MARIA
ARREBITADA
Maurício Meyer
Ferreira - Junho de 2013
-Aninha, cadê
Naldinho?
- Tá lá, naquela lata velha... na
maria-arrebitada. Ele não sai de lá...
Antonio achou graça:
- Que maria arrebitada, Aninha?... O
pessoal chama é de maria-empinada... Você
troca tudo!
- Dá no mesmo. O certo mesmo não é
maria-cremalheira? Ninguém chama assim... Aquilo é brinquedo perigoso, podem
se cortar, tá tudo enferrujado...
- Qual nada, deixa eles brincarem. Esse
menino é apaixonado pelo trem. Imagine se ele tivesse conhecido a maria-cremalheira
subindo e descendo a serra todos os dias, empurrando o vagão cheio de gente...
Se ele tivesse viajado ao menos uma vez, comigo, na cabine, ouvindo o
‘tec-tec-tec’ da engrenagem... Como iria ficar feliz!
- Ele diz que quer ser igual a você,
“aguiador” de trem. E que quando crescer vai subir a serra dirigindo a maria-arrebitada.
- Qual... Ele que arranje outra
profissão. Agora é tudo pelo asfalto. Aquela nunca mais vai voltar para os
trilhos. O mato já está tomando conta de tudo... Quase não se vê mais a pobre
coitada!
- É mesmo... Por que será que tem
esse apelido de “maria”? Coitadas das Marias...
- Vem de maria-fumaça... E ela é
maria-empinada...
- Antonio, vai até lá chamar ele. Tá na hora do almoço.
- Bem que eu tenho saudades... mas,
fazer o que?
-Oi, meu neto,
larga a maria um pouco... Sua avó
está chamando pra almoçar.
Para o velho ferroviário, ver aquela
linha desativada, a sua antiga companheira de trabalho abandonada, suja e
enferrujada, sendo aos poucos engolida pelo mato, causava muita tristeza. Por
isso deixava que Arnaldo, na sua fértil imaginação infantil, ‘subisse a serra’
todos os dias, apitando nas curvas e dando ordens para o foguista alimentar a
fornalha.
Arranjou até um boné de maquinista
para ele.
- Vamos, Naldinho. Sua avó está
esperando. Vem você também, Juninho, está na hora de comer.
O menino desceu da cabine e deu a
mão ao avô.
- E então? Quantas vezes você subiu
e desceu a serra hoje? E você, foguista, foi com ele?
- Fui... Conta pra ele, Naldinho...
- O que foi, meu neto? Qual foi a
traquinada?
Antonio imaginou ter acontecido
algo. Aquela máquina, enfim, era mesmo um brinquedo perigoso.
- Nada não, vô... É que a gente tava aqui ocupado, aí apareceu um cara, ficou encostado na lenha de braços cruzados olhando pra gente.
Ria o tempo todo, não sei de que.
- Um cara? Apareceu, como?
- Sei lá... Eu tava subindo a serra, Juninho jogando lenha na fornalha, e quando
olhei pra trás, tava lá ele,
encostado, rindo. Falei com ele, mas ele nem me respondeu. Continuou rindo.
- E depois?
- Uai, depois que eu olhei de novo,
ele tinha sumido.
- Sumido? Vai ver que era um
fantasma...
Antonio brincou com o neto, mas não
gostou da história. Quem seria aquele ‘cara’, olhando as crianças em suas
brincadeiras, sem falar nada e sumindo de repente?
- Você não sabe quem é ele, Arnaldo?
Você roda isso tudo por aqui, conhece todo mundo nessa cidade...
- Não, vô, nunca vi ele aqui. E nem Juninho num viu, tava de costas...
- Eu não vi ninguém.
- Meu neto, acho bom vocês pararem
um pouco de subir a serra na maria-empinada, até eu ver quem é esse rapaz. A
gente não sabe o que é que ele quer.
