sexta-feira, 17 de setembro de 2010

JULIETA E JULIETA

Direitos autorais garantidos



 Esta é a história de Julieta e Julieta.
Uma, a do Romeu Capuleto, Julieta Montechio. A outra, a do Chico Freitas, Julieta Soares. Uma, sofre e morre por amor a Romeu. A outra, morre de amor por Chico, sem sofrer. A Montechio parece ter nascido da mente de Shakespeare, em Stratford-on-Avon, England. A Soares, do ventre de d. Aurora, em Bom Despacho, Minas Gerais.
Nada em comum, além do nome.
Nada?

Julieta cedo deixou a sua Bom Despacho. Chico veio com ela. Precisavam de horizontes mais vastos, um palco maior, mais luzes e refletores. Na acepção da palavra. Eram artistas natos.
Não lutaram muito, na cidade grande. Sorte ou talento, não se sabe – além do mais, porque quase sempre eles vêm juntos – o fato é que venceram sem muito esforço. A ribalta lhes foi generosa, os aplausos se sucediam a cada apresentação. Por isso, a fama lhes sorriu velozmente.
Mas apesar de todo o sucesso, Chico nunca deixou de alimentar outro ideal. O teatro não era o pico de sua montanha. Queria chegar no topo, sim. Mas como médico, talvez cirurgião famoso, salvando vidas. Por isso, deixou que Julieta seguisse a sua trajetória, embrenhando-se com afinco nos compêndios universitários. E tornou-se, em pouco tempo, o requisitado Dr. Chico Freitas, sem tempo para nada que não dissesse respeito à medicina, além do sagrado compromisso com a sua Julieta.

Se não me alongo muito nesta parte da história, será porque, apesar de incomum, a trajetória de ambos não é importante. Consta aqui apenas para delinear os perfis de nossos protagonistas.

A carreira artística de Julieta seguia de vento em popa. Pela fama, pelo prestígio, escolhia os seus papéis. Impunha, no bom sentido, a montagem das mais famosas peças. Os produtores a acolhiam, porque sabiam que seriam gordas as bilheterias. Foi assim que encarnou Somerset Maugham, Virginia Woolf, Arthur Miller, e tantos outros. Até mesmo os clássicos. Medéia e Jocasta reviveram, em sua arte.
Faltava Shakespeare.
Não por muito tempo, pensou. Tinha muita simpatia pela donzela de Verona. O malfadado romance da moça a atraia, sempre que pensava no gênio inglês. A tristeza de ver um amor tão puro terminar em tragédia fez com que ela se apegasse a Julieta, dando-lhe a certeza de poder vivenciar aquele papel com toda a sua alma. Logo decidiu qual seria a sua próxima performance: a história dos famosos amantes de Verona.
Ensaios e mais ensaios se sucederam, ela sempre secundada por Chico, que tomava as falas, dava palpites - ator que era - e nunca deixava de a incentivar, porque seus nervos vinham à flor da pele todas as vezes que se dedicava a um novo texto. Foram meses de exaustivos ensaios, até ser marcada a data da estréia.

A casa estava cheia, os ingressos vendidos com antecedência. Mais uma vez Julieta Soares (não era exatamente um nome artístico, mas ela fez questão de manter viva a sua raiz de Bom Despacho) iria mostrar a sua arte. Na quinta fila, obscuro, estava o seu primeiro e maior admirador. Chico estava tão nervoso quanto ela. É fato que o artista, mesmo aquele com anos e anos de palco, quase desmorona em cada estréia - e Julieta não era diferente. Mas quando a cortina se abre e ele se vê, iluminado, na frente de seu público, a arte fala mais alto e todos na platéia como que desaparecem, parecendo-lhe estar sozinho no palco.

Não foi diferente aquela estréia :
- Julieta, você foi maravilhosa ! - Chico esperava-a no camarim - Creio que nenhuma platéia jamais viu uma Julieta de Montechio como você !
Ele enlaçou-a em seus braços e beijou-a carinhosa-mente.
- Sério, Chico? Foi tanto assim? Ainda estou tão nervosa quanto estava, quando a cortina se abriu...
- Pode estar certa, minha querida. Você contou quantas vezes voltou ao palco para os aplausos?
- Mas isso é por causa dos meus outros trabalhos... O público é generoso. Não sei se foi pela minha Julieta.
- Deixe de modéstia, é claro que foi...
- Chico... Quem era aquela mocinha que estava ao seu lado?
- Mocinha? Ao meu lado quem se sentou foi uma senhora, por sinal muito bonita, a cabeça branquinha... Do outro lado havia um casal, não vi nenhuma mocinha. Quem sabe você me confundiu?
- Chico... lá vou confundir você? Será que não o conheço bem?... Era uma mocinha, uma menina, quase; bem jovem, muito bonitinha, mas... muito triste. Parecia estar sozinha. Eu vi o casal, do outro lado. Você não viu a menina?
- Julieta... Quando os refletores se acendem, quem está no palco quase nada mais vê na platéia, que fica às escuras... Como você pode ter confundido uma senhora, de cabelos brancos, com uma menina?
- Não confundi. Ainda lhe digo mais: ela não se levantou, no final do espetáculo, como todos fizeram. Nem bateu palmas.
- Se era uma menina, como você diz, os outros quando se levantaram a encobriram. Eu não vi nenhuma menina.
- É, pode ser. Deixa pra lá. Vamos comemorar, estou morrendo de fome !

