria-empinada?
- Uma moeda escondida? Onde?
- Não é bem uma moeda, é uma medalha.
- Pra que ela serve? Se não é moeda, não serve pra comprar nada.
- Vou lhe mostrar onde ela está. Leva ela para o seu avô. Diga que foi José Augusto Vieira que mandou pra ele.
- Quem é esse cara?
-José Augusto Vieira? Você tem certeza?
- Foi o que o moço disse, vô.
Antonio não sabia o que pensar. Quem teria dado a medalha a Arnaldo? O engenheiro já não pertencia ao mundo dos vivos há muito tempo. Ele já tinha ouvido falar sobre aquela medalha, mas nunca a havia visto. Sempre tivera vontade de possuir uma, mas... quem era ele, um simples ferroviário de Guapimirim... Tinham sido cunhadas tão poucas, só para as autoridades... E isso em 1908!
- E quedê esse moço, que não aparece nunca?
- Sumiu igual à primeira vez.
- Sumiu, Naldinho? Como, sumiu? Ele não estava na sua frente?
- Poie é, vô, mas foi sumindo, sumindo, sumiu...
- O que? Virou fumaça?
- É...
- E você, não ficou com medo?
- Não, vô... Ele era igual a mim... Não era fantasma...
Antonio silenciou. Ficou olhando para Arnaldo sem saber o que dizer. O garoto sorriu:
- Posso ir, vô?
- Pode, meu filho... Vai... vai subir a serra...
-Vovó, o vovô tinha alguma medalhinha de estimação? Assim... que ele gostasse muito?
- Medalhinha?... Sim, tinha... Era da inauguração da estrada de ferro. Curioso, você se lembrar dela agora... Nem eu me lembrava mais... Aliás, essa medalhinha devia ter algum segredo, porque quando seu avô chegou com ela em casa, mostrou-me e disse: “Olha o que eu ganhei...” Perguntei quem tinha dado aquele presente tão valioso – era uma medalha de ouro... – e ele disse: “Pra falar a verdade, não sei... É melhor até a gente não mexer com essas coisas, Aninha...” Eu me lembro que fiquei nervosa, com medo não sei de que. Uma medalha de ouro... ‘Essas coisas’, o que? Ele nunca me disse...
Então, a medalha existia... e foi entregue ao vô, como pediu o Dr. José Augusto Vieira...
- O que ele fez com a medalha, vovó?
- Ela tinha um furinho em cima... Ele mandou fazer um cordãozinho de ouro e usou até o dia da morte. Não tirava nem pro banho. E eu nunca soube de onde ela veio...
Aninha fez uma pausa. Olhou para o neto, que sorria como quem não estava com coragem para pedir alguma coisa. Adivinhou o que era:
- Quer ela pra você, Naldinho? Seu avô bem que gostaria que você ficasse com ela...
 Em seguida levantou-se e buscou uma pequena caixa de madeira, com a locomotiva incrustada na tampa, num fino trabalho de machetaria. Arnaldo pensou não aguentar a emoção. A medalha estava junto com outros pertences de Antonio: o relógio da ferrovia, o crachá de maquinista, a chave da maria-empinada...
Aninha abriu a caixinha, e lá estava ela, envolta numa claridade azulada que apenas ele via, pulsando, intermitente...
- Leve-a, Naldinho... a sua maria-arrebitada...


segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

RETORNO

Retorno hoje a este blog. Devo continuar postando meus contos e poemas

sábado, 7 de abril de 2012

Reflexões (3)

Em  6 de abril de 2012.