- Poxa, vô, vai ver que ele ficou lá
no Alto e nem desceu com a gente. Nem vai aparecer mais...
A imaginação de Arnaldo não tinha
limites.
- É, mas primeiro deixa eu ver quem
é ele.
À noite, depois da janta, Naldinho já na cama, Antonio
comentou com Aninha o acontecido. Podia não ser nada demais, mas nunca se sabe.
A cidadezinha era muito pacata, ainda mais porque, depois que a cremalheira
fora desativada, Guapimirim passou a ser o fim da linha. Só quem morava lá é
que ia no trem, por sinal agora elétrico, até o final,
-Eu não disse, Aninha, que a gente
tem que ter cuidado? Quem será esse rapaz que Naldinho viu lá na locomotiva?
Disse que ele nem falou nada e sumiu, de repente. Só ficou rindo. Não é
estranho?
- É, a gente tem que tomar cuidado.É
tão raro aparecer gente nova por aqui que a gente tem que ver quem é.
- Vou fazer isso. Enquanto não
descubro, não o deixe voltar lá. O mato está fechando em volta da maria-empinada
e aquilo ali está ficando muito ermo.
No dia seguinte Antonio rodou a
cidade toda, o que, aliás, não demorou muito. Procurou o paradeiro do rapaz
pela barbearia, pela farmácia, pela delegacia. Ninguém o tinha visto.
Voltou a puxar o assunto com o neto:
- Meu neto... como era esse rapaz?
Era muito ou pou-co velho?
- Velho, vô. Assim, igual a você...
O ‘velho’ achou graça. Para uma
criança de sete anos, qualquer um com mais de cinquenta é velho...
- Eu não vou poder mais ir lá, vô?
- Vai, sim. Ele deve ter ficado lá
em cima, na serra. Já que não desceu, na viagem de volta... Mas se aparecer de
novo, você me fala!
- Pode deixar que eu falo.
Mas Arnaldo estava disposto a não
falar nada, se o outro voltasse. E se o vô o proibisse de ser maquinista?
- Juninho, se o cara voltar, bico
calado! Senão a gente não sobe mais a serra!
A revista era
um pouco antiga. Quando Arnaldo viu a reportagem sobre a reabertura do Museu do
Trem, dois meses atrás, logo vieram à tona lembranças de sua infância, em
Guapimirim, nos anos oitenta. Do seu avô “aguiador de trem”, como ele o
chamava, das histórias que ele contava do “tec-tec-tec” da cremalheira subindo
a serra - que ele nem conheceu - e a maria-empinada...
Maria-empinada! Será que ela estava
no museu? Será que haviam conseguido restaurar a ‘lata velha’ das suas
brincadeiras de criança?
Falou entre dentes, para si mesmo:
- Abril de 2013! Parada desde abril
de 1957, relegada ao abandono todo esse tempo... 56 anos! um crime... Se na minha infância já não era sombra do que
foi, imagine agora... Bem, antes tarde do que nunca...
Fechou o jornal sobre os joelhos,
recostou a cabeça da poltrona e entregou-se às reminiscências.
Onde andaria o ‘foguista’ Juninho? Levava
a sério, tanto quanto ele, as ‘subidas da serra’. Ia colocando os gravetos na
fornalha enferrujada, enquanto ele próprio, nos comandos, movia a alavanca do
apito e puxava a já inexistente cordinha que tocava o sino. Lembrou-se de uma
vez que, tentando dar mais realismo à ‘viagem’, ateou fogo aos gravetos, e foi
um custo apagá-lo... Isso, o vô nunca soube.
E das lembranças ao transporte até a
velha máquina, foi um pulo...
Viu-se na cabine, encostado no tender,
apreciando os dois garotos brincarem na locomotiva. Eles levavam jeito,
imitando em tudo as histórias que o vovô contava. Em certa hora, chegou a
pensar que tinham percebido a sua – hmm... – presença...
- Bobagem... A imaginação não é
assim tão forte...
