quarta-feira, 29 de setembro de 2010

O BARCO FANTASMA

Direitos autorais garantidos




Eram todos velhos lobos do mar. Desde jovens, pescadores de águas profundas, mares bravios e borrascas intermináveis. Seis homens de fibra, pele salgada pelos ventos e curtida pelo sol inclemente, profundos conhecedores dos caprichos da natureza, haviam aprendido com a dura lida diária a desconhecer o medo.
Tinham consciência de que uma daquelas saídas mar afora poderia não ter retorno, mas até mesmo esta dúvida, esta incerteza do cumprimento da missão já fazia parte de sua rotina. Eles já eram parte integrante do “Anita”, quase que moravam no velho pesqueiro há mais de metade de suas vidas. Tratavam-no quase como que um membro da tripulação, tal o carinho e o desvelo com que faziam a sua manutenção. E o “Anita” retribuía, trazendo de volta, em seus porões abarrotados de pescado, o sustento de toda a comunidade.
Desta vez estavam há doze dias no mar, longe das famílias, que já começavam todas as tardes a perscrutar o horizonte, na esperança de verem as benditas velas que lhes davam a certeza de mais uma vez estarem voltando aos lares sãos e salvos. E já não era sem tempo. A pesca havia terminado e o “Anita” não demoraria nem mais dois dias para aportar na colônia. Pelo rádio, as posições do barco eram transmitidas frequentemente, mas somente quando o diminuto ponto negro começava a avolumar-se no horizonte é que o pequeno clã, na praia, começava mais uma vez a respirar aliviado.
Porém, pelo rádio também veio a notícia, naquela tarde, que uma forte tempestade estava a caminho. E ela agora vinha chegando, lentamente. Primeiro os ventos, suaves a princípio, encrespando as ondas e cobrindo-as de espuma branca; depois, o céu rapidamente acinzentando-se e os primeiros grossos pingos de chuva como que avisavam à tripulação que a noite seria de intensa luta. Mas eles já estavam acostumados àquele tipo de emergência.
- Que cada um fique no seu posto! - gritou o mestre agarrado ao timão, que começava a teimar em desobedecer-lho - Recolham as velas e não desliguem o rádio! Temos que nos manter atentos a qualquer informação da patrulha!
A estática captada pelo pequeno transmissor atestava a violência da tempestade que se aproximava. De quase nada adiantava deixá-lo ligado, pois só se ouviam o ruído das descargas elétricas entremeado de algumas frases incompreensíveis.
Por fim a tempestade mostrou-se em toda a sua sinistra pujança. Desta vez os valorosos marinheiros estavam assustados. Nunca haviam visto tamanha demonstração de força em tantos anos de convívio com o mar. Parecia-lhes que naquela noite - pois já era então noite cerrada - seriam submetidos à máxima provação, ao teste definitivo de coragem e competência frente à ira dos elementos.
Em pouco tempo - meia hora, se tanto - viram a borrasca transformar o velho pesqueiro em uma carcaça semidestruída. O valente “Anita” perdera seus mastros, partidos como se partem palitos de fósforos entre os dedos, e suas velas eram trapos disformes dependurados nos restos de madeira. O possante “diesel” de noventa cavalos jazia inerte, subjugado pelos vagalhões que lavavam o convés da proa à popa. Somente o rádio - único instrumento a bordo que ainda se mantinha funcionando - emitia sons inaudíveis em meio às descargas que acompanhavam cada trovão que arrebentava nos céus. O tanque de óleo soltara-se das amarras e rolava de um para outro lado no convés, como um cão danado que perseguisse os seis apavorados marinheiros que, encharcados pelo combustível, seguravam-se nos restos da embarcação como lhes era possível.
Ondas descomunais elevavam o que restava do “Anita” até a sua crista, em meio à escuridão total, para depois lançá-lo em vertiginosa descida que parecia querer levá-los ao fundo do oceano. Vez por outra mais um relâmpago rasgava os céus, iluminando por alguns segundos aquela cena dantesca. Quando voltava a escuridão, o estrondo tardio da descarga elétrica quase os ensurdecia. E o barco, sustentado nas águas pelo pesado lastro da pescaria, começava a subir, subir outra vez até o topo do mundo, iniciando mais um apavorante ciclo da incrível montanha-russa.
Quando mais uma vez no alto parecia dominar por instantes as águas revoltas, o “Anita” foi atingido por outra onda enfurecida que o atacou de estibordo, levantando-lhe o casco pela lateral. E os seis homens, já exaustos e traídos pela surpresa, viram-se lançados às águas.
Era o caos. Aqueles homens, que haviam presenciado a agonia do velho barco, companheiro de tantas lutas, sentiam que também eles estavam chegando ao fim. A tragédia atingia a todos de uma só vez, irmanando-os na morte que se avizinhava, pois a cada clarão nos céus viam o “Anita” afastando-se mais e mais do pequeno grupo.
Foi quando um deles, já semidesfalecido, sentiu que algo se enroscava em seu braço. Tateou, angustiado.  Era uma corda, uma grossa corda que se agitava como uma serpente. Prontamente segurou-a, puxando-a para si. Sentiu-a retesar-se, como se estivesse presa no convés do barco. Passou-a pela cintura, enlaçando-se por um forte nó e gritou, gritou desesperadamente tentando localizar os outros companheiros.
Um a um, com dificuldade, foram todos agarrando-se àquele pedaço de cânhamo salvador. Com o resto das forças de que dispunham puxaram-se para a embarcação, subindo novamente ao convés e segurando-se como era possível aos restos do madeirame. Se tivessem que desaparecer, o fiel “Anita” parecia querer que soçobrassem juntos. Gritavam uns para os outros, a saber, na escuridão, se todos estavam salvos. E mantiveram-se assim, como que cravados no convés, sem entender qual o anjo celeste que lhes havia lançado o providencial socorro.