Ando sentindo coisas curiosas. E muito boas.Têm-me vindo ao pensamento lembranças, sem mais nem menos, sem nenhum relacionamento direto com o que estou fazendo ou pensando. Sem relação direta, mas alguma sempre tem, embora muito sutil.
Não fui claro. Mas não são claros também estes pensamentos, embora sejam muito agradáveis, e, curiosamente, vêm acompanhados logo de imagens de fotos, talvez por estarem sempre muitas me povoando a mente. Então, prazerosamente desenvolvo-os, e vou longe, lembrando dos nossos primeiros anos de casados, da simplicidade que era a nossa vida, do filho pequeno, dos nossos cabelos ainda longe de ficarem grisalhos. Não quero “voltar”, jamais; não tenho saudades. Tenho lembranças maravilhosas (esqueço as desavenças e as discussões – sei que as houve), e só repasso as coisas boas.
Continuo não sendo claro nessas minhas reflexões, eu sei. Mas como é que posso ser claro, se aqui, sentado em frente ao computador, penso na cena que descortinava do 9º andar (9º ou 7º ?) do edifício onde morávamos? Chovia, fazia frio, e de lá de cima eu via os carros espalhando a água do asfalto.
Essas lembranças vêm acontecendo a toda hora. Se comentasse com alguém, superficialmente esse alguém diria: “Saudosismo”. Pode ser. Mas não é só isso. Acho que estou impregnado de tantas coisas boas que me aconteceram durante a vida, que as lembranças me vêm à mente, sem que eu necessite de nenhuma comparação com o meio em que estou, para retirá-las do arquivo. A toda hora brotam, espontâneas, por isso desligadas de qualquer fator que as una com a vida atual. Nunca comparo meus dois tempos, presente e passado, nunca penso que antes era melhor, porque sei que não era. Tenho muitas coisas boas no presente, tantas quantas tive no passado, mas são diferentes, é claro.
Será que isso acontece por causa da idade? Talvez. Por causa dela, passei a habitar um mundo diferente, paralelo àquele onde mora o povo que me rodeia. Bem melhor, porque agora conheço os dois, e posso compará-los.
Por causa da idade, a cabeça da gente – da gente, não, a minha; a dos outros, não sei – muda tanto, tanta coisa surge, que essas coisas que vêm acontecendo comigo podem ter aí a causa. O mundo que habito é outro, onde vivem as pessoas com mais de sessenta, e não se mistura com o mundo dos de menos de sessenta, do rebuliço, dos escritórios, dos horários e dos congestionados feriados prolongados; no meu, não pago passagem, os bancos são amarelos, faço xixi de graça, mexo mingau com o fogo apagado e as pessoas que não moram nele dão-me lugar nas conduções. Um mundo que as pessoas respeitam mas não querem estar nele, e onde passei a ser, de repente, agradavelmente respeitado, todos acham que eu preciso de ajuda nas menores coisas, e eu acho graça e deixo pensarem e aceito, mas também onde, infelizmente, muitos dos habitantes desse meu mundo se comprazem em chorar as mágoas pelas suas doenças e pelos seus achaques.
É bom morar aqui nesse mundo, mas é preciso tomar certos cuidados. Não me meter, por exemplo, num acidente de trânsito. Ainda que não tenha sido, haverá sempre a dúvida se a culpa foi minha ou não (Será que ele estava atento?). Não posso deixar cair um copo, não posso esquecer a luz acesa, tampouco a chave do lado de fora da porta, porque... "meus reflexos já não são os mesmos". Tudo o que sai errado, será por causa da idade. Até me desculpam, mas, condescendentes, não pesquisam a verdade.
Divaguei feio. Saí do tema. Divaguei pra mostrar os dois mundos.
Voltando ao assunto dessas reflexões. Aquelas lembranças de que falei: acontecem, acho que é mesmo, indiretamente, por causa da idade. O pensamento ficou mais solto – se bem que nunca foi muito preso – por isso penso, prazeroso, o que me vem, e na hora que me vem. Sem regras, inconscientemente. Deve ser isso. Às vezes pago mico, mas é muito bom assim mesmo.

