sexta-feira, 24 de setembro de 2010

A RATOEIRA

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 24/9/2010

Eu tinha seis anos. Ou sete, não sei. Não éramos pobres, mas também nada sobrava. A vida era ali, ó, controladinha. Um dia, minha mãe comprou pra nós três - as últimas de doze - uns tamanquinhos, daqueles que os portugueses usavam, que nada mais eram do que um pedaço de madeira, recortado em forma de sola de sapato, com uma tira de couro na frente, onde se enfiavam os dedões dos pés. Os nossos eram pequeninos, delicados, mas iguaizinhos aos grandões. Iguaizinhos, não; tinham umas tirinhas no calcanhar, que ajudavam a mantê-los calçados, porque criança, sabe como é, nunca para quieta.
Eu adorei os tamanquinhos. Eram a maior novidade, usados só à noitinha, depois do banho, quando as brincadeiras já eram mais calmas e não havia possibilidade de estragá-los. A vaidade não tem idade, e comigo não era diferente. A toda hora olhava para meus pés, contemplando meus novos enfeites. E tanto olhei, tanto olhei, que comecei a implicar com aquelas tirinhas. Achava que não tinham nada a ver, que as haviam posto ali porque éramos crianças, por isso não saberíamos andar sem elas. Mas eu não era mais criança, pra que aquelas tirinhas? Ficava feio, o tamanquinho. Eu tinha que dar um jeito.
Não tive dúvida: armei-me de uma tesoura e decepei as incômodas tirinhas. Agora sim, sentia-me adulta em frente às minhas irmãs...
Mas minha alegria durou muito pouco. Quando minha mãe viu aquilo, passou-me o maior sabão, e disse-me que eu não perdia por esperar.
- Deixa seu pai chegar... - era a ameaça da época - ele vai saber direitinho o que fazer! Onde já se viu? Pensa que dinheiro dá em árvore? Seu pai trabalha muito para comprar pra vocês as roupas e os sapatos, e você faz isso? Deixa estar...
Eu não entendia onde estava o crime. Pois se os tamanquinhos ficaram bem mais bonitos nos meus pés... Só fiz melhorá-los...
Aguardei a noite com ansiedade. Meu pai não era nenhum carrasco, ao contrário. A violência, a injustiça e até simples alteração de voz não faziam parte de seu cardápio. Mas pareceu-me que o que eu tinha feito teria sido algo muito grave, do jeito que mamãe esbravejou... Por isso, a noite custou a chegar. Já estava me sentindo pendurada na corda, como naqueles joguinhos que a gente fazia descobrindo as palavras e colocando-as em cima dos tracinhos. Era ré confessa.
E a noite chegou. Junto com ela, papai. Como todos os dias, beijou a filharada, a mim também. e eu ressabiada. Depois foi ter com mamãe, no quarto. “É agora”, pensei, naquela expectativa que só as crianças com culpa ficam. Depois de um tempo, me chamou:
- Filha, vem cá.
Quando cheguei no quarto ele estava datilografando alguma coisa. Demorou tanto, em silêncio, que só fez aumentar minha angústia. Quando acabou, tirou o papel da máquina, sorriu pra mim, e disse:
- Princesa, você hoje fez uma coisa que não foi muito bonita. Sua mãe comprou uns tamanquinhos bonitos pra vocês, não foi? Aquelas tirinhas são pra vocês poderem correr, brincar sem que eles saiam dos pés... Os tamancos grandes não têm, porque os adultos não correm e nem brincam... E os tamanquinhos não ficam feios por isso...
Eu olhava pra meu pai desconfiada, com o choro preso na garganta. Ele era todo bondade.
- Não é mesmo?...
Disse que sim com a cabeça. Estava envergonhada com o que havia feito, e ainda não conseguia dizer nada. Ele estendeu-me o papel que tirara da máquina.
- Olha o que eu escrevi. Vê se você aceita...
Era mais ou menos isso:
DECLARAÇÃO
Eu, Maria, declaro perante meu pai e duas testemunhas, que prometo nunca mais cortar as tirinhas dos tamanquinhos que me forem dados por meus pais, e que vou cuidar deles até que fiquem velhinhos.