Depois, muito tempo depois, a tempestade amainou. Cansaram-se os ventos, esgotara-se a chuva, silenciaram-se os trovões. Aos poucos as imensas vagas reduziam a sua fúria e voltavam ao seu eterno e suave vai-vem. Os homens, exânimes, deixaram-se enfim dominar por profundo sono.
Já agora a noite começava a ceder aos primeiros albores da madrugada. Um denso nevoeiro substituíra a tempestade, no meio do qual os restos do “Anita” vagavam sem rumo.
Era total a calmaria.
O silêncio, mortal.
Apenas o ruído da água chocando-se com o casco se fazia ouvir. Os homens, atordoados ainda, aos poucos se levantavam, procurando nos companheiros a confirmação de que estavam realmente salvos. Abraçavam-se em silêncio, sem forças nem mesmo para externar a sua alegria.
Estavam assim, refazendo-se ainda da trágica noite, quando um deles percebeu que um facho de luz tentava rasgar a espessa neblina.
- Vejam, deve ser um barco! - o homem gritou, apontando na direção do tênue foco luminoso.
- É um barco, tem que ser um barco! Gritem, gritem, ele assim nos localizará!
O receio de que não fossem vistos ou ouvidos fez com que lhes voltassem as forças. Todos, em uníssono, gritavam freneticamente, tentando chamar a atenção do possível salvador.
De repente, começaram a se definir no meio da névoa os contornos de uma embarcação. Lentamente a sua proa afastava a neblina e mostrava-se aos excitados marinheiros, que faziam sinais e dançavam de alegria, já esquecidos da extenuante noite de lutas.
- É a Costeira, vejam, o “PN-16”! - disse um dos homens, apontando para a alva proa da embarcação - Olá, companheiros! Sejam bem vindos!
Mas o “PN-16” não se aproximou.
Manteve-se afastado, na sua marcha silenciosa, lenta, enigmática, com três dos seus tripulantes de pé, no convés, imóveis em suas fardas brancas. Começou a rodear o pesqueiro, guardando considerável distância, para surpresa de sua tripulação, entre atônita e desconfiada.
- Mas o que é que eles querem? Será que não nos estão vendo? Por que não vêm nos salvar? Por que estão dando voltas, parados feito estátuas no convés?  
O velho marinheiro começava a descontrolar-se:
- Ei, vocês! Lancem a corda! O que estão esperando?
O barco salvador continuava descrevendo seu estranho círculo, distante uma ou duas dezenas de metros do “Anita”. Desaparecia no denso nevoeiro para reaparecer adiante, com sua branca proa ostentando sua identificação em grandes letras azuis: “PN-16”.
- É um barco fantasma! - gritou o mais velho dos pescadores - Eu já ouvi falar sobre ele, sobre uma patrulha que desapareceu numa noite de borrasca e nunca mais foi vista! São eles, que aparecem na bonança, depois daquele inferno de ontem! São todos fantasmas, que se arrastam nesse barco pensando que ainda podem ajudar alguém!
Os supersticiosos marinheiros arregalaram os olhos. Um barco fantasma! Que fariam agora? Nada, por certo, além de aguardar o desfecho da inusitada visita. Talvez fossem embora, da mesma maneira como apareceram: no meio de densa neblina...
Mas o barco não desapareceu. Aos poucos reduziu sua marcha até parar por completo. Então, mais uma vez foi encoberto pela neblina. Quando voltou a se mostrar, não havia mais ninguém no convés.
- Eu não disse? Onde está a tripulação? Eu não disse que era um barco fantasma?
Os seis homens pareciam ter os pés cravados no convés. Ninguém arriscava dizer uma palavra, à espera do que faria o insólito visitante.
Então, de repente o rádio do “Anita”, servo fiel e infalível, começou a receber nitidamente uma mensagem:
“Atenção, base. Atenção, base. Aqui fala o “PN-16”. Localizamos o “Anita”. Latitude “X”, longitude “Y”. Foi totalmente destroçado pela tempestade. Apenas o casco se mantém flutuando. Fizemos uma volta de reconhecimento e não há sinais de vida a bordo. Estamos nos preparando para a abordagem e posterior reboque. Câmbio. Desligo.”