De um salto, levantou-se e consultou
o relógio.
- É cedo ainda. Vou já conferir se conseguiram
embelezar a maria-empinada...
O museu era
bastante completo e diversificado. Havia trens de todos os tipos, desde as
primeiras locomotivas a vapor, às ‘diesel’ mais novas; dos antigos vagões imperiais,
restaurados com todo o luxo característico, às litorinas que tanto sucesso fizeram
nos anos setenta. Arnaldo estava maravilhado, mas seus olhos percorriam as antigas
oficinas do Engenho de Dentro em busca de uma só peça: a maria-arrebitada, como dizia sua avó....
Enfim, lá estava ela, em posição de
destaque. A tração por cremalheira dava-lhe um status diferente, em meio às suas irmãs. Era delicada, pequena e
elegante, com a traseira arrebitada como as damas do início do século vinte.
E nova, novinha, brilhante e
reluzente, como Arnaldo nunca poderia imaginar que iria vê-la um dia...
Um cordão de isolamento a
circundava.
Mas, como? Ele não poderia subir na
cabine? Deu a volta em torno, pensou até em burlar a vigilância. Não havia jeito.
Na lateral, uma placa mostrava um pequeno histórico sobre a locomotiva, além da
foto de uma medalha, verso e reverso, esclarecendo terem sido cunhados poucos
exemplares, em 1908, para comemoração da inauguração da ferrovia.
À visão daquela medalha, com o ‘Dedo
de Deus’ cunhado em uma das faces, a data: 1908... a ponte sobre o rio Soberbo
na outra face... Arnaldo sentiu insólita comoção. Veio-lhe à mente a ideia de que
tinha tido uma medalha daquelas nas mãos, quando criança, ignorando que fim
teria dado a ela. Por que essa sensação?
Quando novamente levantou os olhos
para a máquina, viu, na pequena janela da cabine, um homem usando um antigo
boné dos maquinistas, idêntico ao que um dia ganhara do seu avô. Ele levantou-se
e chegou até a borda da cabine. Afora o boné, de uso em serviço, estava
elegantemente vestido, para os padrões do início do século vinte. Fixou os
olhos em Arnaldo, apontou para o piso da locomotiva e disse: “Há uma dessas
medalhas aqui. É a que me foi ofertada, e que perdi durante as festividades de
inauguração da ferrovia...”
Arnaldo olhou em torno. As pessoas
iam e vinham, admirando as peças expostas, sem se deterem no que seria a
‘apresentação’ do artista.
Mas... aquela figura não era de
nenhum ator contratado pelo museu. Percebeu que somente ele o via. O homem continuou
dirigindo-se a ele: “Leve-a para seu avô, ele sempre quis ter uma dessas. Diga-lhe
que é uma lembrança de José Augusto Vieira.”
Arnaldo estava extático. Quem era,
ou quem foi José Augusto Vieira? E a medalha? “Há uma dessas aqui”... Aqui,
onde? Como iria apanhá-la, se nem podia chegar perto da maria-empinada? E, se
conseguisse? como iria entregá-la ao seu vô Antonio?... que Deus o tenha...
O etéreo personagem pareceu-lhe ouvir
as perguntas: “Vou lhe mostrar onde está a medalha... Pegue-a, e leve-a para
seu avô... leve-a, ele vai gostar...” Em seguida, lentamente foi-se fazendo
invisível aos olhos arregalados do rapaz.
Então, ele viu uma suave claridade
azulada, que pulsava, intermitente, por baixo da placa metálica do piso. A medalha
estaria encaixada entre as duas placas, e teria passado despercebida até mesmo
pelos perspicazes restauradores da composição.
Seria impossível resgatá-la.
Frustrado, tornou a ler a placa indicativa da peça. Estava lá: “José Augusto
Vieira” construtor da ferrovia Rio-Teresópolis”.
Voltou para casa decepcionado, pensando em
algum outro um meio de satisfazer o pedido do ilustre fantasma.
