quinta-feira, 16 de setembro de 2010

JUSTIÇA

Direitos autorais garantidos


Rafael vinha lutando há muito tempo. Batalhas judiciais intermináveis, audiências seguidamente adiadas, como se todos envolvidos no processo - do promotor ao juiz – tivessem esquecido de que havia uma vida em jogo. Uma vida inocente, condenada à morte pela justiça dos homens. Justiça sem alma, justiça baseada friamente em fatos e provas técnicas de dúbia interpretação e em testemunhas passíveis de erros, embora juramentadas. Justiça jamais fundamentada no bom senso, na sensível captação de um olhar fortuito ou de uma expressão facial muitas vezes mais reveladora do que um juramento formal.
Rafael precisava correr contra o tempo. A sua luta por fim acabara. Nada mais havia a fazer além de chegar a tempo de evitar que a monstruosa injustiça fosse consumada. Havia conseguido o indulto, o passaporte para a liberdade, ao final da última e grande batalha. A verdadeira justiça já havia sido feita, restava-lhe fazê-la cumprir. Tinha em mão uma simples folha de papel que salvaria uma vida.
Duas horas de estrada apenas o separavam de seu destino. Na penitenciária estadual a sua cliente já devia estar sendo preparada para a abominável execução e ele imaginava a vergonha e a agonia por que ela passava, tendo seus cabelos raspados, seus pulsos e tornozelos untados para receberem as pulseiras mortais, e talvez com alguém a lhe perguntar pelos seus últimos desejos.
Esses pensamentos fizeram-no acelerar os passos e correr em direção ao carro, no estacionamento próximo. Mas felizmente havia tempo de sobra. Eram ainda oito horas da noite e a consumação do famigerado processo estava marcada para as onze horas, e menos de cem quilômetros o separavam da casa de detenção.
Chovia torrencialmente. Precisava ser cauteloso ao dirigir, pois nada poderia sair errado, agora que era portador da liberdade definitiva da pobre moça.
Entrou no carro. Seguidos e fortes relâmpagos clareavam o estacionamento, vazio àquela hora da noite.
- Vamos embora! - falou em voz alta - Há muito chão pela frente, mas muito antes das onze horas quero estar lá.
Nada havia a temer. Apesar da tempestade, os faróis iluminavam bem o caminho e o carro era potente e confortável. Mais duas horas, e isso por causa do tempo horrível, estaria chegando ao seu destino. Pensava alto, tentando aliviar a tensão provocada pelos últimos acontecimentos. A reunião com o Governador, o solene recebimento do indulto concedido, a responsabilidade, mais do que nunca, de uma vida em suas mãos. Nada poderia sustar a execução da sentença, exceto a entrega, em mão, daquela poderosa folha de papel ao diretor do presídio.
- Você vai para casa, menina, eu lhe prometo! Vai cuidar dos seus filhos, da sua vida, que a sua tarefa agora ficou muito mais difícil. Você está sozinha... Mas eu lhe prometo não descansar enquanto não colocar nessa maldita cadeira o assassino do seu companheiro!
Rafael mal havia acabado de falar quando sentiu o frio cano de uma arma encostando-lhe na nuca. E ouviu, vinda do banco traseiro, uma voz debochada:
- Não prometa o que não pode cumprir... Deixe as coisas como estão...
O susto quase o fez perder o controle do veículo. Instintivamente tentou voltar a cabeça para ver quem era o seu companheiro de viagem.
- Para a frente! Olhe para a frente! Continue dirigindo!
- Quem é você? O que quer de mim?
O homem deu uma gargalhada:
- De você? Nada, não quero nada... Aliás, sim, quero... Quero que você nunca chegue ao seu destino!
Rafael sentiu o descompasso do seu coração. Suas mãos estavam dormentes e um gosto amargo veio-lhe à boca. Podia imaginar quem era o seu passageiro e o que ele queria.
- Você me encontrou mais depressa do que pensava, doutorzinho... Mas agora está em minhas mãos. Pare este carro!
- Não posso, eu preciso correr mais! Quem é você?
Olhou para o relógio, no painel. Nove e meia. Ao mesmo tempo, forte pressão na sua nuca lembrou-lhe que ele não era senhor da situação.
- Doutor, eu estou com o dedo no gatilho! Pare este carro!
Rafael obedeceu. Desviou para o acostamento, parou o carro, desligou o motor e apagou as luzes. As trevas se fizeram completas, interrompidas apenas pelos clarões dos relâmpagos, seguidos de ribombantes trovoadas.
- Vamos esperar - o homem falou - não temos mais pressa. Vamos ficar por aqui, quietos, até as... onze horas, não foi o que você disse? Depois eu lhe deixo em paz. Não lhe farei nenhum mal, e nem você a mim. Conheço as leis, doutor. Não pode haver duas condenações pelo mesmo crime...
Rafael sabia quem era aquele monstro. Mas precisava ouvir dele próprio a confissão.
- Por Deus, quem é você?
- Você sabe muito bem quem eu sou... e o que fiz. O que quer saber é como fiz, não é isso? O que lhe interessa? Pois a mim, me interessa apenas uma coisa: é que ela está lá, quase se sentando naquela cadeira e eu estou aqui, livre para o resto da vida. Vamos esperar um pouco mais...
O revolver lhe apertando os tendões o transtornava. Não devia ter desligado as luzes. Que horas seriam? Como veria as horas? Mais um pouco e não haveria de chegar a tempo de evitar a tragédia.
O homem cantarolava, enquanto pacientemente aguardava que as horas rolassem, para desespero de Rafael. A estrada estava completamente deserta. Quem se atreveria a viajar debaixo de tamanha tempestade?