quinta-feira, 15 de março de 2012

O ANTIGO DONO

 Direitos autorais reservados



O  ANTIGO  DONO
Janeiro 1985
 



-Olhe, Edú!
Era um Packard 1937 que passava, reluzente como novo.
- Que beleza! Parece saído da fábrica... Você sabe que eu tenho um desses?
- Você? Um Packard?
- Não, não um Packard. É um Chevrolet, 1953. Uma dessas raridades, eu quis dizer. O meu rodou menos de dez mil milhas, até hoje. Foi um dia colocado sobre cavaletes de onde só saiu trinta anos depois, para minhas mãos.
- Não me diga! Como você conseguiu esse tesouro?
- Ganhei.
- Ganhou mesmo? De presente? Quem anda por aí dando carros de presente?
- Foi um amigo meu. Quer ver o carro? Vamos até lá em casa.
Deixaram o chopinho sem terminar e saíram. Em poucos minutos estavam na casa de Edú.
Ele morava sozinho naquele subúrbio há muitos anos, mais da metade de sua vida. Casara-se cedo e logo enviuvara, sem filhos. O amor pela mulher fez com que não tentasse recompor sua vida a dois, preferindo permanecer na calma solidão da casinha modesta.
- Vamos continuar aqui? - Edú estendia ao amigo um copo de cerveja recém aberta, enquanto levava-o para a garagem.
- Olhe aí o bichão. Não vá lhe cair o queixo...
Por pouco não caía mesmo. Era realmente uma maravilha. Augusto nunca tinha visto nada igual. A pintura, negra, refletia tudo como um espelho, os cromados reluziam. Vidros “ray-ban”, pneus banda branca ainda originais, "power glide". Tudo como saído de fábrica. E o interior? Forração e teto de casimira, tapetes também originais. Apenas uma pequenina mancha escura no assento traseiro, menor que uma moeda, chamou a atenção de Augusto. Mas mesmo aquela mancha seria imperceptível, não fosse todo o resto impecavelmente conservado.
- Edú, puxa... superou as minhas expectativas! Então, um amigo lhe deu? Não acredito. Deve ser um amigo do peito. Que diabos você fez para merecer este presente?
- Nada. Não fiz nada. E nem o amigo é tão “do peito”assim. Na verdade eu nem conheci o antigo dono. Pensando bem, se fiz alguma coisa por ele foi depois que ganhei o carro.
- Depois?
- Há uma história. Quer ouvi-la?
- Claro que quero. Pelo jeito, deve ser uma história e tanto. Vem cá, não tem uma outra cervejinha?
Edú retornou à cozinha. Já com outra garrafa na mão, sentou-se ao volante. Augusto sentou-se ao seu lado.
- Sabe, eu sempre gostei de carros antigos, mas nunca pensei que teria um destes algum dia. Achava-os muito volumosos para um “hobby”, e se fosse dado a coleções na certa iria preferir os chaveiros. Mas frequentava as reuniões do “Veteran Car”, e foi justamente num desses encontros, em conversa com outros aficionados que fiquei sabendo da existência deste Chevrolet, trancado num fundo de quintal, sobre cavaletes e intocável, numa rua do Encantado. Até o nome do bairro parecia se referir ao carro...
Resolvi ir vê-lo. Quando cheguei em frente à casa, uma placa parecia querer me expulsar dali. Dizia: “O carro não está à venda.” E isso apesar da garagem ser fechada e da rua não se ver nenhum carro. Pensei em voltar dali mesmo, respeitando a intimidade de quem parecia prezá-la tanto. Mas naquela hora vinha saindo da casa um rapaz, e não resisti à curiosidade de ver o automóvel. Abordei-o:
- Curiosa esta placa. Geralmente servem para vender automóveis e não para escondê-los...
Ele sorriu.
- Pois é. Tivemos que fazer isso. Não tínhamos mais sossego, desde que se espalhou a notícia da existência do carro.
- É, eu sei o tesouro que você tem ali dentro. Escute... não poderia abrir uma exceção? Eu não quero comprá-lo, apenas vê-lo...
Foi assim que conheci o Chevrolet. Voltei lá outras vezes, fiquei amigo do rapaz. Gilberto era o seu nome. Conheci suas duas irmãs, sua mãe, e com o tempo fiquei um tanto íntimo da família, embora fosse uma intimidade relativa, com limites claros, que não passavam da sala e de alguns poucos assuntos.
Eu sentia que havia algum mistério envolvendo aquela família. Havia um quarto, sempre fechado, onde de vez em quando alguém entrava e saía em silêncio. Um dia, ouvi um pigarrear discreto,vindo lá de dentro.
- É meu pai - disse Gilberto, e baixou os olhos. Nada perguntei, não tinha liberdade para fazê-lo.
Minhas visitas continuaram, espaçadas. Eu respeitava o segredo da família e era querido por isso. Um dia, tempos depois, recebi um telefonema de Gilberto. Pedia que eu lhes fosse fazer uma visita. Estranhei. Ele nunca me havia telefonado, pois sempre partia de mim a iniciativa de procurá-lo. Apressei em atender o convite, estava curioso. O que teria havido que justificasse aquela atitude?
Encontrei a casa com as janelas abertas, como nunca tinha visto antes. Bati na porta e enquanto aguardava ouvi vozes e até mesmo risos. Senti que fui recebido, senão com alegria, ao menos sem a tensão a que já estava habituado. Da sala percebi que o quarto misterioso estava aberto, arejado e vazio.
A conversa girava sobre o trivial, quando, aproveitando uma pausa um pouco mais prolongada, Gilberto disse:
- Sabe, Edú, meu pai morreu.
Eu esboçava as minhas condolências, mas ele atalhou-me, como que para cortar-me a intenção.
- Estivemos conversando e resolvemos lhe dar o Chevrolet.
Ele passou da morte do pai para a doação do carro tão repentinamente e com tamanha naturalidade que não tive mais como transmitir os meus pêsames. Continuei com o assunto do carro, que estava parecendo o mais importante.
- Não faça isso, Gilberto. Esse carro vale uma pequena fortuna. Não posso aceitá-lo. Posso, isto sim, encarregar-me de vendê-lo para vocês, pois não faltarão colecionadores dispostos a pagar um bom preço por ele.
- Não, não poderíamos vendê-lo. Sabe, era do papai. Desde que...
Olhou para a mãe, como se estivesse já começando a falar demais. Não recebeu, entretanto, o aval para continuar o assunto.
- Enfim, agora ele morreu... Edú, o velho queria que o carro fosse seu. Mais de uma vez  nos disse isso.
Fiquei sabendo, então, que o velho me conhecia melhor do que eu pensava. Para surpresa minha, queria mesmo que o carro viesse para minhas mãos. Tinha certeza de que eu jamais o venderia e que continuaria cuidando dele como Gilberto o fazia. Não pude mais recusar. Mas aguçou-se mais a minha curiosidade. Havia algo que eu não estava conseguindo captar.
Dias depois trouxe o Chevrolet, e cuido dele talvez até mais do que cuidava Gilberto. Ele tinha a tarefa como obrigação, enquanto eu a faço com prazer. Pouco tempo depois retornei à casa de Gilberto, para continuar tão boa amizade. Mas eles haviam se mudado, não deixando com nenhum dos vizinhos o novo endereço, como se estivessem querendo apagar todas as lembranças de uma fase desagradável de suas vidas. Talvez nessas lembranças me incluíssem, a mim e ao Chevrolet.