segunda-feira, 27 de setembro de 2010

O MANGA

Direitos autorais garantidos



      Eu estava sentado na pequena amurada do pátio do recreio. Era hora das crianças descansarem das aulas, cansando-se nas correrias e brincadeiras, e elas não faziam por menos. Eu era ali um estranho no ninho, alguém que não pertencia àquele cenário, mas ninguém se importava com a minha presença. Pareciam nem me ver, na verdade, quase tropeçando em mim.
      Era inusitada a cena. Eu mesmo não sabia o que estava fazendo naquele pátio, cercado de crianças sadiamente barulhentas. Tinha acabado de levar meu filho ao colégio - outra escola, não aquela - e aguardava, na secretaria, que fosse chamado para resolver um problema corriqueiro. Por que teria saido de onde estava e me sentara naquele pátio? Não me lembrava nem de ter resolvido o tal problema, tampouco como chegara até ali.
O pátio não era onde eu deixava o Júnior todos os dias. Era outro recreio, eram outras crianças, era o pátio do meu colégio das primeiras letras - o Colégio Ibituruna.
Não me assustei. Não raro eu pregava a mim mesmo estas peças. Era comum concentrar-me tão fortemente em gratas lembranças, que algumas vezes transportava-me aos locais queridos e tinha a sensação de fazer parte deles. Essa sensação durava pouco, e sem maiores conseqüências eu retornava à realidade. Com certeza, agora mesmo, - pensei - quando me chamassem na secretaria, eu deixaria o Colégio Ibituruna para trás.
Resolvi, então, curtir a minha “visita”, observando as crianças que continuavam nas suas correrias sem fim. Como tudo era tão real ! Cheguei mesmo a distinguir entre aqueles rostinhos alguns colegas meus do curso primário...
      Estava assim, absorto, quando aproximou-se de mim um jovem, “regulando” em idade comigo, como se dizia antigamente, aparentando entretanto ser um pouco mais velho, por causa da barba cerrada e das sóbrias roupas que trajava.
      - Bom dia, meu jovem. - disse, com um sorriso simpático - deseja alguma coisa?
      Levantei-me, de um salto. Agora sim, eu estava assustado.
      Era o Manga.
      Era assim que nós, os alunos, o chamávamos: o Manga. Não era um apelido, como pode parecer, mas o seu sobrenome: professor Milton Rivera Manga. Um jovem dinâmico e empreendedor, apesar de sua aparência calma e tranquila. Pouco mais de quarenta anos, cabelos castanhos, fartos, displicentemente penteados, barba cerrada também castanha. Uma figura simpática à primeira vista.
      Dava uma atenção extrema aos alunos, parecia que tudo o que nós, crianças, falávamos era de suma importância para ele. Era um homem adiante do seu tempo, por isso querido por nós, os alunos, e respeitado pelos professores. Quando comprou o colégio, de direção arcaica e paternalista, em pouco tempo transformou-o em um estabelecimento de ensino moderno e vibrante – respeitando-se as limitações da épo-ca. Isso em mil novecentos e antigamente: quarenta e quatro, eu acho.
      Parecia adivinhar o que nós gostávamos, por isso adorávamos o colégio. Suas excursões pelo Alto da Boa Vista – quando a gente descia por dentro da mata até a Gávea, e que duravam o dia inteiro – e as idas nas manhãs de domingo aos concertos da Orquestra Sinfônica, no Cine Rex, que ele proporcionava pacientemente aos alunos, eram aguardadas com ansiedade. Promovia votações para que os alunos participassem da escolha destes programas. E isso nos domingos – quando todos os outros colégios estavam fechados...
Corria à boca pequena que o Manga era comunista, o que, na época, era mais que um xingamento. Acho que foi ali, convivendo com ele, que comecei a não entender porque os americanos forçavam-nos a ter tanto medo dos bolchevistas. Eu nem sabia o que eram comunistas, mas se o Manga era um deles, deviam ser gente boa...
      Bons anos da minha infância e adolescência. Quando deixei o Manga – isto é, o colégio – porque mudamo-nos para o outro extremo da cidade, foi difícil a adaptação ao novo educandário. A forte lembrança e as saudades permaneceram vivas por muito tempo.
      Agora, ali estava o Manga na minha frente. E falando comigo.
      - Bom dia, professor Manga.
      - O senhor me conhece, então... Não tenho o mesmo prazer.
      O mesmo gentleman de sempre.
      - André, senhor. André Moreira. Eu estudei aqui, no seu colégio.
      - Aqui, no colégio Ibituruna? Deve ter sido então na época do Coronel Garcez.
      - Não, senhor. Aliás, eu realmente fui do tempo do Coronel, mas quando o senhor comprou o colégio, continuei seu aluno. Eu estava então no último ano do primário.
      - Creio haver algum engano, meu caro. Eu comprei o colégio há apenas um ano. E parece-me que o senhor já terminou o primário já há um bom par de anos...
      O Manga brincava, enquanto eu engolia em seco. A situação estava ficando real demais.
      - Não há engano, senhor. Eu fui seu aluno. Lembro-me muito bem que o senhor gostava de conversar comigo, embora eu fosse apenas uma criança. Quantas vezes, nas ho-ras de recreio, o senhor sentava-se ao meu lado e conversávamos como se tivéssemos a mesma idade.
      - Mas eu quase nada falo com meus alunos além do necessário...
      - Como não, professor? Lembro-me muito bem... Fazia-me perguntas e mais perguntas, sobre o colégio, os professores, sobre o que eu achava de ruim, ou de bom... Parecia interessado em conhecer a minha opinião sobre o colégio. Cheguei a perceber, depois, que o senhor conversava também com as outras crianças. Eu me sentia muito importante, o senhor ouvindo-me com tanta atenção...
      - E o que mais você se lembra?
      - Lembro-me dos nossos domingos, quando revezávamos as excursões pelo Alto da Boa  Vista com os concertos sinfônicos no Cine Rex, onde o senhor e d. Ena nos levavam pacientemente para verdadeiras aulas ao ar livre...
      - Excursões? Nós levávamos os alunos? Mas eu nunca fiz excursões...
      O Manga mal disfarçava a incompreensão daquele diálogo.
      - Meu caro, quem é você?
     - André Moreira, professor. Seu ex-aluno e admirador. Tenho até uma foto da turma, daquelas que se tiravam todos os anos, com o senhor e d. Ena rodeados por nós...
      - Curioso... - disse ele, ocultando educadamente o ceticismo - Mas as nossas idades estão realmente em conflito... André Moreira?... Sobre o que, você diz que conversávamos?
      Como que para colocar as idéias em ordem, ele repetia a pergunta.
      Ele sabia que tudo conflitava, não só as idades, mas pacientemente deixou correr o insólito diálogo, a ver, talvez, em que daria a estranha visita. Continuou:
      - Você é pedagogo?
      - Eu? Não... Sou arquiteto...
      Sorriu.
      - Você é mestre em pedagogia... Acaba de me dar excelentes idéias...
      - Mas eu não disse nada, além de relatar as minhas lembranças...
      Ele ia dizer mais alguma coisa, quando ouvi chamarem meu nome. Era da secretaria, para que eu fosse resolver o problema que me havia levado até lá.
      Mas, lá, aonde? Olhei na direção do chamamento. Uma mocinha, atrás do balcão, esperava que eu me aproximasse para atender-me. Era o colégio do meu filho. Voltei a cabeça. O Manga já não estava ao meu lado. Eu havia voltado da estranha viagem.
      Enfim, resolvi o tal problema e dei por terminado o episódio, igual a tantos outros pelos quais já passara. Já ia saindo, dei outra olhada no pátio do recreio. Lógico, era o mesmo onde meu filho brincava todos os dias, e nada tinha a ver com o do Colégio Ibituruna.
      Mas, à tarde, quando voltei para pegar o Júnior, resolvi que no dia seguinte iria até o meu velho Ibituruna. Estaria lá, o colégio, trinta e tantos anos depois?
      E estava. Era ainda o mesmo Colégio Ibituruna. Modificado, sim; modernizado por algumas reformas, talvez, mas o mesmo colégio. O antigo prédio de dois andares, em centro de terreno, o pátio do recreio, agora cercado por uma grade - sinal dos tempos - a cantina... À medida que eu entrava, ia lembrando-me das dependências. Nunca mais havia voltado àquelas paragens, mas, exceto pelas pequenas modificações, tudo estava mais ou menos na mesma.
      - Bom dia.
      - Bom dia...- A moça da secretaria obviamente não era a d. Semiramis do meu tempo - Em que lhe posso ser útil?
      - Diga-me: quem é o diretor do colégio?
      - O professor Manga. O senhor o conhece?
      Eu não esperava encontrar o Manga ainda por ali.
      - Sim... Bem, eu... não o vejo há muito tempo... Eu estudei aqui, sabe? Mas você ainda não era nem nascida...
      - Veio, então, fazer uma visita... O Manga vai gostar muito de recebê-lo. Eu vou anunciá-lo, ele está na sua sala.
      “O Manga”... Pelo tratamento dispensado ao mestre pela mocinha, senti que ele continuava o mesmo Manga do meu tempo, sem muitas formalidades além das necessárias.
Pouco tempo depois, ela fez-me entrar na sala da diretoria. Lá estava o Manga, em um bem talhado terno branco, já sem a indispensável gravata dos outros tempos, a agora alva cabeleira derramando-se pela espessa barba também branca, fitando-me com os mesmos ágeis olhos que eu tão bem conhecia. Levantou-se e estendeu-me a mão, sorrindo, enquanto dispensava a secretária.
      - Obrigado, Renata. - E, voltando-se para mim - Então, você foi meu aluno...
      - Sim, professor. E nos seus primeiros tempos aqui no colégio...
      - Há trinta anos atrás, então? Como é o seu nome?
      - André, senhor. André Moreira.
      O professor olhou-me com mais atenção, como quem se lembra de algo, e repetiu:
