sábado, 11 de setembro de 2010

ALFORRIA

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A primeira providência do Coronel Feitosa, logo que comprou a fazenda, foi mandar um escravo ao tronco... com um machado na mão - para decepá-lo.
Jamais fizera mal a um escravo e nem consentia que alguém o fizesse. Sua fazenda era diferente das demais. A senzala era limpa e asseada, e ele próprio incumbia-se de vistoria quase diária, a confirmar suas exigências. Nas suas outras fazendas os feitores eram escolhidos a dedo, e ai daquele que cometesse alguma arbitrariedade. Por isso nunca tivera um escravo fujão. Eram livres os seus movimentos, dentro e fora dos seus domínios.
Mas nem por isso considerava negros como gente. Apenas dizia :
- Não maltrato os animais. Por isso não maltrato meus escravos. - e vangloriava-se - Não sou capaz de matar uma barata...
Escravos, baratas e outros “animais” eram nivelados.
Apesar do declarado desprezo, os negros o adoravam, pois era inevitável a comparação de suas vidas com as que levavam seus infelizes vizinhos, quase sempre submetidos aos troncos e aos pelourinhos, por um nada que fizessem, ou aferroados às gargalheiras, se tentassem a fuga.

Um de seus escravos destacava-se dos demais. Era Ambrósio. Inteligente, esperto, sempre pronto para qualquer tarefa com um largo sorriso de dentes muito brancos e perfeitos. Era também o preferido do Coronel, que sempre o consultava sobre as variações do tempo, a semeadura e a colheita, o trato com os animais, enfim - era o seu braço direito. Mas um braço negro, que, apesar de forte e sempre à mão, era mantido à distância... como um animal de estimação.
Mas Ambrósio sabia perdoar a fraqueza de seu senhor. Já era muito, o que conseguira aquele sisudo Coronel, ainda que tratando os negros como animais. Seus conterrâneos de além-mar, nas outras fazendas, trabalhavam de sol a sol até morrer, quando eram substituídos por outras peças, adquiridas nos mercados. Famílias eram destroçadas, mães brutalmente separadas dos filhos e fujões caçados impiedosa-mente pelos capitães do mato. Era uma bênção pertencer ao Coronel Feitosa, e ele sabia disso.
A confiança que tinha o Coronel no escravo era tanta, que fez dele o guardião de Anacleto, seu filho. Ambrósio levava-o ao vilarejo, quando ia às compras, tomava parte em seus folguedos, montava com ele quando a viagem era mais longa, escolhendo-lhe o animal mais dócil. E o próprio Coronel, quando saía a passeio com a família, levava o negro, a pedido do pequeno sinhozinho, que o adorava.
Foi num desses passeios que o Coronel pôde aquilatar quão bravo era Ambrósio. Haviam todos ido, em um piquenique, à beira do caudaloso rio que cortava a fazenda. Em dado momento, Anacleto afastou-se do grupo, em direção ao rio. Queria ver de perto a correnteza, comentou.
- Cuidado, meu filho! Esse rio é traiçoeiro. Não chegue muito perto da margem, ela pode desbarrancar. O rio está muito cheio, por causa das chuvas.
- Pode deixar, meu pai. Vou ficar de longe, quero só ver os peixes pularem. Está começando a piracema.
Ambrósio inquietou-se. Sabia dos perigos do rio. Ameaçou levantar-se e ir atrás do pequeno.
- Deixe, Ambrósio. Anacleto já está bem grandinho. Ele precisa começar a aprender a defender-se sem você por perto.