Na manhã seguinte, as colunas especializadas dos jornais eram todas elogios. Julieta chegara a um patamar no qual seria difícil apontar falhas na representação. Mesmo porque, se as houvesse, seriam perdoadas pelos críticos, ante o elevado nível do seu talento.
- Olhe só, Julieta. Não há um crítico sequer que não lhe teça elogios. Cada qual se esmera mais do que o outro, nas palavras. Talvez nem precisassem ver a sua performance, para escrever as críticas. Seria trabalho apenas de repetir as anteriores...
- Chico, meu fã número um... Sinto você não ter sido o meu Romeu...
- Mas eu sou o seu Romeu de Capuleto... Só que nossa história de amor deu certo...
- Está bem, Romeu de Bom Despacho...
- Bem, meus clientes me esperam. Mas hoje à noite estarei lá novamente, como em todos os próximos dias...
- Chico...
- Sim?
- Alguém não gostou da minha atuação.
- Quem?
- A menina, a mocinha de quem lhe falei. Observei-a durante todo o espetáculo. Quase me fez perder a concentração. Ela não estava gostando...
- Você insiste...
- Mas ela estava lá, Chico. Não vi nenhuma senhora de cabeça branca...
- Está bem. Quem sabe ela volta, para ver se você representa um pouco melhor? Vamos aguardar...
- Você brinca... Está certo, quem sabe ela volta? Tomara que não se sente mais ao seu lado. Parece que você só tem olhos para mim...

