sábado, 11 de setembro de 2010

SUBMISSÃO

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O carro rodava célere.
 Atacama! Sinônimo de desolação e morte... Quinhentos quilômetros de fervente aridez, desunindo Arica e Antofagasta, cidades marcadas pela grandeza escaldante do deserto...
 Para Mário, a viagem tornara-se uma obsessão, desde que ouvira falar da tórrida e quase impossível travessia. Era aventureiro, embora sempre, em suas façanhas, se cercasse de todo o conforto e segurança que o dinheiro farto lhe permitia.
 Na verdade, unir Arica e Antofagasta era apenas mais uma aventura, bastante amenizada pelo ar condicionado e pelo molejo do seu Mercedes, que ele não era homem de muito esforço. E uma curta peripécia, afinal, reduzida a poucas horas pela marcação constante que se lia no painel: cento e cinqüenta quilômetros por hora, embora, apesar da velocidade, lhe parecesse estar parado, e constantemente no meio daquela imensidão inerte...
 Elisa estava entediada. Compartilhava das idéias - às vezes um tanto estapafúrdias - de Mário, mas atravessar Atacama debaixo daquele sol, depois de um farto almoço em Antofagasta, era demais.
 - Meu Deus, Mário, quatro horas de viagem pela frente! Você não pode ir mais depressa?
 - Calma, Elisa. Que diferença fará chegarmos às três ou às cinco da tarde?
 - Nenhuma. Mas este deserto me assusta. Tão diferente e ao mesmo tempo tão igual ao... alto mar, onde não se vê nada além de céu e água, seja para qual direção que se volte o olhar...
 - Ora, meu bem... Férias são férias... E graças a estes roteiros malucos é que muito pouca coisa nos falta ver, por esse mundo...
 - Mas tenho medo de que algo aconteça...
 - Coisa nenhuma! Você está num Mercedes ’53, novinho, o tanque está cheio, temos dois sobressalentes, e posso até dormir no volante. Não há nem estrada...
 Bateu na bússola, presa no painel:
 - Esta aqui sim, é que não nos poderia faltar. E bússolas não se desregulam. Portanto...
-Você tem razão. - Elisa recostou a cabeça. - Vamos ver o que você vai inventar, nas próximas férias.
 Elisa não precisaria esperar tanto...

Na grande tela esverdeada, misto de radar e televisão, o diminuto ponto piscava, intermitente. Instrumentos sensibilíssimos detectavam o reluzente Mercedes prateado, embora a própria Terra ainda aparecesse como imensa bola azulada. A nave estava no zênite do carro de Mário e Elisa, e nada mais havia num raio de centenas de quilômetros.
 Um dos tripulantes dirigiu-se ao outro :
 + Lá está. Só pode ser aquilo.
 + Mas, como? Aquilo parece estar se afastando de nós!
 + E está, embora muito lentamente. Nossa velocidade no momento é cem vezes superior à daquele objeto. Por isso, daqui a pouco estaremos visíveis e receio que então nada mais nos reste a fazer.
 + Não viemos aqui para isso. Aliás, pensei que tal prática já não mais existisse nesse planeta.
 + É verdade. Mas quase nunca coincidem os propósitos e os meios de aproximação, entre as humanidades do Universo... Vamos aguardar.

A viagem continuava calma e sossegada. Já com quase duas horas de duração, o que indicava estarem eles agora no centro do terrível Atacama, Mário parou o carro.
- O que foi? - Elisa perguntou, um tanto sobressaltada.
- Calma, Elisa! Você está tensa, poxa! Parei apenas para comemorarmos. Estamos no coração do deserto...
- Ah... é só isso? Pensei realmente ter acontecido alguma coisa... Desligue o motor, Mário. Vamos “ouvir o silêncio”...
- Não, não. Não convém. A temperatura está muito alta, e é provável que se o motor for desligado dê trabalho para “pegar” novamente.
- Ainda bem que você entende dessas coisas. Eu já teria desligado. Não gosto de ver o motor funcionando sem necessidade.

+ Olhe, o objeto parou! E exatamente no meio daquela imensa região desabitada! Será teleguiado ou terá tripulantes em seu interior?
+ Não sei. Já tentei comunicação por todos os meios de que dispomos. Nada os atinge. Ou talvez já tenhamos conseguido contato e eles se recusem a responder.
+ Mas por que continuam nos atraindo dessa maneira? O que pretendem? E que força estranha e poderosa possuem, da qual não conseguimos nos desvencilhar? Se ao menos tivéssemos meios de dizer-lhes que estamos em missão de reconhecimento e que nossos propósitos são pacíficos...
+ Estaremos visíveis para eles em pouco tempo! Não estou gostando do modo como nos atraíram para essa região desolada. Eles têm algo em mente e eu gostaria de saber o que é!