De repente um relâmpago mais demorado iluminou todo o interior do carro. Quase dez horas! - ele pôde ver no painel - Se não saíssem dali naquele momento não chegaria mais a tempo.
- Vá em frente! - rugiu repentinamente o criminoso - Estou com fome. Essa história ainda vai demorar muito. Mas vá bem devagar. Deve haver por aí algum infeliz com o botequim aberto.
Rafael deu a partida. Dirigia tenso, enquanto pensava em alguma maneira de reverter a situação.
Rezava para que não houvesse nenhum bar ou qualquer outra casa em funcionamento.
O homem soltava imprecações contra tudo e contra todos. Rafael mal o ouvia, sentindo sempre o cano da arma em sua cabeça. Teve então uma idéia absurda e resolveu pô-la em prática.
- Eu estou em suas mãos - falou.
- E está mesmo - voltou a gargalhar estrondosamente o outro - O doutor está em minhas mãos!
Então, repentinamente, Rafael acelerou violentamente o automóvel, ziguezagueando perigosamente pela estrada, correndo, correndo cada vez mais. Olhou mais uma vez o relógio: dez e quarenta! Era a sua última chance.
- Ei, seu maluco idiota! O que está fazendo? Pare o carro! Pare, já disse, ou lhe arrebento os miolos !
- Está com medo de morrer? Agora é você que está em minhas mãos! Atire! Vamos, atire! Morreremos os dois, espatifados contra uma destas árvores!
O bandido fora apanhado de surpresa. Não sabia o que fazer com a arma. Rafael dirigia como um possesso pela estrada, sem nenhum movimento àquela hora. O carro derrapava perigosamente a cada curva. Ele não podia imaginar como terminaria a corrida desenfreada a que se lançara, mas sabia que estaria sempre mais perto de tentar, a qualquer custo, devolver a liberdade à pobre moça.
De repente, em lance rápido, o homem passou a arma para a mão esquerda e arrojou-se sobre ele, tentando arrancar as chaves à ignição. Rafael revidou, agarrando-lhe o braço. Com uma só mão, quase não conseguia mais controlar o volante. E um tiro sem rumo espocou dentro do carro, estilhaçando o parabrisa.
A última coisa que ele viu foram os faróis iluminando um obstáculo à frente do veículo. No desespero, torceu o volante para a esquerda, mas o auto, derrapando violentamente, bateu com a lateral em um poste da beira da estrada, em meio a um estrondo de ferros retorcidos e vidros quebrados.
Rafael não perdeu os sentidos. A cabeça rodava. O silêncio agora só era quebrado pelo barulho da chuva, que continuava a cair pesadamente. Ele não teve outra preocupação senão olhar para o painel, que continuava iluminado: dez minutos para as onze.
Dez minutos!
Não conseguiria... Sentiu que estava perdendo a batalha, desta vez para a justiça...
Soltou o cinto de segurança e saiu do carro, como pôde. Constatou, sem interesse, que o seu companheiro de viagem jazia, morto, entre as ferragens da parte traseira. E saiu cambaleante, pela estrada escura, debaixo da tempestade, alheio aos potentes e rápidos “flashes” celestes que lhe iluminavam o caminho.
Precisava chegar ao seu destino. Precisava ao menos mostrar o indulto conseguido, a mágica folha de papel que teria salvo uma vida. Todos veriam como eram estúpidos os homens que condenavam os seus semelhantes à morte, e como a justiça humana dava pouco valor à liberdade.
Aproveitava agora os relâmpagos para acompanhar os poucos minutos que escoavam para a hora fatídica. Cada lâmpada celeste que se acendia era uma agulhada em seu peito. Estava tão perto! Mas o clarão que lhe mostrou os ponteiros marcando as onze horas pareceu-lhe o mesmo da descarga fatal que apagava uma vida inocente.
Seguiu em frente. “Consumatum est”, pensou em latim, como bom advogado. Mas era necessário chegar ao presídio. E muito andou, trôpego, cansado mas determinado a cumprir a sua missão. Finalmente divisou ao longe o enorme prédio, fracamente iluminado. Acelerou o passo. Outra vez sentia as terríveis sensações de quando havia sido abordado pelo facínora, dentro do carro. Mas eram bem outros os motivos, agora.
Já no presídio, mal conseguia falar:
- O diretor... Onde está o diretor?
- Calma, meu senhor. De onde está vindo, a pé, a esta hora? 
- Chame o diretor, já disse! Eu sou advogado!
- Nós vamos chamá-lo. Sente-se um pouco, descanse. O senhor está muito molhado!O que de tão grave aconteceu?
Rafael não se conteve:
- Aqui neste presídio, foi onde aconteceu. Vocês mataram uma inocente.
E tirando do bolso do paletó o envelope encharcado:
- Eu trouxe o indulto. Vocês mataram uma inocente. - repetiu, já aos prantos.
- Mas, meu senhor, - um dos funcionários que o rodeavam tomou a palavra - não houve nenhuma execução. Não vê como tudo aqui está precariamente iluminado? Apenas o gerador de emergência funciona. Parece que houve um acidente aqui por perto, que afetou toda a rede elétrica. Estamos sem força. Não houve a execução, pois dez minutos antes da hora marcada ficamos às escuras...
Dez minutos...
Rafael deixou-se cair na cadeira que lhe havia sido oferecida. Imóvel, com os braços pendentes, a mão direita segurando o envelope, do qual a água escorria e pingava no assoalho.
Pela primeira vez sorriu. A justiça, a verdadeira justiça, havia sido feita. Apenas, dez minutos antes da hora marcada.
                                   

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