      - André...
      - Não me diga que o senhor ainda se lembra de um simples aluno, depois de tantos anos...
      - O “simples” fica por sua conta, meu caro. Ninguém é tão simples que não nos marque, de uma ou de outra maneira. Mas talvez não me lembrasse realmente, não fosse por um fato curioso que me aconteceu, há muito tempo, com um homônimo seu.
      - O que foi? - perguntei, curioso, lembrando-me dos acontecimentos da véspera.
      - Foi logo depois que comprei o colégio. Faz tanto tempo... Recebi um dia a visita de um rapaz que disse também ter sido meu aluno.
      Fez uma pausa, examinando-me com o olhar.
      - Assim como você... Chamava-se André, também, não me lembro de quê. Ele estava sentado no pátio, ali fora, absorto em distantes pensamentos. Observei-o, de longe, por algum tempo, até que resolvi abordá-lo, pois ele pareceu-me um pouco... assustado.
      - Assustado?
      - Foi o que me pareceu. Eu o fiz ver que me teria sido impossível ser seu pro-fessor, pois havia comprado o colégio há pouco tempo e ele já andava pela casa dos quarenta anos, talvez. Mas ele insistiu, e relembrou fatos acontecidos na época de sua infância, que realmente somente antigos alunos meus poderiam saber. Travamos, então, um diálogo no mínimo inverossímil, para o qual, na verdade, não tive uma explicação razoável até hoje. No meio da conversa, chamaram-no da secretaria e ele, despedindo-se abruptamente, se foi.
      - Não voltou mais? O meu xará?
      - Sim... Não me lembro do seu sobrenome. Curioso como insistiu na afirmativa de ter sido meu aluno, apesar de eu ter tentado mostrar a ele que isso teria sido impossível. Mais tarde fui à secretaria e perguntei quem era aquele rapaz que havia estado comigo.
      E, sorrindo:
      - Passei por desequilibrado, aos olhos da minha secretária...
      - D. Semiramis?
      - Sim... Você a conheceu...?
      - Sim...- fiz uma pequena pausa - Desequilibrado por que, professor?
      - Porque ela respondeu-me que naquela manhã ninguém me havia procurado...
      O Manga havia levado o fato apenas como uma dessas coisas que acontecem e não se explicam, sem apurá-lo em profundidade. Voltei ao assunto, forçando que me repetisse o que havia dito:
      - Por que teria sido impossível ele ter sido seu aluno?
      - Porque parecia ser da sua idade, meu caro, por isso teria feito o primário há pelo menos trinta anos atrás... e eu havia comprado o colégio há apenas um ano e pouco... Como vê...
      E completou:
      - Mas você é muito parecido com ele, pelo que me lembro de nosso encontro...
      Resolvi instigá-lo:
      - Como está d. Ena?
     O Manga calou-se, sem deixar de me fitar. Ligou a minha pergunta pela sua dedicada esposa à visita do “meu xará”. Sorriu, com simpatia, e respondeu-me:
      - Ela está bem, obrigado. Então você a conheceu...
      - Como não, professor? Não lhe disse que fiz todo o meu primário e até parte do ginásio aqui?
      Queria forçá-lo a lembrar-se do nosso primeiro encontro.
      - Tenho até uma foto da minha turma, onde o senhor e d. Ena estão sentados no meio de nós...
      - Uma foto?
      - Sim, daquelas que eram tiradas todos os anos das turmas e que eram guardadas por nós com todo o carinho... Como eu mesmo guardei a minha...
      Como que para ganhar tempo e coordenar as idéias, ele convidou-me a um passeio pelas dependências da escola.
      - Vamos dar uma volta - disse - Venha ver como está o seu colégio. 
      Saímos para o pátio, que circundava o prédio das salas de aula. À medida que caminhávamos, eu ia descrevendo pormenores do meu tempo de aluno. Ali, os brinquedos das crianças; adiante, o “cavalo de pau” para as aulas de ginástica e o escorrega, já inexistentes.
Psicólogo nato, o Manga bem disfarçava. Mas estava confuso. As coincidências entre os dois Andrés aumentavam.
      - Uma foto... Meu jovem, eu preciso ver essa fotografia. Lembro-me agora de que aquele rapaz sobre quem lhe falei - o outro André - mencionou também algo sobre um retrato que foi tirado da sua turma, referiu-se também à Ena...
      De repente, como se tivesse se lembrado de algo, tomou-me pelo braço e levou-me novamente ao seu escritório.
      - Aliás... há uma maneira...
Em seguida, chamou pela secretária.
      - Renata, veja para mim o arquivo das fotos anuais das turmas.
      - Todos, professor?
      - Não, não, mais ou menos as...
      Eu me adiantei:
      - As de 1944, 47...
      A mocinha saiu, comentando :
      - Nossa, tão antigas assim?
      O Manga voltou-se para mim, agora sério.
      - Estou começando a me lembrar melhor da visita que recebi... há trinta anos atrás...
    Meu coração começou a bater na garganta. Esforcei-me para que o professor não percebesse o que eu sentia, mas não consegui.
      - O que foi, André? Está sentindo alguma coisa?
      - Na verdade, estou. Mas não saberia dizer o que é. Ou melhor, acho que não há o que dizer. É a emoção de estar novamente aqui...
      O professor ia comentar algo, mas Renata chegou com um volumoso álbum.
      - Aqui está. 1944, 45, 46, 47.
      Adiantei-me ao Manga e tomei o álbum das mãos da mocinha.
      - Desculpe-me, professor, mas estou ansioso...
      Folheei o velho álbum até encontrar a foto igual à que eu tinha casa.
      - Olhe, é esta. E este aqui sou eu - falei, apontando para um pirralho em pé ao lado dele -Fiz questão de ficar ao seu lado.
      - André ! Agora sim, lembro-me bem ! Você era o meu “auxiliar” nas excursões que fazíamos ! Ia comigo e Ena para o ponto de encontro com o resto da turma, no nosso táxi...
      - E fazia as chamadas durante o percurso, para que ninguém se perdesse...
      - Você era um menino muito vivo e esperto... Eu gostava muito de conversar com você.
      - Eu me lembro. O senhor era mestre em dar atenção aos alunos. Por isso gostávamos tanto do colégio. E nisso as pessoas não mudam, antes aprimoram-se. Aposto que o senhor deve ser querido até hoje.
      A nossa empolgação fez com que o Manga quase se esquecesse que havia um sério conflito de idades com o outro André, que era “muito parecido comigo”, como ele mesmo havia dito.
      O velho mestre tinha agora os olhos marejados. As revividas lembranças haviam mexido com ele. Permaneceu calado, olhando a antiga foto. Falou, então, depois de prolongado silêncio:
      - Olhe meus cabelos e minha barba... Não tinham um fio branco. Agora...
      - Os cabelos brancos consagram a experiência, professor.
      - Sabe em que estou pensando? Naquele outro André que me visitou, há trinta anos atrás.
      Ele fitou-me demoradamente, como para ter tempo de avaliar as palavras que diria. Repetiu:
      - Ele era muito parecido com você.
      Havia, por certo, uma segunda intenção na sua observação, que propositadamente ignorei. O velho mestre já parecia achar irrelevante a impossibilidade da situação criada pelos dois Andrés.
      - Lembro-me que me disse que eu gostava muito de conversar com ele. Como você mesmo falou, há pouco. Foi uma afirmação que me marcou muito, na época. Eu quase não conversava com os alunos. Mas, com o tempo, aprendi que a opinião das crianças era não só importante, como essencial. E aprendi com você, principalmente.
      - Comigo?
      - Sim. - E, depois de estudada pausa - Você me ajudou muito. Você e aquele seu misterioso xará que me visitou.
      - Eu, professor? Mas o que eu posso ter dito de tão importante? Eu era um garoto... E o meu xará?...
      O Manga levantou-se, foi até a janela e ficou olhando para o pátio, com as mãos cruzadas nas costas. Depois, voltou-se para mim.
     - Quando comprei o colégio, tinha um ideal : transformá-lo em um modelo de estabelecimento de ensino. Mas, além da vontade, não tinha noção de como fazê-lo, pois era grande a minha inexperiência. Naquela época não havia material didático que ensinasse a um professor como dirigir um colégio... Os diretores, salvo honrosas exceções, ainda conservavam a mão de ferro no leme, com castigos herdados das palmatórias, como abolir o recreio e humilhar os alunos faltosos. Mas eu não queria aquilo para o meu colégio...
       - Mas por que diz que eu lhe ensinei?...
      - Você e os seus coleguinhas foram os meus “professores”. Deram-me idéias novas, disseram-me o que esperavam de um colégio, nas nossas tão ingênuas quanto verdadeiras conversas. Resolvi, então, que a escola seria como vocês queriam que ela fosse, e não eu...
      - E o meu xará?
      - Pois foi ele que, indiretamente, deu-me esta idéia, de aproximar-me dos alunos, conversar com eles, saber deles o que é importante para que um estabelecimento de ensino seja mais do que apenas um conjunto de salas de aula...
      E, depois de uma pausa:
      - Creio que jamais saberei quem realmente ele era... Ele e... vocês, as minhas crianças de então, ensinaram-me a fazer do Colégio Ibituruna o que ele é hoje...
      - Mas que exagero, professor Manga...
      Faltaram-me as palavras. Eu jamais poderia imaginar desfecho tão intrigante para minha visita ao velho colégio.
      E o professor Manga acabara de me mostrar, indiretamente, porque todos nós, alunos, professores e funcionários sempre gostamos tanto dele.
      - Sabe, André? Agora vejo... Tenho muito a agradecer a você e ao seu xará, que me visitou há... trinta anos atrás...
      Sorri...
      - Trinta anos, professor?... Como corre o tempo... Parece que foi ontem...