-Juninho, olhe
aquele cara de novo...
-Arnaldo, pede pro Juninho buscar
mais lenha. Tenho que falar com você.
- Pra que? Quem é você? Meu vô quer
saber...
- Que cara, Naldinho? Não estou
vendo ninguém.
- Vai buscar mais lenha, foguista. A
fornalha tá vazia.
O ‘foguista’ saiu.
- Pronto, pode falar. Por que tem
que ser eu sozinho?
- Porque ninguém mais me vê, só
você. Você sabia que tem uma moeda escondida na maria-empinada?
- Uma moeda escondida? Onde?
- Não é bem uma moeda, é uma
medalha.
- Pra que ela serve? Se não é moeda,
não serve pra comprar nada.
- Vou lhe mostrar onde ela está. Leva ela para o seu avô. Diga que foi
José Augusto Vieira que mandou pra ele.
- Quem é esse cara?
-José Augusto
Vieira? Você tem certeza?
- Foi o que o moço disse, vô.
Antonio não sabia o que pensar. Quem
teria dado a medalha a Arnaldo? O engenheiro já não pertencia ao mundo dos
vivos há muito tempo. Ele já tinha ouvido falar sobre aquela medalha, mas nunca
a havia visto. Sempre tivera vontade de possuir uma, mas... quem era ele, um
simples ferroviário de Guapimirim... Tinham sido cunhadas tão poucas, só para
as autoridades... E isso em 1908!
- E quedê esse moço, que não aparece nunca?
- Sumiu igual à primeira vez.
- Sumiu, Naldinho? Como, sumiu? Ele
não estava na sua frente?
- Poie é, vô, mas foi sumindo,
sumindo, sumiu...
- O que? Virou fumaça?
- É...
- E você, não ficou com medo?
- Não, vô... Ele era igual a mim...
Não era fantasma...
Antonio silenciou. Ficou olhando
para Arnaldo sem saber o que dizer. O garoto sorriu:
- Posso ir, vô?
- Pode, meu filho... Vai... vai
subir a serra...
-Vovó, o vovô
tinha alguma medalhinha de estimação? Assim... que ele gostasse muito?
- Medalhinha?... Sim, tinha... Era
da inauguração da estrada de ferro. Curioso, você se lembrar dela agora... Nem
eu me lembrava mais... Aliás, essa medalhinha devia ter algum segredo, porque quando
seu avô chegou com ela em casa, mostrou-me e disse: “Olha o que eu ganhei...”
Perguntei quem tinha dado aquele presente tão valioso – era uma medalha de
ouro... – e ele disse: “Pra falar a verdade, não sei... É melhor até a gente
não mexer com essas coisas, Aninha...” Eu me lembro que fiquei nervosa, com
medo não sei de que. Uma medalha de ouro... ‘Essas coisas’, o que? Ele nunca me
disse...
Então, a medalha existia... e foi
entregue ao vô, como pediu o Dr. José Augusto Vieira...
- O que ele fez com a medalha, vovó?
- Ela tinha um furinho em cima...
Ele mandou fazer um cordãozinho de ouro e usou até o dia da morte. Não tirava
nem pro banho. E eu nunca soube de onde ela veio...
Aninha fez uma pausa. Olhou para o
neto, que sorria como quem não estava com coragem para pedir alguma coisa.
Adivinhou o que era:
Em seguida levantou-se e buscou uma pequena
caixa de madeira, com a locomotiva incrustada na tampa, num fino trabalho de
machetaria. Arnaldo pensou não aguentar a emoção. A medalha estava junto com
outros pertences de Antonio: o relógio da ferrovia, o crachá de maquinista, a
chave da maria-empinada...
Aninha abriu a caixinha, e lá estava
ela, envolta numa claridade azulada que apenas ele via, pulsando,
intermitente...
- Leve-a, Naldinho... a sua
maria-arrebitada...