Edú fez uma pausa, que Augusto respeitou.
- Pois é, Augusto. Foi assim que me tornei dono desta raridade - disse Edú, batendo com as duas mãos no volante.
- Puxa, que história...
- É... Mas agora vem a segunda parte.
Edú não sabia se deveria ou não continuar a narrativa. Até ali havia narrado fatos; mas a história agora passaria a ser muito subjetiva, aceitável ou não.
- Vamos dar uma volta?
Edú já colocava a chave na ignição, certo de que o amigo não rejeitaria o convite. Ligou o silencioso seis cilindros sem problemas, como se estivesse num zero quilômetro. Logo estavam rolando pelas ruas do bairro, em direção aos subúrbios mais distantes, para onde ele se dirigia sempre.
- Gosto de passear por estes lados. As ruas por aqui ainda são calmas.
- Mas que conforto, Edú! Ele é realmente uma beleza... Mas, e o resto da história?
- Pois é, Augusto. Como já lhe disse, eu vinha, e venho até hoje sempre dar as minhas voltas por aqui. Um dia, num dos meus passeios, tive a sensação de que não estava só. Sabe como é? Como se alguém estivesse aí sentado onde você está. Era uma sensação tão forte que chegou a me incomodar. Mais de uma vez olhei para o lado, certo que veria alguém. É claro, nunca vi ninguém.
Augusto remexeu-se no assento, incomodado.
- E então?
- Mais ainda : senti que estava sendo conduzido, de alguma forma, a um local determinado. Não me pergunte como. Entrava em uma rua, virava em outra, à esquerda, à direita...tudo como um autômato. Quando percebi o que estava acontecendo, não opus resistência. Deixei-me levar pela curiosidade, afinal nada havia a temer. Então, certa hora “mandaram-me” estacionar o carro.
Edú encostou o carro no meio-fio e desligou o motor. Virou-se para o amigo, estendendo o braço por trás do encosto, dizendo :
- Bem aqui, em frente a esta casa.
- Sério? De quem é essa casa?
- Na época eu não sabia. Carro parado, continuava a sensação de não estar só. Queria ver o que poderia acontecer e resolvi esperar, embora sem saber nem o que estava esperando.
Mais uma pausa. Augusto começou a sentir-se meio desconfortável, no lugar do “outro”.
- Vamos, o que aconteceu?
- Calma... Depois de cerca de meia hora, vi ali naquela varanda um senhor e um jovem saindo da casa, que depois vim a saber serem pai e filho. O senhor, em uma cadeira de rodas, era conduzido pelo rapaz.
Quando ele deu com os olhos no carro não conseguiu dissimular o susto, embora a paralisia lhe embotasse a expressão facial. Não se mexia, e falava com dificuldade. Ouvi quando o rapaz lhe perguntou: “O que foi, pai?”. Ele lhe respondeu alguma coisa em voz baixa, que não consegui ouvir, e ato contínuo também o rapaz olhou para o carro. O meu Chevrolet havia despertado qualquer lembrança, não havia dúvida.
Resolvi saltar, a pretexto de pedir uma informação qualquer, e aproximei-me de ambos. Perguntei pela rua Gastão Taveira, que sabia ser ali perto. O rapaz deu-me a informação correta e agradeci, esperando que ele aproveitasse a situação criada por mim para falar qualquer coisa sobre o carro. Assim ele fez.
“Bonito carro, o seu” - disse. Respondi algo que não me lembro agora. Percebi que o pai do rapaz dizia algo, quase num sussurro. “É ele, eu sei que é ele...”. O olhar, mantinha-o preso no Chevrolet. Perguntei:
- Como, senhor?
O rapaz tomou-lhe a frente:
- Foi um carro, senhor, e muito parecido com o seu, que deixou meu pai nesta cadeira de rodas para o resto da vida. Por isso, achou que estava novamente à frente do atropelador.
O pai continuou, com dificuldade:
- Uma mancha... uma manchinha no banco de trás...é o meu sangue... Ele ainda levou-me para o hospital, culpando-se todo o tempo, desesperado, desnorteado... Pobre homem, estava fora de si... Jamais soube da verdade... Como ninguém jamais soube... ninguém...
- Verdade, pai? Mas que verdade? De que o senhor está falando?
- Meu filho, eu havia preparado tudo, naquele dia... Fiz com que tudo parecesse ser um acidente, para que jogassem sobre o pobre homem toda a culpa pela minha morte, com medo de descobrirem a minha fraqueza... Mas eu queria morrer... Eu queria acabar com a vida, mas não consegui...
- Suicídio? Não é possível, pai!
O rapaz estava perplexo.
- Sim, suicídio... Mas... quase nada sofri... Apenas um filete de sangue manchou os meus lábios, gravando, no tecido, a prova da minha covardia em enfrentar a vida...
O rapaz olhou para mim. Acenei afirmativamente com a cabeça. Você pode imaginar como eu também estava me sentindo.
- Sim, posso. Talvez como eu mesmo me sinto agora - Augusto voltou a cabeça, procurando a pequena mancha na casimira - E então, o que houve depois?
- O pobre homem continuou a falar. Sabia que o remorso, que lhe doía por dentro, era o causador da sua paralisia, e não o atropelamento que provocou. Nunca tivera coragem para narrar a sua história até aquele momento. O impacto causado pela visão daquela máquina quase mortífera havia libertado a sua mente de trinta anos de prisão. Contou como havia sido socorrido pelo dono do carro, também aquele em estado de choque, repetindo monotonamente que ele havia sido o culpado; e como, deitado no ban-co traseiro a tudo ouvia, impotente, paralisado. Arrematou, dizendo que nunca mais tivera notícias do pobre motorista. Eu silenciei, para não lhe aumentar ainda mais o sofrimento. Mas sabia, agora, o segredo daquele quarto sempre fechado, daquela outra família que também sofreu, embora sem culpa, anos e mais anos, em silêncio...
Edú estava de cabeça baixa, olhando para o painel do Chevrolet. Ele próprio nunca havia contado a ninguém aquela história. Endireitou-se no assento, como para espantar as tristes recordações, e continuou:
- Sabe, Augusto, durante toda a conversa com os dois, pai e filho, permaneci com a sensação de estar acompanhado, de sermos quatro e não apenas três naquela calçada. Havíamos provocado um silêncio desagradável e não estávamos sabendo continuar o assunto, tantas eram as surpresas, de ambas as partes. Por fim os olhos do senhor, a muito custo, acharam os meus: “Procure o antigo dono, por favor... Diga-lhe a verdade, eu preciso libertá-lo da culpa, que nunca existiu... Ele deve estar sofrendo muito...”. Prometi-lhe que faria aquilo, embora sabendo ser impossível. Afastaram-se os dois, pai e filho. Entrei no carro e dei a partida, lentamente tomando o caminho de casa. Na volta, enquanto reme-morava as palavras do pobre homem, lembrei-me do outro, do antigo dono. Foi quando dei conta de que acabara aquela sensação de sentir-me acompanhada. Não havia mais ninguém ao meu lado.
Quem havia me levado até aquela rua, também se libertara...
- Edú... Você não tem só um tesouro e uma história... É muito mais que isso...
- É verdade...