sábado, 25 de setembro de 2010

Lembranças da Empresa - COBRAPI - Trechos




COBRAPI em Vitória



Além das gafes do Durval, que já narrei acima, vale lembrar, em Vitória, principalmente o Roberto. Eu e ele éramos os “velhos” da Cobrapi - rodávamos em torno dos cinquenta e poucos anos. Mas ele mexia comigo como se fosse um garotão. Uma vez, disse, na sala: “Quando alguém diz para o Maurício: ‘Vai procurar sua turma!’ - ele corre pro cemitério”. Ou então: “Maurício, é verdade que o Ruy Barbosa era como dizem, mesmo? Como era o convívio com ele?” Do nada, de sua prancheta, ficava soltando essas bobagens.
Um dia chegou lá com uma história que lhe contaram, que para ficar bom das hemorróidas era preciso cortar uma bananeira e sentar em cima do toco com o cú de fora. Diz ele que fez isso, ficou lá um tempão e não adiantou nada. Então fez um desenho (desenhava muito bem): ele próprio, pelado, sentado no toco da bananeira, com uma cara desconsolada, e saindo broto de bananeira por todos os lados - pelos ouvidos, pelo nariz, pela boca... Não precisa nem dizer que, quando ele fez a cirurgia, toda a Cobrapi participou do evento com detalhes.
Ainda o Roberto, que era um palhaço (no bom sentido...): Havia uma desenhista que usava umas calças tão justas, que pareciam costuradas no corpo. Naquele tempo - há vinte anos atrás - isso não era comum como hoje. Além do mais, ela tinha um bumbum de impor respeito. Lógico que todo mundo ficava admirando a escultura. Um dia, ela foi despedida. Lá veio o Roberto: “A Fulana foi despedida por justa calça.”
Trabalhávamos no 18º andar. Havia um fenômeno curioso, uma corrente de ar quente, ascendente, que fazia com que um papel que se jogasse da janela subisse, ao invés de descer. Roberto fazia uns cilindros com uma folha de jornal, e preso com durex um rabinho de papel bem fino. Chamava o engenho de espermatozóide, por causa da forma. Soltava aquilo da janela, o bicho subia, subia e desaparecia atrás do morro que havia do outro lado da rua, para cair não sei onde. Uma vez, Rodrigo era pequeno - oito anos - e foi lá no escritório comigo, onde viu os engenhos do Roberto. Saiu-se com esta: “Tio, me ensina a fazer espermatozóide?”
Houve uma época em que trabalhamos em um galpão pré-fabricado, dentro da usina, de pé direito muito baixo, que, embora forrado, era quente como o diabo. Éramos umas duzentas pessoas. Mas os aparelhos de ar condicionado davam bem conta do recado. Só que houve uma pane no sistema e aquilo virou um inferno, com todo mundo se derretendo e reclamando, sem poder trabalhar. Roberto não deixou passar: “Vamos aproveitar, pessoal, esse ambiente de calor humano!”
A Fernanda era uma colega e tanto. Engenheira calculista, muito educada e recatada, e sempre muito alegre. Por isso, essa história fica ainda mais engraçada. Estávamos falando sobre frutas regionais, diferentes, por isso desconhecidas de alguns. Cada um mencionava uma. Era ubú, cupuaçu, uva-de-macaco, gabiroba, enfim, tinha de tudo. Foi então que a Fernanda aproveitou o silêncio da sala: “Gente, quem aqui já comeu ‘cabeludinha’?...” 
Aí que o silêncio foi mesmo  sepulcral. Um olhou para o outro, prendendo o riso, respeitando a moça. Até que o Gilmar, um fala-mansa boa praça, disse: “Bem... acho que aqui todo mundo já comeu cabelu-dinha... Eu, já comi cabeludinha, já comi carequinha...”
Não tinha mais como respeitar a Fernanda... a sala veio abaixo... Mas ela levou na esportiva e reconheceu que “cabeludinha” não era, enfim, uma fruta tão rara assim...

