sábado, 25 de setembro de 2010

O TIO

Direitos autorais garantidos

Anamaria sentou-se na cama, aconchegou-se aos cobertores e folheou o novo livro que seu tio lhe havia enviado. Estava muito fria a noite, e o silêncio e a meia luz tornavam o ambiente bastante apropriado para aquele tipo de leitura.
"Esse meu tio..."- pensou - "Não sei onde vai buscar essas idéias tão estranhas! E é curioso como elas dão a impressão que essas histórias realmente aconteceram..."
Iniciou a leitura. Eram contos, histórias curtas e intrigantes, bem no estilo que já lhe era familiar. Leu o primeiro, o segundo, o terceiro conto. À medida que continuava a leitura sentia, como de outras vezes, que não conseguiria parar. Não tinha sono. A leitura prendia tanto a sua atenção que chegara às últimas páginas sem sequer perceber.
E justamente a última história do livro reservava-lhe uma surpresa. O conto chamava-se “O Tio”, e começava assim: “Anamaria sentou-se na cama, aconchegou-se aos cobertores...” Anamaria, o tio... Será que seu tio estava referindo-se a eles próprios ?
Continuou a ler. Era, como as outras, uma história insólita. Viu-se como personagem. Ela e o tio. Deixou-se absorver pela narrativa,  fascinada  pela trama. À medida que devorava as páginas, sentia-se mais e mais dentro do próprio livro.
Então, num dado momento, ainda que não levantasse os olhos da leitura, percebeu que não estava sozinha no quarto. Sabia ser impossível que mais alguém entrasse no aposento sem ser notado, mas ainda assim seria capaz de jurar que a cadeira perto da cômoda estava ocupada.
Não sentia medo; ao contrário, envolvia-a uma inexplicável sensação de segurança. Continuou a leitura, mas a história do livro misturava-se tanto com a realidade que em dado momento levantou os olhos, correndo-os pela penumbra do quarto, iluminado fracamente apenas pelo abajur ao seu lado. Ouviu, então, uma voz que lhe pergun-tou :
- Está gostando ?
Era seu tio, sentado perto da cômoda. Tinha um maço de folhas na mão e lhe sorria. Anamaria também sorriu.
- Oi, tio...
Embora não compreendesse por que achava tão natural aquela visita, achava curioso não sentir o menor interesse em saber como ele chegara ao seu quarto.
- Estava lendo o livro que você me mandou... Estas suas histórias... Como você pode?...
Falava sem tirar os olhos dele, já com receio que desaparecesse da mesma maneira como havia chegado.
- Que bom, você estar aqui... Por que veio? Algo especial ?
- Pois é... E se eu lhe disser que tampouco eu sei por que vim parar aqui na sua casa? Curioso, não é?
“Curioso” não seria exatamente o termo. Afinal, eles moravam em cidades distintas, centenas de quilômetros distantes entre si...
- É... Mas me parece tudo tão normal... Bem de acordo com as suas histórias...
- O que sei é que estava escrevendo mais uma delas, lá em casa; estavam já todos recolhidos, e a noite calma e quente era ideal para que eu me concentrasse facilmente. Mas então faltou-me o fecho para a história. Deixei o lápis sobre a mesa, cruzei os braços e fiquei olhando para a folha em branco. Tentei concentrar-me ainda mais, em busca de uma idéia. Nada. Ao mesmo tempo comecei a sentir-me mais leve. Depois, flutuava como uma pluma, e a sala parecia expandir-se ao meu redor. Não tinha mais paredes, o teto abriu-se sobre minha cabeça e eu me vi envolvido pelo céu escuro, pontilhado de estrelas... Uma tênue névoa começou a formar-se diante de meus olhos, ganhando aos poucos consistência, adensando-se, definindo formas. Eram móveis, paredes, portas e janelas... Era o seu quarto e aí está você, encolhida sob os cobertores, lendo o livro que lhe mandei...
-Mas que coisa, tio... Há quanto tempo você está aí?
-Tempo... De repente o tempo perde todo o sentido... Quanto tempo durou a minha viagem? Como venci as centenas de quilômetros que separam as nossas cidades? Não sei... Só sei que ao ver que estava aqui esforcei-me para não ser notado. Tive receio de assustá-la. Então, sentei-me nessa cadeira e procurei ficar quieto, apenas observando-a, tão absorta que estava pela leitura...
- Mas eu logo o percebi...
- Eu estava esperando que terminasse a leitura, vi que faltava pouco... Então, subitamente veio-me todo o desfecho da história, que me havia faltado lá em casa. E enquanto você lia, consegui passá-lo para o papel. Acaba-mos quase juntos; você, a leitura e eu, a minha história...
- Mas eu ainda não acabei de lê-lo.
- Tanto faz, agora, que acabe ou não a leitura, você verá...
“Tanto faz”? Anamaria não entendeu o que o tio quis dizer. Ele botou os papéis sobre a cômoda e esfregou as mãos:
- Está frio aqui... Lá em casa faz calor, aquela minha terra não tem inverno...
Ele vestia apenas uma bermuda e uma camiseta, enquanto Anamaria enrolava-se nas cobertas. Aquela constatação, tão física, tão material, trouxe-o à realidade, se é que se pode usar esse termo. Imediatamente ambos sentiram que os laços que os uniam começavam a se afrouxar. Parecia-lhes estarem saindo de um mundo e entrando em outro tão matematicamente correto que não permitia aquele tipo de relação.
- Parece que estou começando a retornar... Afinal, vim atrás de um desfecho para minha história e já o consegui. Acho que tenho que ir embora...
- Espere, tio, não se vá... Vamos conversar mais um pouco...
- Não, Anamaria, essa visita já foi uma “concessão” muito grande. Nós devíamos estar muito ligados pelo pensamento. Uma visita atemporal, meio mágica...
No fundo, era também o que ela pensava. Ainda ia dizer algo, mas percebeu que a figura do tio começava a se volatilizar na sua frente. “Tchau... Liga pra mim...”, ainda ouviu ele dizer. Logo depois, o canto do quarto voltou a ter apenas uma cômoda e uma cadeira vazia.
Foi então que, na quase ausência de luz, ela viu algo sobre a cômoda. Eram os manuscritos do tio. De um salto, livrou-se das cobertas e alcançou-os. Talvez com medo que também eles se esfumassem, quem sabe, perdidos que estavam no tempo e no espaço...
Trouxe-os para a luz do abajur. Desdobrou-os. Reconheceu nas folhas a caligrafia que lhe era bem familiar.
Leu o título da história, encimando a primeira página: “O Tio”.



Nenhum comentário:

Postar um comentário