Mas o escravo não se aquietou. Via, de longe, o garoto seguindo em direção à margem do rio e não conseguia tirar os olhos de cima dele.
- Assossegue-se, Ambrósio, já disse! O menino tem juízo!
Ambrósio sorriu, preocupado. Como escravo que era, mantinha-se afastado da família por boa distância, a comer seu repasto, mas mantendo pelo menos os ouvidos, bem atentos.
De repente, ouviu-se um grito agudo, vindo do rio. O escravo levantou-se rápido, a tempo de ver o menino resvalando pelo barranco, que cedera à força das águas, e desaparecendo da sua vista.
Ato contínuo, saiu em desabalada carreira, já mais para a frente da correnteza, descontando o trajeto que as águas impunham ao rapaz. Atirou-se, ignorando o perigo, e com fortes braçadas em pouco tempo conseguiu agarrar Anacleto firmemente. Mas a correnteza estava muito violenta, e o negro começou a travar desigual batalha contra o rio, que jogava-os para um e outro lado, fazendo-o bater nas pedras, ferindo-o, às vezes afundando-os, sufocando os dois debaixo d’água. O Coronel e todos os outros corriam pela margem,  acompanhando o insólito combate, sem nada poder fazer para ajudá-los. Foram minutos que se transformaram em uma eternidade.
A luta contra as águas continuou. Ambrósio via aos poucos exaurirem-se as suas forças, sem que conseguisse livrar-se das águas enfurecidas. Então, num esforço sobre-humano, conseguiu aproximar-se da margem e suspender o garoto, já sem sentidos, colocando-o, a salvo, sobre a terra. Porém uma vaga maior arrebatou-o novamente para as águas e ele desceu, rio abaixo, semi-desfalecido. Correram todos a acudir o menino, levando-o para a relva seca, a fim de reanimá-lo.
Ninguém se lembrou do herói, que havia salvo o filho do poderoso Coronel. Somente depois de algum tempo, quando conseguiram que o sinhozinho voltasse a si e ouvissem as suas primeiras palavras, acordaram do susto :
- Onde... está... Ambrósio?... - Anacleto sussurrou.
- Meu Deus ! E Ambrósio?! Corram, corram todos e vejam que fim levou aquele pobre negro ! Vamos !
Enquanto isso, Anacleto era levado na charrete pa-ra a sede da fazenda, chorando e falando, baixinho :
- Ambrósio, volte... você não pode morrer... volte...
Mas o escravo não estava longe. Foi logo encontrado pela turma que corria em desabalada pela margem do rio, desfalecido e sangrando em abundância, sobre uma pedra onde as águas o haviam jogado, a uma centena de metros do local onde deixara o seu protegido. Com dificuldade conseguiram resgatá-lo, estendendo-o sobre o chão seco.
Chegou à fazenda ainda sem sentidos. Acordado de sua insensibilidade pelo filho, que em prantos exigia a presença do amigo, o Coronel esperava-o, impaciente.
- E então, como ele está? Morto? Ele não pode morrer ! Meu filho precisa dele, está inconsolável !
- Não, meu sinhô, ele não morreu. Mas está muito ferido, engoliu muita água. Está precisando de quem olhe “ele” !
Só então o Coronel Feitosa percebeu que era uma vida que esvaia à sua frente. Uma vida igual à do seu filho, um herói, que se arriscou para salvar seu tesouro, agora estava ali, ele mesmo prestes a sucumbir.
- Rápido, vá alguém chamar o dr. Cerqueira ! E pe-guem o meu cavalo ! É o mais ligeiro !
Os escravos se entreolharam. O Coronel, deixando mais alguém, além dele, montar seu alazão? Nunca havia feito isso...