- Bem, se já comemoramos acho que podemos ir embora, não? Quando você mostrar essas fotos para seus amigos, quero vê-lo provar que estávamos no centro do deserto. Não há nada aqui...
- Isso é verdade. Vamos embora, senão nem à noite chegaremos em Arica.
Quando entraram no carro, uma surpresa os esperava. A bússola rodopiava sem parar. Presa ao pára-brisa entre os dois passageiros, estava bem na linha de visão, para fácil consulta.
- Ei, o que há com essa bússola?
Antes que Mário respondesse, algo se interpôs entre eles e o sol, que estava quase a pino àquela hora do dia, ensombrando extenso círculo em volta do carro. Mário desceu os vidros. Instintivamente ambos olharam para o alto. E viram aquele monstruoso disco de metal, silencioso, inerte, pairando sobre suas cabeças.
Desapareceram-lhes as palavras, os movimentos, o raciocínio. Estranho paladar lhes assomou à boca. E assim ficaram, rígidos e hirtos, por uma eternidade, até lhes voltarem aos poucos os sentidos.

+ Pronto, eles agora nos têm em suas mãos. Nada podemos fazer.
+ Mas o que pretenderão? Essa espera é terrível! Por que não tomam logo as suas resoluções, sejam elas quais forem?
+ Devem estar nos analisando. Seus instrumentos devem ser extraordinários! Que potente força estará nos mantendo ligados àquele veículo, da qual não conseguimos nos liberar?
+ Seja lá o que for, é de alta tecnologia.
+ É verdade. Sabe? Acho que ainda temos muito o que aprender...

- Elisa... Elisa... Você está bem?
Mário falava em voz baixa, como se tivesse receio de ser ouvido de dentro da nave.
- Sim, sim... Oh, Mário, que faremos? Que é isso aqui em cima?
- Um disco, Elisa, um disco! E eu que sempre quis ver um disco voador! E agora? Eles nos têm em suas mãos! Devem estar nos analisando, examinando-nos... Seja o que for que pretendam fazer que façam logo, ou irão me achar aqui morto por um colapso!
Instintivamente, num gesto maquinal, Elisa desligou o motor do carro, talvez pensando em esconder-se no silêncio absoluto. Mário sequer percebeu, de tanto pavor. Aguardar, aguardar, era só o que podiam fazer.

+ Parou! Cessou a atração desconhecida! Eles nos libertaram! Vamos desaparecer daqui enquanto podemos!
+ Estranho, isso agora. Por que nos atraíram até este campo, que seria ideal para uma abordagem sigilosa, e de re-pente alteram seus planos? Mas... vamos, vamos embora, e à velocidade máxima!

Os raios de sol voltaram ao carro.. O disco partira a uma velocidade espantosa e já não mais era visível a Mário e Elisa.
- Onde está aquela coisa? Não poderia ter sumido assim de repente! Meu Deus! Mário, será que vimos alguma coisa realmente? Será que não foi o calor infernal que nos fez imaginar tudo isso?
- Calor? O calor está lá fora, não aqui! E a bússola? Olhe, está calma, agora. Eu vou é aproveitar, enquanto posso fugir dessa coisa. Ela já nos achou e pode voltar a qualquer momento. Aquilo era bem real, disso não tenho dúvidas!
Enquanto falava ligou o motor, e segundos após continuava a viagem. Só que, desta vez, na velocidade máxima...

+ Oh, não! Estamos sendo atraídos novamente! Eu não lhe disse? Esse planeta é ainda belicoso. Não iriam nos deixar escapar depois de nos terem seus prisioneiros! Estão nos dando uma demonstração de sua força, isto sim!
+ Analise! Analise todos os programas novamente! Temos que encontrar uma saída!

- Sabe, Elisa, agora que o perigo passou, eu acho que acabamos de perder a nossa maior oportunidade da verdadeira maravilhosa viagem de férias. Um passeio naquele disco teria posto “no chinelo” todos os roteiros turísticos que realizamos até hoje, não é mesmo?
- Agora você brinca... Queria ver essa sua coragem na hora em que aquele bicho estava em cima da gente. Nem voz para pedir carona você teria...
Subitamente, outra vez o carro foi imerso na gigantesca sombra. O disco agora acompanhava a sua marcha a pequena altura e na mesma velocidade. Desta vez, embora o susto fosse idêntico, pelo menos não houve o pânico que os havia deixado sem ação.
- Está de novo aí em cima, Mário. Oh, meu Deus, eu sabia que eles não iriam nos deixar escapar tão facilmente! Corra, Mário, corra! Faça alguma coisa! Não deixe que eles nos peguem!
Mário não sabia o que fazer. O carro não corria mais do que a sua potência permitia. A viagem, agora, era feita na sombra. O artefato acompanhava-o, como se preso a ele... Olhou a bússola. Não havia dúvidas. Miragens não produzem desvios magnéticos. Aquilo era mesmo um disco, e eles eram um joguete em sua mão.
Foi então que Mário tomou uma drástica resolução. Brusca freada levantou enorme nuvem de poeira.
- Mário, você ficou louco?
Quando a poeira baixou, Mário estava fora do carro, de câmera em punho, registrando em fotos o máximo que podia. Elisa, assustada, encolhia-se dentro do veículo.
- Esses marcianos vão ver uma coisa!  