Lembranças da Empresa - COBRAPI - Trechos




Cecília


Posso afirmar que quase nunca trabalhei para a CSN., apesar dos doze anos de Volta Redonda. Engajavam-me sempre em outros serviços que não os da mamãe, felizmente. Só assim livrava-me da seção de Arqui-etura, que era um ranso. Houve uma época, então, que nem com os outros eu ficava. Puseram-me numa sala do Hotel Sider, onde comecei a trabalhar sozinho, durante uns bons anos fazendo O.& M. - Organizações e Métodos. Eu bem gostava, tinha bastante autonomia, ninguém me enchia o saco e eu dava conta do meu serviço.
Um dia, Cecília veio trabalhar comigo, como dese-hista, para dar conta dos formulários que eu tinha que fazer. Foi uma das melhores coisas que me aconteceram na Cobrapi. Tornamo-nos antigos amigos logo no  primeiro dia embora ela me confessasse que foi trabalhar lá morrendo de medo que eu fosse “um daqueles abusados”, os quais bem conhecia na firma. Conver-sávamos muito, ela sempre puxando um por um os longos fios de suas madeixas, ou fazendo caricatura em 3D do Magalhães Pinto. Divertíamo-nos com as coisas que aconteciam naquela sala, nossas famílias tornaram-se amigas, e o são até hoje. Foi um anjo que me caiu do céu.
E as coisas que aconteciam lá na sala?
Havia ainda um espacinho vago para uma mesa, então puseram lá o Diógenes. Era de outra área, nada tinha a ver com a gente. Ultra sério e formal, totalmente diferente de nós dois. Ninguém era mais rotineiro. Rotina para tudo, até para abrir o contracheque, o que fazia reclamando por ter que rasgar os bordos em trabalho que achava demorado. “Pois eu não tenho pressa... O dinheiro já está no banco...”- disse-lhe uma vez, cortando o meu com toda a calma. Foi o bastante para desencadear um acesso de riso na Cecília. Que, aliás, ria por qualquer coisa, graças a Deus.
Um dia ele comentou que todas as tardes, quando chegava em casa e botava o carro na garagem, sua mulher ouvia o barulho do motor e já ia para a cozinha preparar um suco de laranja. Quando entrava em casa, ela já estava na porta com o suco de laranja na mão. Ele a beijava no rosto, pegava o suco e entrava. Isso todos os dias. Pode?
Cecília, como sempre, prendendo o riso. 
Em outro dia chegou lá na sala o Carvalho, engenheiro eletricista, que havia trabalhado com a minha companheira de sala. Foi lá bater papo. Davam-se bem, os dois, mas eu mal o conhecia. Cecília perguntou pela mulher dele, a Domicília (é esse mesmo o nome). Ele disse que ela estava bem, mas continuava com “aquele problema”. “Coitada, ainda não teve jeito?” “Nada, já fizemos de tudo, mas nada adianta.” Eu, quieto. Quando o Carvalho saiu, a Cecília vira-se para mim e diz: “Coitada da Domicília, com esse problema de beber...” “Como, Cecília? Que coisa horrível! Quem diria, a mulher do Carvalho! Que tristeza!” E ela: “Peraí, Maurício, também não é tanto assim...” “Como não é tanto assim? A bebida é uma desgraça!”
A Cecília se divertia comigo, mas desta vez eu não tive culpa. Ela, no meio de mais um acesso de riso, esse bem escandaloso, esclareceu-me que o problema era “de bebê”, isto é, de não poder ter filhos. Mas isso era jeito de falar?
Outro que apareceu na salinha foi o Selso. Com S, mesmo. Um arquiteto gaúcho meio pavio curto, que sempre dizia que não dava gorgeta para ninguém porque quando ele fazia o serviço dele não recebia gorgeta... por que daria para os outros?
Esse já entrou surtando, quase querendo me dar porrada, e eu inocente de pai e mãe. Ele reclamando que eu estava cantando a mulher dele, que ela telefonou para lá e eu fiquei fazendo insinuações. Ainda bem que meu anjo da guarda estava ali e presenciou o telefonema, viu que não houve nada, que eu tratei a madame Selso muito bem, e foi testemunha a meu favor. Cecília só riu depois que ele saiu. Dias depois, Sel-o voltou pedindo-me desculpas pelo que havia feito. Mas já havia feito.
E Cecília: “Mas logo você, Maurício?” 
Até hoje não sei se aquilo foi um elogio, ou se me chamou de banana.
Um dia mal entrei na sala, ela perguntou-me se a Paulina estava viajando. Disse-lhe que sim, que ela tinha ido ao Rio. "Logo vi" - ela disse. “Por que?” perguntei curioso. “Porque ela não teria deixado você sair de casa para trabalhar com uma calça lilás e uma camisa verde. Está parecendo um periquito australiano”.
Outra vez, Paulina devia também estar viajando, fui de calça marron e a própria: camisa verde, outra vez. Ela não conversou: “Veio de palmeira, hoje?”
Era assim que ela tratava o chefe.
Mas ela também fazia das dela. Apareceu lá na salinha com um sapato de cada cor. Ou uma meia, sei lá.
Cecília deve estar lendo esse blog.