- Anacleto...
- Sim, papai?
- Você gosta muito do Ambrósio, não é verdade?
- Muito...
- Ainda mais agora que ele salvou sua vida?
- Não... Por isso não... Eu já gostava muito dele, era meu amigo... Ele teria feito o mesmo por qualquer um...
- Eu quero lhe dizer uma coisa. Acho que você vai ficar sem seu amigo.
- Por que?
- Porque eu vou dar a carta de alforria a ele, em agradecimento ao seu ato de heroísmo. É meu dever fazer isso. E ele vai embora...
- Pode dar. Ele não vai embora.
- Não vai? Como você pode saber?
- Eu sei. Amigos não se abandonam. Ele vai continuar aqui na fazenda...
- Ora... se você tem tanta certeza... menos mal...
Feitosa ficou admirado da certeza que o filho tinha de qual seria a decisão do escravo. Mas - pensou - Ambrósio era muito inteligente, e com uma carta de alforria nas mãos certamente iria cuidar de sua vida. Mandou chamá-lo.
- Então, Ambrósio, agora você está bem, não?
Já tinham se passado três semanas do ocorrido.
- Sim, meu sinhô. Também, com tanto descanso...
Abriu-se em largo sorriso, exibindo os dentes per-feitos.
- Você sabe que praticou um ato de heroísmo?
Ele baixou os olhos e não respondeu.
- Pois bem. Pela sua coragem e desprendimento, salvando a vida do Anacleto, eu vou lhe conceder a alforria. Eis aqui a carta que o faz um homem livre.
Estendeu o documento da liberdade ao escravo.
Ele levantou os olhos para o seu senhor, e o sor-riso dissipou-se dos seus lábios. Em seguida, olhou para o pa-pel que ele lhe apresentava.
Mas não o tomou do Coronel.
- Eu não quero a alforria, sinhô.
- Como? Dispensa aquilo pelo que todo o escravo luta a sua vida inteira?
- Sim, sinhô.
- Mas por que, homem?
- Eu não quero a alforria, senhor. Não desse jeito.
- E de que jeito que você havia de querer, pelo amor de Deus?
Ambrósio fez longa pausa, que o Coronel respeitou. Depois, falou, com voz  firme:
- Eu teria feito a mesma coisa por um animal, meu sinhô.
- Que está dizendo?
- Meu carinho pelo sinhozinho é muito maior do que o que eu fiz. E o patrão não me daria a alforria se eu salvasse a pele de um animal seu.
A primeira reação do Coronel - muda, felizmente - foi de raiva, muita raiva pela insolência do negro. Comparar seu filho a um animal ! O escravo pareceu ler seus pensamentos:
- O senhor sabe que eu não estou comparando o sinhozinho a um animal. Mas não mereço esse presente, que muito lhe custa, por ter salvo a sua vida.
E arrematou, firme:
- Não por isso.
Feitosa compreendeu, então, onde ele queria chegar com aquelas palavras. Não por isso ! Pelo que mereceria, então, tão valiosa oferta? Lembrou-se do que sempre dizia, que se tratava bem os escravos era porque tratava bem todos os animais... Desapontado, mas compreendendo a lição, recolheu a folha de papel libertadora.
- Você quer continuar conosco, então...
- Se Deus e o patrão assim permitirem.
- Pode ir, então.
Desde esse dia, Ambrósio cresceu mais, às vistas do Coronel. Embora continuasse com a mesma rotineira lida diária, parecia-lhe agora quase humano. Cumpria suas obrigações como se nada houvesse acontecido, exercendo a sua espontânea humildade.
Feitosa passou a admirá-lo, a prestar mais atenção às suas atitudes, que sempre lhe foram despercebidas. No que julgava antes serem simples obrigações de seu serviçal, distinguia agora interesse, afeto e demonstrações até de amor. Ele e Anacleto eram inseparáveis.
- Como dois irmãos... - deixou escapar de seu pensamento, quando estava uma tarde com a esposa na varanda da Casa Grande.
- Irmãos? Quem são irmãos? - indagou Lucília.
- Lucília... Eu estava aqui pensando no Ambrósio. Desde que ele rejeitou a alforria que lhe ofereci parece outro homem...
- Ele não mudou nada, meu marido. Continua o mesmo Ambrósio de sempre. Você é que tem mudado. Ele está conseguindo o milagre de tornar-se você um outro homem...
Por um instante o Coronel esqueceu seus pensa-mentos. O seu orgulho falou mais alto.
- Eu? Que é isso, mulher? Não acha muita preten-são de um negro escravo querer modificar o seu senhor?
- Mas eu não disse que ele tem essa pretensão. Ele não mudou nada. Você é que está se espelhando nele para mudar seus pensamentos, reconhecendo que as atitudes humildes e altruístas de Ambrósio são as atitudes corretas. Aos poucos ele lhe administra valiosas lições...
E antes que o Coronel pudesse falar alguma coisa, aduziu:
- Para o bem de todos nós... 
- Ora essa, um escravo, dando-me lições! Você não sabe o que diz, Lucília! E por que “para o bem de todos nós”?
Lucília repetiu :
- Você tem mudado muito, senhor meu marido... Os que estão em volta só têm a ganhar...
Lucília sabia muito bem o que havia dito, ou melhor, o que havia tido a coragem de dizer ao presunçoso Co-ronel. Mesmo essa coragem já era fruto da “nova” convivência com o negro, ela sabia.