sábado, 12 de novembro de 2011

A Chave

Direitos Autorais Reservados



A CHAVE

22-11-09

Sentado na cama da enfermaria, ele olhou para o saco plástico que a enfermeira lhe estendeu. Antes, o médico, na visita de rotina, havia assinado a sua alta. Alta? Se não sabia nem quem era...
- Aí está, Alírio. Sua roupa, seus pertences. Vista-se, você vai ficar livre de nós... Dessa você escapou... Mais cuidado, hein?
Alírio... Então era esse o seu nome? No hospital era a primeira vez que lhe tratavam pelo nome. Com certeza para forçá-lo a lembrar-se. Mas, qual, ele não sabia nem como havia parado ali. “Mais cuidado”, com que? Agora, era informado que estava com alta, iria para casa. Aliás, antes, ainda teria uma conversa com os médicos.
Sorriu meio sem graça para a enfermeira:
- Alírio... de que?
- Gonçalves Braga. É o que consta nos seus docu-mentos. Bonito nome, não é mesmo?
Ele olhou para o saco plástico no seu colo. Uma calça, uma camiseta, um par de sapatos, meias, algum dinheiro e sua carteira. Abriu o invólucro, pegou a carteira, conferiu a identidade. Era ele mesmo. O retrato, um tanto velho, não deixava dúvidas. Alírio Gonçalves Braga. Bonito nome...
- Muito obrigado. Quem sabe remexendo nessas coisas vá lembrar-me de algo que possa me ajudar?
- Vamos torcer... Vista-se, Alírio, e depois me procure. Vamos conversar com o Dr. Paulo.
Alírio sempre ouvira falar em amnésia, mas não imaginava ser uma sensação tão angustiante. Quem era? Se era casado, solteiro, se tinha família, onde morava, se trabalhava ou não... nada, nada vinha à sua mente. Parou em frente ao espelho, enfiou as duas mãos nos bolsos e perdeu tempo examinando-se. Realmente, não se conhecia.
Foi quando sua mão tocou em alguma coisa, no fundo do bolso. Uma chave. De onde seria? Presa a uma argola, que tinha um pequeno plástico com um número gravado: 113.
- Está pronto, Alírio? Vamos...
Dr. Paulo já o esperava.
- Como vai, Alírio? Então, nada ainda?
- Nada, doutor. Não sei nem como vim parar nesse hospital. Aliás, quero agradecer o tratamento que vocês me dispensaram. Nestes dias, todos foram muito pacientes e carinhosos comigo.
- Nestes dias... Rotina nossa, Alírio. É bom saber que você está bem. Isto é, exceto pela amnésia, é claro. Mas acredito que esse estado seja reversível. Você não ficou com nenhuma sequela que pudesse provocar esse esquecimento, por isso penso que ele seja de fundo emocional. Algo com que você talvez estivesse muito preocupado, na hora do acidente...
- Acidente?
- Você foi atropelado, Alírio. Teve contusões bastante sérias, esteve em coma, mas a sua cabeça não foi atingida. Por isso, sua amnésia não pode ser traumática.
- Atropelado... Quanto tempo estou aqui?
- Três meses... mas só há cinco dias recuperou a consciência. Não fosse pela amnésia, já poderia estar em casa.
- Três meses?... Mas em casa, onde? Se nem sei se tenho casa...
- Tem vindo aqui um rapaz lhe visitar constante-mente. Deve ser amigo seu. Seu nome é Nestor. Você não se lembra dele, com certeza, mas ele já foi avisado de sua alta e está a caminho.
- Ótimo, pelo menos deve saber quem eu sou...
- Com certeza. Alírio, você terá que vir ao hospital ao menos duas vezes por semana, para acompanhar-mos a involução dessa amnésia. Com exercícios de me-mória ela irá voltando aos poucos, tenho certeza.
A enfermeira interrompeu o diálogo:
- O rapaz chegou, Dr. Paulo.
Nestor entrou na sala, e dirigiu-se diretamente a Alírio, abraçando-o:
- Rapaz, o que houve contigo? O pessoal lá do es-critório está sentindo falta do cafezinho...
- Cafezinho?
Nestor voltou-se para o médico, e brincou:
- Alírio é o encarregado do nosso cafezinho, doutor. É o homem mais importante do escritório... Sem ele, aquilo não anda...
- Bom, já é alguma coisa, eu saber que trabalho num escritório e sirvo cafezinho...
- Diga-me uma coisa, Alírio: e a minha chave? Você perdeu-a, nessa confusão?
- Então a chave é sua... Achei-a hoje, no meu bolso, e pensei que fosse da minha casa, um apartamento 113 em algum lugar dessa cidade... Aqui está ela.
Nestor pegou-a com visível interesse.
- Ainda bem que você não a perdeu. Essa chave é muito importante.
- Mas por que estava comigo?
- Ora, foi um favor que você me prestou... Depois a gente conversa. Então, vamos para casa? Você não sabe, mas eu sei onde você mora. E não é em nenhum 113.