O TIO

Direitos autorais garantidos

Anamaria sentou-se na cama, aconchegou-se aos cobertores e folheou o novo livro que seu tio lhe havia enviado. Estava muito fria a noite, e o silêncio e a meia luz tornavam o ambiente bastante apropriado para aquele tipo de leitura.
"Esse meu tio..."- pensou - "Não sei onde vai buscar essas idéias tão estranhas! E é curioso como elas dão a impressão que essas histórias realmente aconteceram..."
Iniciou a leitura. Eram contos, histórias curtas e intrigantes, bem no estilo que já lhe era familiar. Leu o primeiro, o segundo, o terceiro conto. À medida que continuava a leitura sentia, como de outras vezes, que não conseguiria parar. Não tinha sono. A leitura prendia tanto a sua atenção que chegara às últimas páginas sem sequer perceber.
E justamente a última história do livro reservava-lhe uma surpresa. O conto chamava-se “O Tio”, e começava assim: “Anamaria sentou-se na cama, aconchegou-se aos cobertores...” Anamaria, o tio... Será que seu tio estava referindo-se a eles próprios ?
Continuou a ler. Era, como as outras, uma história insólita. Viu-se como personagem. Ela e o tio. Deixou-se absorver pela narrativa,  fascinada  pela trama. À medida que devorava as páginas, sentia-se mais e mais dentro do próprio livro.
Então, num dado momento, ainda que não levantasse os olhos da leitura, percebeu que não estava sozinha no quarto. Sabia ser impossível que mais alguém entrasse no aposento sem ser notado, mas ainda assim seria capaz de jurar que a cadeira perto da cômoda estava ocupada.
Não sentia medo; ao contrário, envolvia-a uma inexplicável sensação de segurança. Continuou a leitura, mas a história do livro misturava-se tanto com a realidade que em dado momento levantou os olhos, correndo-os pela penumbra do quarto, iluminado fracamente apenas pelo abajur ao seu lado. Ouviu, então, uma voz que lhe pergun-tou :
- Está gostando ?
Era seu tio, sentado perto da cômoda. Tinha um maço de folhas na mão e lhe sorria. Anamaria também sorriu.
- Oi, tio...
Embora não compreendesse por que achava tão natural aquela visita, achava curioso não sentir o menor interesse em saber como ele chegara ao seu quarto.
- Estava lendo o livro que você me mandou... Estas suas histórias... Como você pode?...
Falava sem tirar os olhos dele, já com receio que desaparecesse da mesma maneira como havia chegado.
- Que bom, você estar aqui... Por que veio? Algo especial ?
- Pois é... E se eu lhe disser que tampouco eu sei por que vim parar aqui na sua casa? Curioso, não é?
“Curioso” não seria exatamente o termo. Afinal, eles moravam em cidades distintas, centenas de quilômetros distantes entre si...
- É... Mas me parece tudo tão normal... Bem de acordo com as suas histórias...
- O que sei é que estava escrevendo mais uma delas, lá em casa; estavam já todos recolhidos, e a noite calma e quente era ideal para que eu me concentrasse facilmente. Mas então faltou-me o fecho para a história. Deixei o lápis sobre a mesa, cruzei os braços e fiquei olhando para a folha em branco. Tentei concentrar-me ainda mais, em busca de uma idéia. Nada. Ao mesmo tempo comecei a sentir-me mais leve. Depois, flutuava como uma pluma, e a sala parecia expandir-se ao meu redor. Não tinha mais paredes, o teto abriu-se sobre minha cabeça e eu me vi envolvido pelo céu escuro, pontilhado de estrelas... Uma tênue névoa começou a formar-se diante de meus olhos, ganhando aos poucos consistência, adensando-se, definindo formas. Eram móveis, paredes, portas e janelas... Era o seu quarto e aí está você, encolhida sob os cobertores, lendo o livro que lhe mandei...
-Mas que coisa, tio... Há quanto tempo você está aí?
-Tempo... De repente o tempo perde todo o sentido... Quanto tempo durou a minha viagem? Como venci as centenas de quilômetros que separam as nossas cidades? Não sei... Só sei que ao ver que estava aqui esforcei-me para não ser notado. Tive receio de assustá-la. Então, sentei-me nessa cadeira e procurei ficar quieto, apenas observando-a, tão absorta que estava pela leitura...
- Mas eu logo o percebi...
- Eu estava esperando que terminasse a leitura, vi que faltava pouco... Então, subitamente veio-me todo o desfecho da história, que me havia faltado lá em casa. E enquanto você lia, consegui passá-lo para o papel. Acaba-mos quase juntos; você, a leitura e eu, a minha história...
- Mas eu ainda não acabei de lê-lo.
- Tanto faz, agora, que acabe ou não a leitura, você verá...
“Tanto faz”? Anamaria não entendeu o que o tio quis dizer. Ele botou os papéis sobre a cômoda e esfregou as mãos:
- Está frio aqui... Lá em casa faz calor, aquela minha terra não tem inverno...
Ele vestia apenas uma bermuda e uma camiseta, enquanto Anamaria enrolava-se nas cobertas. Aquela constatação, tão física, tão material, trouxe-o à realidade, se é que se pode usar esse termo. Imediatamente ambos sentiram que os laços que os uniam começavam a se afrouxar. Parecia-lhes estarem saindo de um mundo e entrando em outro tão matematicamente correto que não permitia aquele tipo de relação.
- Parece que estou começando a retornar... Afinal, vim atrás de um desfecho para minha história e já o consegui. Acho que tenho que ir embora...
- Espere, tio, não se vá... Vamos conversar mais um pouco...
- Não, Anamaria, essa visita já foi uma “concessão” muito grande. Nós devíamos estar muito ligados pelo pensamento. Uma visita atemporal, meio mágica...
No fundo, era também o que ela pensava. Ainda ia dizer algo, mas percebeu que a figura do tio começava a se volatilizar na sua frente. “Tchau... Liga pra mim...”, ainda ouviu ele dizer. Logo depois, o canto do quarto voltou a ter apenas uma cômoda e uma cadeira vazia.
Foi então que, na quase ausência de luz, ela viu algo sobre a cômoda. Eram os manuscritos do tio. De um salto, livrou-se das cobertas e alcançou-os. Talvez com medo que também eles se esfumassem, quem sabe, perdidos que estavam no tempo e no espaço...
Trouxe-os para a luz do abajur. Desdobrou-os. Reconheceu nas folhas a caligrafia que lhe era bem familiar.
Leu o título da história, encimando a primeira página: “O Tio”.