O poderoso senhor da Casa Grande estava pensativo. Relutava em admitir, ainda que para si mesmo, mas no fundo sabia que as atitudes do escravo estavam aos poucos influenciando a todos. A firmeza com que rejeitou a sua oferta, aquele “não desse jeito” que ficou sem explicação, a dedicação com que se empenhava nas suas obrigações, o amor pelo seu filho - como um irmão - fazia com que o Coronel não se esquecesse que ali estava um escravo especial. Aos poucos, quase sem perceber, estreitava mais e mais a sua ligação com Ambrósio. Chamava-o agora, amiúde, para discutirem juntos não só os problemas da fazenda como até mesmo assuntos familiares mais íntimos. Ambrósio sempre tinha uma palavra certa, um consolo ou uma solução. Tinha toda a autonomia para resolver problemas junto aos seus, como rixas, namoros, casamentos, até construção de novas senzalas. Passou a acompanhar o Coronel a todos os lugares em que antes seu patrão ia sozinho, a dar palpites - sempre apenas quando solicitado - sobre a compra de um novo rebanho, ou até de novas terras. Nunca ultrapassou os seus limites, conhecia como ninguém o seu lugar. Aquelas deferências do seu senhor não eram sequer notadas por ele, que continuava com sua vida simples, sem nenhuma afetação.
- Meu sinhô, essas terras já estão cansadas... Elas não convêm a vosmicê...
Para desespero dos outros proprietários, que não entendiam aquela ligação de um fazendeiro com um negro escravo, esse Senhor sempre o ouvia...
Feitosa era outro homem. Tornou-se ainda mais querido pelas senzalas, pelos seus empregados e pelos seus familiares. E declarava, com sincera humildade, que fora o bendito escravo que lhe havia mostrado ser gente como ele, e se agora tratava-os bem, melhor ainda do que sempre havia feito, seria porque aprendeu a distinguir perfeitamente os homens dos animais...
- Ambrósio, venha cá. Preciso falar com você.
- Sim, sinhô.
- Ambrósio, eu tenho a certeza de que você sabe o quanto eu gosto de você.
Novamente o negro abriu-se em sorrisos.
- Eu sei, sinhô.
- Você me ensinou muita coisa, me fez ver muita coisa que eu não via, isso sem falar da ajuda para resolver os problemas da fazenda. Aliás, de todas as minhas fazendas.
- Eu, sinhô? Mas eu não fiz nada...
- Fez, sim, e muito. Você me mostrou que todo es-se seu povo que vive aqui na fazenda é tão gente quanto eu, são todos iguais a mim. Riem, choram, alegram-se e sofrem como nós, cá do outro lado. Ainda bem que aqui na nossa fazenda, riem muito mais do que choram...
Ambrósio estava sério. Ele tinha feito aquilo tudo? Como podia ser? Somente procurava atender às ordens do patrão...
- Não fique tão sério, Ambrósio. Você tem que ficar muito feliz por ser quem você é.
Ambrósio baixou a cabeça. Não estava entendendo muito bem porque o sinhô dizia todas aquelas coisas.
- Por que o meu patrão me chamou aqui? O que o patrão quer que eu faça?
- Nada, Ambrósio, nada além do que você já faz.
Fez-se o silêncio. Feitosa crivou os olhos, já úmidos, no escravo. Este, sério, em pé na sua frente, olhava para ele e para o chão, alternadamente. Foi o Coronel Feitosa que interrompeu a longa pausa :
- Quantos vocês são, pela última contagem?
- Cento e oitenta e seis, meu sinhô. Não, não... Cento e oitenta e oito. Ontem nasceram mais dois negrinhos...
O Coronel sorriu.
- Ambrósio, eu vou alforriar todos vocês.
O escravo arregalou os olhos. Jamais esperava essa resolução, apesar de toda a bondade de seu senhor.
- Vocês serão livres para viver suas vidas onde quiserem. Nenhuma das minhas fazendas vai mais ter escravos. Os que quiserem permanecer poderão ficar, e terão paga pelo seu trabalho.
Ambrósio estava mudo.
- Então, negro? Não vai dizer nada? Não me diga que não aceita, como da primeira vez...
Solene, o escravo empertigou-se :
- Eu aceito, sinhô. Todos nós aceitamos.
O Coronel sentiu como que um alívio. Temia, no fundo, que Ambrósio lhe pregasse outra peça. Ele adiantou :
- Mas... ninguém vai querer sair daqui.
- Como você sabe?
- Eu conheço a minha gente...
O Coronel aproveitou para acabar com a velha questão :
- Por que da primeira vez você não aceitou a minha oferta e disse “não desse jeito”? Que jeito era aquele?
Ambrósio riu. Mas um riso respeitoso. Era simples e sincero, embora, às vezes, um tanto exagerado na sua franqueza.
- O sinhô estava me dando só uma medalha, mais nada, porque eu salvei a vida do sinhozinho... Me desculpe, patrão, mas era uma medalha muito fria e sem valor... Ela não ia me dar liberdade...
E arrematou:
- Agora, não. Agora é diferente. É o sinhô, que merece a medalha... Medalha de verdade...






Um comentário:

  1. Gosto muito das suas histórias. Esse, Alforria, gostei demais, entre todos. Ontem, ouvindo uma música caipira, "Leilão", gravada pela cantora Cida Moreira, me remeteu a esse seu conto. Fazendo-me crer que, definitivamente, a história que contou é muito marcante. Parabéns! E continue, porque quero continuar lendo. Fique bem. Elenice.

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