Da janela do escritório, Nestor e Olavo observavam o rapaz que ia atravessando a rua, levando uma maleta. Era Alírio, a caminho do aeroporto.
- Ali vai a nossa independência financeira...
- É verdade. Se tudo der certo...
- E porque não daria, Olavo? Ninguém sabe de nada, nem mesmo o Alírio sequer imagina o que leva naquela pasta.
- Eu sei. Planejamos tudo muito bem, modéstia à parte. E durante quanto tempo! Não há possibilidade de alguém dar falta do dinheiro, só nós dois lidávamos com ele... Toda a contabilidade está em ordem, pois ele nem poderia ser escriturado. Se veio dos fornecedores...
- Foi preciso muita paciência, mas conseguimos juntá-lo, ainda que em doses homeopáticas, Qualquer outra pessoa teria gasto tudo de uma vez. Agora, a re-compensa...
- Ainda assim, temos que ter muito cuidado. Vamos deixar esse dinheiro “descansando” por um bom tempo, para não levantarmos nenhuma suspeita. Nada melhor do que um guardavolumes.
Mas Alírio não seguiu direto para o aeroporto. Antes entrou numa loja, e perguntou ao vendedor:
- Por favor, o senhor teria uma maleta igual a esta? Com este mesmo tipo de fecho?
Era uma dessas fechaduras de cilindro, de senha única.
- Devo ter. Não é um modelo exclusivo. Entre, vou ver no nosso estoque.
Pouco tempo depois, saiu da loja com duas maletas idênticas, e foi para o aeroporto. Colocou a maleta dos rapazes em um escaninho, e guardou a chave: nº 311. Comprou alguns exemplares dos jornais do dia e trancou-se no sanitário. Encheu a mala que havia comprado com os jornais, e saiu, colocando-a em outro escaninho: 113. Sem antes rodar o cilindro e esquecer propositadamente a senha...
Na saída, passou pelo escaninho onde estava a mala de dinheiro, bem longe dali, e bateu três vezes na porta:
- Depois cuido de você...
Brincou com a chave, enfiou-a no bolso e sorriu.
- Ladrão que rouba ladrão...
Do aeroporto foi para casa, que o expediente do escritório já tinha terminado. No dia seguinte entregaria chave para Nestor. A sua chave, tratou de escondê-la em um lugar onde ninguém a achasse: dentro do plafo-nier do quarto.
Tomou um banho e desceu para jantar. Mas não chegou ao restaurante. Distraído, pensando na fortuna que havia conseguido tão facilmente, sem testemunhas, sem cúmplices, antegozando a sua nova vida de milionário, não viu um carro que se aproximava, e atravessou a rua em frente a ele, sendo arremessado à distância.

Como “homem do cafezinho”, era sempre o mais esperado do escritório, o que nunca podia faltar, o único que tinha acesso e era bem vindo em todos os departamentos. E foi justamente por isso que se inteirou do plano dos dois companheiros.
Quando, um dia, entrava na sala em que estavam, ouviu um trecho de conversa que o fez recuar e ficar na espreita.
- Não se preocupe, Olavo. Ninguém vai descobrir...
Aquela frase aguçou os seus sentidos, e ele, silenciosamente, acabou ficando a par de todo o plano.
- Podemos usar o Alírio. Diremos que um de nós vai viajar, mas que antes terá uma reunião com um cliente na qual não ficará bem comparecer com uma maleta. Ele deverá levá-la para o aeroporto, e guardá-la num daqueles escaninhos. Lá poderemos deixá-la por um bom tempo, até termos a certeza de que nenhuma suspeita foi levantada. É claro que não vamos viajar, mas talvez fosse bom um de nós não vir ao escritório por uns dois dias.
- Tenho mesmo que resolver umas coisas. Vou avisar à minha secretária. Mas que tipo de suspeita poderia haver? Isso é dinheiro de propina, nem entra em nenhuma contabilidade...
- Eu sei, mas poderia levantar suspeitas se começássemos a lançar mão dessa fortuna. E olhe que a tentação é grande...
- Não, não pode haver nem tentação. Será, isto sim, nossa independência financeira, graças a esses contratos milionários que a firma faz. Mais tarde, bem mais tarde, poderemos até pedir nossa demissão sem levantar suspeitas. Seremos dois honrados funcionários, em prematura aposentadoria...
- Plano perfeito! Precisamos ter muita paciência, mas valerá a pena.
De seu canto, Alírio sorriu e pensou: “A aposentadoria de vocês, ou a minha?...”