Devolvi o “documento” a ele já com os olhos cheios de lágrimas. Ele fingiu não vê-las. Pegou duas estampilhas, aqueles selinhos compridos que se usavam nos documentos antigamente, colou-os um ao lado do outro, datou e pediu que eu assinasse em cima deles. Se eu concordasse, lógico... Chamou meus dois irmãos, fez com que eles também assinassem como testemunhas. Depois, disse:
- Vem cá... - e me aconchegou junto ao peito.
Tenho esse documento até hoje.

Já tenho um neto. Aliás, um, não. Três.
Um dia, minha filha fez coisa parecida com meu neto.
Ela tinha tido uma infância muito boa, morávamos sempre em casas com quintais, onde sua levadice punha diariamente à prova meus nervos e minha paciência. Todas as vezes em que eu era “posta à prova”, me lembrava daquele “documento” que meu pai fez pra mim. Ele orientou-me e continua me orientando por toda a vida. (Um dia vou falar só de meu pai). Nunca perdi a calma e a tranquilidade, nem quando ela caiu de cima do abacateiro, ou quando escondeu os óculos no alto do dito cujo, nem ainda quando engoliu uma lampadazinha, depois de triturá-la na boca. Eu estava vacinada pelo documento que assinara sobre as estampilhas.
Ela, minha filha, cresceu sob a sombra daquele documento, eu pautava nele todas as minhas ações. E sem querer, isto é, sem perceber, passei para ela todos os ensinamentos que aquela folha de papel me proporcionou.
Não foi à toa que acabou fazendo coisa parecida com meu neto.

Já não morávamos mais em casas com quintais, mas em um nono andar, aliás, com uma vista maravilhosa. Talvez por isso, meu neto, do alto de seus quatro anos, achava que podia ficar pendurado na janela olhando, não a paisagem, mas tentando conversar com os coleguinhas lá em baixo, no play.
- Eu tomo cuidado, mãe. - e chamava os amiguinhos lá de cima, pendurando meio corpo pra fora, como quem diz: “Já sou grande...”
Ela com certeza lembrou-se do dia em que pregou-me o mesmo susto, no apartamento da avó, quando me correu um gelo na espinha ao vê-la dependurada  na janela, só com as perninhas aparecendo e eu me aproximando em silêncio, sem um grito, as minhas pernas tremendo, até segurá-la  pelos pés...
Com certeza lembrou-se, embora tivesse só dois aninhos, porque - olha só o que fez: foi à cozinha, apanhou um tomate e chegou na janela, perto do meu neto. Falou:
- Filho, joga esse tomate lá em baixo.
Ele gostou da travessura e jogou. Ela pegou-o pelo braço e levou-o lá em baixo, no play. Lá, mostrou-lhe o tomate esborrachado no chão, manchando tudo de vermelho, e só disse isso:
- Se você cair lá de cima, vai ficar assim...
Dali pra frente ele só chegava na janela respeitosamente.

Um dia, quando ele crescer, mas não tanto que ainda não seja um homem, os perigos não vão estar numa janela, tampouco as artes não serão cair de um abacateiro ou cortar as tirinhas de um tamanquinho. Tudo será muito dissimulado, escondido entre as sombras de um cômodo sombrio, ou entre o ruído ensurdecedor de uma have. Então ele dirá - ou pensará consigo mesmo, sem nada dizer - “É só uma experiência, não irá me afetar. Paro quando quiser...”
Então alguém irá lhe alertar:
- Meu filho, venha cá. Vamos armar esta ratoeira. Vamos botar um pedaço de queijo bem grande, tentador, e esperar...
E veio o ratinho, sem desconfiar do perigo. Conseguiu tirar um bom naco apetitoso e correu salvo, vendo de longe a ratoeira desarmar...
- Agora, meu filho, vamos botar um queijinho bem pequeno e bem preso, e esperar...
E veio outra vez o ratinho. Puxou, puxou, o queijinho ficou firme. Então, a ratoeira desarmou e ele ficou preso... para sempre... Nunca mais se libertou...
Tomara que nesse dia ele se lembre da ratoeira e não queira nem experimentar.





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