terça-feira, 14 de setembro de 2010

BENJAMIM

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Eu ontem estava fazendo a minha ronda mensal, mais por obrigação do que por dedicação. Nunca me opus a fazê-la, mas nunca a fiz com a alegria que vejo, com inveja, estampada no rosto de meus companheiros de grupo. Eles não vão lá apenas para distribuir os sabonetes e os cremes dentais.
Não.
Eles sentam-se ao lado de cada um e conversam, interessados, com toda a atenção, como se os assuntos fossem os mais importantes do mundo.
Mas... são os mais importantes do mundo. São a vida daquela gente, a sua desdita, a sua conformação muitas vezes pelo abandono a que foram relegados, ou a sua aceitação por tudo o que passam como sendo... desígnio de Deus. Têm a necessidade de falar, de contar o que às vezes têm guardado por tanto tempo à espera que alguém lhes dê um pouco de atenção. Têm necessidade até de um simples aperto de mão.
Esses meus companheiros de ronda vêm de todas as partes, de todas as religiões, ou sem religião nenhuma, não importa, se misturam, levam um violão, cantam e são acompanhados por todos, que abrem roda para participar, batendo palmas, dançando, esquecendo por instantes a vida que vai se escoando por ali, insípida.
Esses meus companheiros abraçam e beijam toda aquela gente, sem sequer perceber qualquer diferença que porventura exista entre eles e seus anfitriões. Eles sabem que ela não existe. Anotam pequenos pedidos – um par de pilhas, um radinho usado, sapatos velhos... que são aguardados ansiosamente durante todo o mês, ate a nossa próxima visita.
Um mês inteiro por duas pilhas! Um mês inteiro sem ouvir o pequeno radio fanhoso... pela falta de duas pilhas...
E as revistas? Como são bem vindas, mesmo às vezes quando tratam de assuntos estranhos a eles, inusitados mesmo: economia, autoesporte, moda e beleza... E agradecem o mínimo que ganham com tanta sinceridade no olhar, que desconcertam quem está distribuindo tão singelas dádivas. Quando pedem um simples sabonete, e um de nós diz “Acabou, meu irmão... Já distribuí todos...”, vem a resposta que comove: “Não faz mal, fica pro outro mês... A sua presença aqui é muito mais importante...”
Esses meus companheiros são abnegados, entendem e procuram diminuir, pelo menos num dia por mês, a triste rotina daquelas pessoas que talvez não esperem mais nada da vida alem de um tratamento com dignidade e respeito. Não pedem nada mais que um par de pilhas, ou uma palavra amiga e compreensiva. Não choram suas mágoas, talvez nem as tenham, porque os meus companheiros e outros mais, em outros domingos, suprem-nos sempre de energia para mais uma semana.
São assim esses meus companheiros.
Tão diferentes de mim... Eu, todos os meses faço as compras para levá-las a eles; em casa, separo as bolachas nos sacos plásticos, corto ao meio o sabão de roupa, desembalo os rolinhos de papel higiênico... - friamente. Até distribuo o que se arrecada, também, como eles. Mas... falta-me alguma coisa, falta o coração, falta aquele calor que, como para me acordar, ainda sinto de volta, nos agradecimentos que recebo por cada uma daquelas coisinhas que passo às mãos daquela gente. 
Mas continuo dormindo. Se as minhas dádivas não vão com maus fluidos, tampouco não seguem com bons. Por que? Não sei. Parece que há uma barreira invisível que nos separa, uma redoma de vidro que cai sobre mim todas as vezes que passo pelo portão de entrada.

Eu estava distribuindo as revistas e algumas pilhas, quando ouvi me chamarem. Vinha de uma cadeira de rodas.
- O senhor pode me fazer um favor?
- Claro, meu amigo. Diga...
- Eu queria lhe fazer um pedido.
- Pois faça, o que é?
- O senhor me arranja um benjamim? Pra botar aqui, ó.
E apontou para a tomada que todas as camas têm, ao lado.
- Mas que pena... Se eu adivinhasse, poderia ter trazido hoje mesmo. Você vai esperar um mês, pelo benjamim?
E ele, até com humildade:
- Não tem importância... Um mês passa rápido...

Eu moro numa casa enorme. Sem nenhum luxo, mas com quatro quartos, uma sala muito grande, jardim e quintal e tudo mais que compõe uma casa. Tenho tomadas e benjamins espalhados por todos os cômodos. Ele, mora numa cama. Tem uma tomada e não tem benjamim. Eu saio de casa com minhas pernas, pego ônibus, vou onde quero, a qualquer hora. Ele, de sua cama, passa para a cadeira e pode rodar talvez uns cem metros. Eu ligo o que eu quiser nos meus benjamins. Ele vai esperar um mês pelo seu benjamim. Vai deixar de ligar na eletricidade o que quer por mais um mês.
- Passa rápido...
Amanhã é segunda-feira, ninguém os visita. Pois vou levar o benjamim para ele.
Quem sabe ele não estará ajudando a abrir meu coração?

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