sexta-feira, 24 de setembro de 2010

A RATOEIRA

Direitos autorais garantidos

 24/9/2010

Eu tinha seis anos. Ou sete, não sei. Não éramos pobres, mas também nada sobrava. A vida era ali, ó, controladinha. Um dia, minha mãe comprou pra nós três - as últimas de doze - uns tamanquinhos, daqueles que os portugueses usavam, que nada mais eram do que um pedaço de madeira, recortado em forma de sola de sapato, com uma tira de couro na frente, onde se enfiavam os dedões dos pés. Os nossos eram pequeninos, delicados, mas iguaizinhos aos grandões. Iguaizinhos, não; tinham umas tirinhas no calcanhar, que ajudavam a mantê-los calçados, porque criança, sabe como é, nunca para quieta.
Eu adorei os tamanquinhos. Eram a maior novidade, usados só à noitinha, depois do banho, quando as brincadeiras já eram mais calmas e não havia possibilidade de estragá-los. A vaidade não tem idade, e comigo não era diferente. A toda hora olhava para meus pés, contemplando meus novos enfeites. E tanto olhei, tanto olhei, que comecei a implicar com aquelas tirinhas. Achava que não tinham nada a ver, que as haviam posto ali porque éramos crianças, por isso não saberíamos andar sem elas. Mas eu não era mais criança, pra que aquelas tirinhas? Ficava feio, o tamanquinho. Eu tinha que dar um jeito.
Não tive dúvida: armei-me de uma tesoura e decepei as incômodas tirinhas. Agora sim, sentia-me adulta em frente às minhas irmãs...
Mas minha alegria durou muito pouco. Quando minha mãe viu aquilo, passou-me o maior sabão, e disse-me que eu não perdia por esperar.
- Deixa seu pai chegar... - era a ameaça da época - ele vai saber direitinho o que fazer! Onde já se viu? Pensa que dinheiro dá em árvore? Seu pai trabalha muito para comprar pra vocês as roupas e os sapatos, e você faz isso? Deixa estar...
Eu não entendia onde estava o crime. Pois se os tamanquinhos ficaram bem mais bonitos nos meus pés... Só fiz melhorá-los...
Aguardei a noite com ansiedade. Meu pai não era nenhum carrasco, ao contrário. A violência, a injustiça e até simples alteração de voz não faziam parte de seu cardápio. Mas pareceu-me que o que eu tinha feito teria sido algo muito grave, do jeito que mamãe esbravejou... Por isso, a noite custou a chegar. Já estava me sentindo pendurada na corda, como naqueles joguinhos que a gente fazia descobrindo as palavras e colocando-as em cima dos tracinhos. Era ré confessa.
E a noite chegou. Junto com ela, papai. Como todos os dias, beijou a filharada, a mim também. e eu ressabiada. Depois foi ter com mamãe, no quarto. “É agora”, pensei, naquela expectativa que só as crianças com culpa ficam. Depois de um tempo, me chamou:
- Filha, vem cá.
Quando cheguei no quarto ele estava datilografando alguma coisa. Demorou tanto, em silêncio, que só fez aumentar minha angústia. Quando acabou, tirou o papel da máquina, sorriu pra mim, e disse:
- Princesa, você hoje fez uma coisa que não foi muito bonita. Sua mãe comprou uns tamanquinhos bonitos pra vocês, não foi? Aquelas tirinhas são pra vocês poderem correr, brincar sem que eles saiam dos pés... Os tamancos grandes não têm, porque os adultos não correm e nem brincam... E os tamanquinhos não ficam feios por isso...
Eu olhava pra meu pai desconfiada, com o choro preso na garganta. Ele era todo bondade.
- Não é mesmo?...
Disse que sim com a cabeça. Estava envergonhada com o que havia feito, e ainda não conseguia dizer nada. Ele estendeu-me o papel que tirara da máquina.
- Olha o que eu escrevi. Vê se você aceita...
Era mais ou menos isso:
DECLARAÇÃO
Eu, Maria, declaro perante meu pai e duas testemunhas, que prometo nunca mais cortar as tirinhas dos tamanquinhos que me forem dados por meus pais, e que vou cuidar deles até que fiquem velhinhos.

Devolvi o “documento” a ele já com os olhos cheios de lágrimas. Ele fingiu não vê-las. Pegou duas estampilhas, aqueles selinhos compridos que se usavam nos documentos antigamente, colou-os um ao lado do outro, datou e pediu que eu assinasse em cima deles. Se eu concordasse, lógico... Chamou meus dois irmãos, fez com que eles também assinassem como testemunhas. Depois, disse:
- Vem cá... - e me aconchegou junto ao peito.
Tenho esse documento até hoje.

Já tenho um neto. Aliás, um, não. Três.
Um dia, minha filha fez coisa parecida com meu neto.
Ela tinha tido uma infância muito boa, morávamos sempre em casas com quintais, onde sua levadice punha diariamente à prova meus nervos e minha paciência. Todas as vezes em que eu era “posta à prova”, me lembrava daquele “documento” que meu pai fez pra mim. Ele orientou-me e continua me orientando por toda a vida. (Um dia vou falar só de meu pai). Nunca perdi a calma e a tranquilidade, nem quando ela caiu de cima do abacateiro, ou quando escondeu os óculos no alto do dito cujo, nem ainda quando engoliu uma lampadazinha, depois de triturá-la na boca. Eu estava vacinada pelo documento que assinara sobre as estampilhas.
Ela, minha filha, cresceu sob a sombra daquele documento, eu pautava nele todas as minhas ações. E sem querer, isto é, sem perceber, passei para ela todos os ensinamentos que aquela folha de papel me proporcionou.
Não foi à toa que acabou fazendo coisa parecida com meu neto.

Já não morávamos mais em casas com quintais, mas em um nono andar, aliás, com uma vista maravilhosa. Talvez por isso, meu neto, do alto de seus quatro anos, achava que podia ficar pendurado na janela olhando, não a paisagem, mas tentando conversar com os coleguinhas lá em baixo, no play.
- Eu tomo cuidado, mãe. - e chamava os amiguinhos lá de cima, pendurando meio corpo pra fora, como quem diz: “Já sou grande...”
Ela com certeza lembrou-se do dia em que pregou-me o mesmo susto, no apartamento da avó, quando me correu um gelo na espinha ao vê-la dependurada  na janela, só com as perninhas aparecendo e eu me aproximando em silêncio, sem um grito, as minhas pernas tremendo, até segurá-la  pelos pés...
Com certeza lembrou-se, embora tivesse só dois aninhos, porque - olha só o que fez: foi à cozinha, apanhou um tomate e chegou na janela, perto do meu neto. Falou:
- Filho, joga esse tomate lá em baixo.
Ele gostou da travessura e jogou. Ela pegou-o pelo braço e levou-o lá em baixo, no play. Lá, mostrou-lhe o tomate esborrachado no chão, manchando tudo de vermelho, e só disse isso:
- Se você cair lá de cima, vai ficar assim...
Dali pra frente ele só chegava na janela respeitosamente.

Um dia, quando ele crescer, mas não tanto que ainda não seja um homem, os perigos não vão estar numa janela, tampouco as artes não serão cair de um abacateiro ou cortar as tirinhas de um tamanquinho. Tudo será muito dissimulado, escondido entre as sombras de um cômodo sombrio, ou entre o ruído ensurdecedor de uma have. Então ele dirá - ou pensará consigo mesmo, sem nada dizer - “É só uma experiência, não irá me afetar. Paro quando quiser...”
Então alguém irá lhe alertar:
- Meu filho, venha cá. Vamos armar esta ratoeira. Vamos botar um pedaço de queijo bem grande, tentador, e esperar...
E veio o ratinho, sem desconfiar do perigo. Conseguiu tirar um bom naco apetitoso e correu salvo, vendo de longe a ratoeira desarmar...
- Agora, meu filho, vamos botar um queijinho bem pequeno e bem preso, e esperar...
E veio outra vez o ratinho. Puxou, puxou, o queijinho ficou firme. Então, a ratoeira desarmou e ele ficou preso... para sempre... Nunca mais se libertou...
Tomara que nesse dia ele se lembre da ratoeira e não queira nem experimentar.