Nestor deixou o rapaz em casa.
- Pronto, Alírio, remexa suas coisas e veja se lembra de alguma coisa. E olhe, se você está se sentindo bem, acharia melhor que você fosse trabalhar logo amanhã. Não pelo cafezinho, é lógico... Mas o contato com os colegas irá talvez lhe ajudar a recuperar a memória.
- Irei, com certeza, Nestor, você tem razão.
No dia seguinte, outra vez Nestor e Olavo estavam na janela, quando viram Alírio chegando para o trabalho.
- Veja que sorte a nossa, Olavo! Alírio desmemoria-do, a chave conosco, e ele não sabe nem de onde ela é... Agora é só esperar.
- É verdade. Nestor, por que você não vai até o aeroporto, a ver se está tudo bem?
- É o que vou fazer. Vou dar as boas vindas ao Alírio e ir até lá. Estou ansioso para rever aquela maleta.
Alírio foi recebido com festa pelos colegas. Todos queriam saber o que tinha havido, como teria acontecido aquela tragédia, mas ele nada pôde esclarecer. Nem ali, no seu ambiente de trabalho, qualquer pista parecia trazer-lhe de volta a memória perdida.
Mais tarde, Nestor comentou com Olavo:
- A maleta está lá, Olavo. Mas tentei abri-la e não consegui. Levei a senha escrita num pedaço de papel, mas não funcionou. Deve ter enguiçado. Mas pelo peso, a nossa aposentadoria está intacta...
- Deixe-a lá. Depois a gente dá um jeito de abrir aquele cilindro. Como disse, vamos deixar o dinheiro “descansando” mais um pouco... Não podemos ser apressados.
- É, mas com essa história do Alírio ele já “descansou” pelo menos três meses. Mais um pouco e vamos poder usufruir da nossa aposentadoria.
Naquela noite, Em casa, Alírio começou a revirar seus guardados, em busca de alguma pista de sua identidade. Nada que lhe acrescentasse algo à memória vinha daqueles objetos. Eram fotos, cartas, documentos. Descobriu apenas que não tinha família, morava naquele pequeno apartamento sozinho, que teve um companheiro de quarto – chamado Pacheco – que havia falecido já há algum tempo, que as contas estavam pagas e, principalmente, que levava uma vida muito solitária. Parecia-lhe que ela se resumia a distribuir café para os colegas, no escritório. Onde, por sinal, era muito querido.
- Talvez seja melhor que eu não recupere nunca a memória. Vida nova, quem sabe?, deve ser melhor que as lembranças. Ainda mais se estas não forem muito boas...
Cansou-se. Ainda com a roupa que chegou da rua, deitou-se e ficou olhando para o teto. Que seria de sua vida dali em diante? Absorto em pensamentos sem rumo, observou uma pequena mancha no vidro translúcido do plafonier. “Que será aquilo?” – pensou. Nunca havia reparado naquela mancha. Subiu numa cadeira e tateou até achar o pequeno objeto. Era uma chave.
Quando a fechou nas mãos, imediatamente veio-lhe um pensamento na mente: “Dinheiro!”
Dinheiro? Mas por que dinheiro? Que estranha e súbita lembrança era aquela? Chave, dinheiro... dinheiro de onde? Havia um pequeno plástico com um número, preso à argola da chave: 311. Não se preocupou muito, acabaria descobrindo.