+ Olhe! Um tripulante surgiu de dentro daquela nuvem de proteção que o veículo produziu! Parece que aponta uma arma para nossa nave. Que faremos, Comandante?
+ Nada, simplesmente nada. Continuamos com todos os nossos controles submetidos a eles.

- Elisa, venha cá fora! Seja o que Deus quiser, minha filha! Se temos que morrer, vamos morrer juntos!
Elisa foi juntar-se a Mário. Antes - pela segunda vez - num gesto instintivo, desligou o motor do veículo.

+ Parou novamente! Examine os instrumentos, estamos outra vez livres para escapar. Olhe a tela, são dois agora, lá fora. Veja que curioso tipo habita este planeta. Um deles ainda mantém a arma apontada para nós. Que faremos? Se permanecermos aqui poderão nos desintegrar, talvez, quando quiserem. Se partirmos, certamente irão nos aprisionar novamente. Comandante, peço permissão para atacá-los!
+ Permissão negada! De maneira nenhuma! Você perdeu o juízo? Por que iríamos voltar a um barbarismo que só conhecemos através de estudos sobre nossos antepassados? Além do mais é fácil perceber que a evolução espiritual desse povo não acompanhou a sua tremenda evolução tecnológica. A única arma que temos a bordo só nos é útil para a desintegração de pequenos corpos celestes que interfiram na nossa rota. Podemos avaliar, entretanto, o poder de destruição do pequeno engenho que aquele ser empunha, somente pela sua confiança em nos enfrentar apenas com ele. Vamos tentar escapar novamente. Acione os propulsores e eleve-nos à velocidade máxima. Se eles tiverem o propósito de nos atingir, não será a nossa fuga que os impedirá.
- Lá se vão eles novamente. Mário, mas que velocidade espantosa! Ninguém acreditará em nós...
Mário batia sofregamente as últimas fotos:
- Terão que acreditar! Vou dizer a todos que enfrentei um disco face a face apenas com esta “arma” aqui. Só que minha arma produz provas...
- Não fique tão satisfeito. Eles voltarão. Estão brincan-do conosco.
- Pois que voltem, Elisa! Vamos ficar aqui até o anoitecer. Aliás, os meus nervos estão em frangalhos e acho que mesmo que se eu quisesse não conseguiria dirigir agora. Vamos enfrentá-los, quero por essa história em pratos limpos!

+ Capitão, escapamos do campo gravitacional do plane-ta, e espero que tenhamos também escapado do raio de atuação daquela máquina infernal. As últimas análises indicaram que fomos atraídos devido à atuação de instrumentos inteiramente desconhecidos de nossa tecnologia.
+ Bem, seja o que for, se eles mantiveram esse aparelho desligado até agora é porque não pretendem nos fazer mal. Continuo achando que apenas nos foi dada uma demonstração de força. Devem estar ainda naquele estágio de civilização onde vencem aqueles que têm maior potencial bélico...
+ Compreendo. Eles não usam as armas, mas fabricam-nas em quantidades cada vez maiores e mais potentes e exibem-nas, orgulhosamente, por certo, vencendo pelo pavor que inspiram. Pobres coitados, que longo caminho ainda têm pela frente...
+ Constará em meu relatório que são desaconselháveis novas tentativas de aproximação a esse triste planeta. Ainda deve haver muito ódio a ser destilado e por isso precisarão de muito tempo para livrarem-se de suas armas e suas fobias. Vamos voltar à base. Missão encerrada.

Noite em Atacama. A temperatura amena - bastante baixa, até - permitiu que o ar condicionado fosse desligado. Mário e Elisa prosseguiam viagem recebendo a reconfortante brisa da noite no rosto. Com a bússola fracamente iluminada e os faróis apagados, desfrutavam de um espetáculo impar no firmamento enquanto o carro rodava, agora lentamente, a caminho de Arica.
Parecia-lhes defrontar com todas as estrelas do Universo de uma só vez! Tantas eram, que formavam manchas no céu como se fossem nebulosas. Estas, então, assemelhavam-se a flocos de algodão sideral, de tão densas, devido à total ausência da luz que a proximidade das grandes cidades impõe aos céus. Desta vez, Mário parou suavemente o carro e, abraçado a Elisa pôs-se a “ouvir o silêncio”, como ela havia dito.
- Sabe, Mário, - Elisa disse, pausadamente - jamais acreditarei que discos voadores possam ser máquinas de guerra e terror... Um povo que tem a capacidade de construí-los fatalmente deverá ter aliado a evolução tecnológica à espiritual. Que maravilha, se na Terra elas fossem evoluções paralelas, e se uma não sobrevivesse sem a outra...
Elisa tinha razão. 


























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