Nestor entrou esbaforido no escritório. Dirigiu-se à sala de Olavo, entrou e bateu a porta com estrépito:
- Que quer dizer isso, Olavo? Onde está o dinheiro?
- Que dinheiro, Nestor? O que é que há?
- Ora, que dinheiro! A mala está cheia de jornais velhos, Olavo. O que você fez com o dinheiro? Quer me passar a perna?
- Jornais velhos? Eu nem voltei ao aeroporto! Você é que foi lá e disse que o cilindro tinha enguiçado, não se lembra? Agora vem com essa história de jornais velhos! Eu é que pergunto: onde está o dinheiro? Não foi você que ficou com a chave? Como é que você abriu a mala?
- Não interessa, isso é o de menos! Eu lhe dei a chave, e você também foi ver a mala, já não se lembra mais? Como é que você pretendia me passar pra trás? Qual era o seu plano?
– Estou querendo saber qual é o seu plano, não o meu! Você vem aqui, faz esse teatro todo, sabendo que nenhum de nós dois pode acusar o outro, mas o dinheiro já deve estar longe, não é? Ah, mas eu vou dar um jeito! Isso não vai ficar assim...
– Eu é quem digo! Não vai ficar assim, mesmo!
Ato contínuo, avançou para Olavo, que se defendeu como pode. Eram dois rapazes fortes, e a luta não seria desigual. Nestor estava possesso, Olavo mais ainda. Rolaram pela sala, derrubando tudo o que estava ao alcance, nenhum se conformando com a “traição” do outro. O ruído chamou a atenção dos colegas de trabalho, que aos poucos, aglomeraram-se na porta da sala fechada. Lá dentro, no ardor da luta, Nestor alcançou uma pesada estatueta e golpeou a cabeça de Olavo, que, ao cair, mais uma vez bateu com a cabeça na ponta da mesa. Nesse momento, a porta foi arrombada e os outros, com Alírio à frente, depararam com Nestor de pé, a estatueta na mão e Olavo caído, sangrando abundantemente.
- Nestor! O que você fez?!
Nestor estava lívido. Não conseguia se mover, olhando fixamente para o colega estendido aos seus pés. Deixou cair pesadamente a estatueta e ajoelhou-se ao lado de Olavo.
- O que foi que eu fiz... O que foi que eu fiz...
Nestor foi levado pela polícia em estado de choque. Olavo estava morto. Ninguém podia sequer imaginar o motivo da desavença que havia culminado com um fim tão trágico.
- Eram tão amigos... Estavam sempre juntos...
- Como irmãos...
Alírio não entendia. Por que aquela briga repentina, sem motivo aparente?
- Ontem mesmo estavam juntos, rindo e brincando... Pareciam estar planejando algo que iriam fazer...
Voltou para casa desolado. Um crime, entre colegas, num escritório tão pacato, onde todos se davam tão bem! Na véspera havia servido o seu cafezinho aos dois, na sala de Nestor. Encontrou-os rindo, como sempre. Até mexeram com ele:
- Puxa, Alírio, seu cafezinho fez falta! O outro que puseram no seu lugar não sabia fazer tão bem como você...
- Isso você não esqueceu, não é? Como é, e a memória? Nada ainda?
- Nada... Mas, sabe? Ontem mesmo aconteceu uma coisa curiosa comigo. Estava deitado na cama, olhando para o teto, quando vi, em cima do lustre...
Nesse momento, entrou um colega:
- Como é, Alírio, e o nosso café? Estamos esperando!
- Já vou, já vou... Olhe, depois eu conto. O pessoal esta indócil...

Sentado na sua poltrona, Alírio examinava a chave em sua mão, imaginando mil coisas sobre como ela teria ido parar em cima do lustre do quarto. Ao mesmo tempo, não lhe saía da cabeça aquele crime monstruoso que separou para sempre os dois amigos.
Que teria havido? Jamais alguém saberia. Nestor, preso, recusava-se a falar uma palavra sobre o que havia acontecido. Parecia preferir ser condenado a se defender. Mas só ele sabia que ainda havia uma mínima chance para recuperar a fortuna amealhada com a cumplicidade de Olavo. “Um dia vou sair daqui...” – pensava. Mas não tinha a menor idéia de como, então, faria o resgate do dinheiro.
“311”... Que número seria aquele, preso à chave? Com certeza teria sido o seu companheiro de quarto que a escondera no plafonier. E por que, ao senti-la nas mãos, veio a idéia fixa de “dinheiro”, à sua mente? Aquela chave seria de algum escaninho, em algum guarda volumes da cidade? Rodoviárias, estação ferroviária, aeroportos... Quem sabe não começaria a procurar? Nada teria a perder.
Primeiro foi à rodoviária principal da cidade. Não havia escaninhos, era um funcionário que recolhia os vo-lumes em troca de uma senha.
- Mas essa chave está me parecendo do aeroporto – disse o rapaz a Alírio – é coisa fina, muito bem feita. Primeiro mundo...
No aeroporto, Alírio constatou que ele tinha razão. Procurou o armário 311 – a chave abriu-o com facilidade. De lá de dentro retirou uma pequena maleta, e não se conteve. Sussurrou, para si mesmo:
- É dinheiro. Não sei por que, mas alguma coisa me diz que é dinheiro...
Em casa, não teve dificuldades em abrir a mala. Nervoso, arrebentou o cilindro do segredo com sofreguidão, e constatou que estava certo. Ali havia uma pequena fortuna.
- Meu Deus! Esse dinheiro só pode ser do falecido Pacheco! Mas por que ele nunca me disse nada? Morou tanto tempo comigo, foi-se embora pro outro lado e deixou essa fortuna para... ninguém? E agora?
No dia seguinte, contou o achado para os colegas. Cada um deu um palpite: “Casa comigo...”, dizia uma delas. “Divide com a gente...” – exclamava outro. “Está rico, vai esquecer os colegas...” – lamentava um terceiro.
- O dinheiro é seu, Alírio. Faça o que você bem entender com ele. – Foi a sugestão mais sensata.
- Calma, gente... Esse dinheiro é meu, nada... E se eu bem conhecia o Pacheco, acho que sei o que ele gostaria que eu fizesse com ele. Amanhã mesmo vai ser dividido com quem não tem nada...
E, batendo no ombro do que estava mais próximo:
- Podem deixar que o cafezinho do meio do expediente está garantido... Vocês não vão se ver livres de mim assim tão facilmente...