- Chico... Ela estava lá, de novo.
- Outra vez? Ao meu lado, com certeza?... Vou ter que prestar atenção às pessoas que sentarem próximo a mim, e lhe passar um relatório.
- Não, não estava ao seu lado. Mas estava lá, triste como das outras vezes. E sozinha. Ela é quase uma criança, como a deixam vir sozinha num espetáculo que acaba tão tarde? E por que será que vem tantas vezes?
- Como ela é? Loura, morena...
- Linda. Rosto sereno e calmo, mas com a tristeza estampada no olhar. Cabelos muito lisos e longos, que lhe caem em tranças sobre os ombros. Uma pintura.
- Você vai me mostrar essa moça, se ela voltar um dia. No intervalo, vou ao seu camarim e vamos vê-la, por detrás da cortina.
- Ela vai voltar, eu sei. Não tira os olhos de mim, durante todo o tempo da peça.
E o sucesso de Julieta seguia cada vez maior. Chico não se cansava de vê-la no palco. A repetição das mesmas falas, noite após noite, mais aumentava sua admiração pela companheira. Sabia já os diálogos de cor, e a via, feliz, superar-se a cada espetáculo.
Em vão esperou que ela lhe mostrasse a jovem espectadora, que nunca mais apareceu.
A peça já estava em cartaz há quase seis meses, a casa sempre cheia. A “mocinha”, como Julieta a chamava, acabou relegada ao esquecimento. Chico jamais deixara de comparecer a uma só apresentação, orgulhoso da Sarah Bernhardt que tinha em casa.
Mas chegou o dia em que uma cirurgia de emergência prendeu-o no hospital.
- Julieta, minha querida, como você vai se arranjar sem mim? - brincou, ao telefone, com a mulher - Eu não vou estar no teatro hoje, meu amor. Você promete que faz tudo direitinho, como lhe ensinei?
- Convencido...
- Olhe, depois vá direto para casa, ouviu? Não tenho hora para chegar...
- Está bem, meu senhor...
E Julieta, mais uma vez, deu conta do recado. Após os aplausos costumeiros, as idas e vindas ao palco para recebê-los, dirigiu-se, exausta, ao camarim. Quando abriu a porta, viu que alguém a esperava.
- Você... Como entrou aqui? O camarim estava fechado, a segurança...
- Eu venho todas as noites...
- Todas as noites? Nunca mais lhe vi...
- Esperei todo esse tempo para falar contigo... sem ele por perto...
- Meu marido?
- Por que estás fazendo isso?
- Isso o que?
- Repetindo essa história, todas as noites... Por que?
- Ora, minha filha, isso é uma peça de teatro. Ela tem que ser representada todas as noites.
- Por que tem que ser assim? Eu me sinto tão mal...
Embora ainda delicada, Julieta começava a perder a paciência.
- Por que vem, então? Por que vem todas as noites? Por que não fica em casa?
- Por que eu precisava falar-te... E eu não tenho...
- Então vamos, minha filha. Fale de uma vez. Como é o seu nome?
- Julieta.
- Julieta? Minha xará, então. Julieta de que?
- Julieta de Montechio.
- Julieta... de Montechio... Muito bem... Onde está o seu Romeu?
- Por favor, respeite-nos... Que fizemos de mal a vocês? Por que nossa triste história tem que ser repetida sempre, sempre, todas as noites?... Por que a desgraça de duas famílias tem que ser mostrada, à exaustão?
Julieta não estava entendendo até onde a menina queria chegar. Resolveu, em vez de zangar-se, compartilhar da brincadeira :
- Diga-me : você conhece William Shakespeare?
- Triste senhor... O que fez, para ganhar a fama... Não respeitou a tragédia que se abateu sobre Verona, antes tirou partido dela, deturpando os fatos, escondendo os criminosos, mascarando um crime hediondo sob o véu do suicídio... Também ele sofre, o coitado...
- O que você está dizendo? Que sandices são essas? Romeu e Julieta, um clássico da literatura, escorrido da pena de um gênio... O que pretende com essa brincadeira, menina?
- Estou cansada, minha senhora. Quisera eu que fosse uma brincadeira... Há seis séculos procuro entender por que a minha desdita com Romeu precisa ser constantemente revivida em meio a tantas mentiras. Até mesmo quem a passou para o papel, há muito já se arrependeu de tê-lo feito, e amarga esse arrependimento através dos séculos.
Julieta examinou a menina. Trajava um vestido verde bem escuro, longo, que lhe caía até os pés, de mangas também compridas e generoso decote. Uma faixa de couro, logo abaixo do busto, levantava-lhe artificialmente a cintura. Os cabelos, castanhos, caídos nos ombros, eram trançados, entremeados com uma fita de veludo. Enfim, embora fosse um traje de acordo com a moda atual, na qual tudo é permitido, era bastante parecido com o que ela mesma usava, em sua atuação como a filha de Montechio.
- Quem é você?
A pergunta veio de sopetão.
- Como já falei, minha senhora. Julieta de Montechio.
- Julieta... Mas você é uma criação de Shakespeare...
- Aquela que a senhora mostra a todos, sim, esta, infeliz-mente, é uma criação do senhor em questão. Mas ele não foi fiel à verdade... Não fomos os amantes suicidas que ele descreveu por sua pena, mas sim vítimas da odiosa contenda en-tre nossas famílias, eu e meu amado Romeu, que redundou no ignominioso acordo perpetrado por ambos os clãs, Capuleto e Montechio. Foi a única vez em que estiveram no mesmo lado da batalha - contra duas crianças que se amavam..
O nosso sacrifício seria a única maneira pela qual conseguiriam que não se misturassem sangues tão nobres. Por isso não vacilaram em cometer o duplo assassínio. Afinal, eram apenas duas crianças enfrentando, de peito aberto, o ódio secular...
Toda a Verona soube da verdade. Mas o que ficou para a história, pelas artes do escritor, foi essa falsidade que vejo ser representada através dos séculos, sem que com ninguém eu consiga me comunicar. Somente pela senhora fui ouvida. Não pode imaginar como apenas esse nosso encontro aliviou-me. Alguém teria que conhecer como se deram os fatos...
- Os fatos... E Romeu? Onde está Romeu?
- Pobre Romeu... Entregou-se à raiva e ao desespero, e até hoje persegue aqueles que acabaram com as nossas vidas. Não quis ouvir-me, transviou-se pelas furnas trevosas e não há de descansar enquanto não se vingar do último dos Capuleto, como vem fazendo há tanto, tanto tempo... É provável que nada saiba ainda sobre esta falsa história de nosso amor, pois o secular ódio obscureceu sua mente. Meu querido Romeu... que abandonou o seu amor, que poderia ser eterno, pela vingança que a nada leva... Pobre Romeu...
- Julieta... de Montechio... no meu camarim...
- Sim, minha senhora. Já bem aliviada de meus penares, graças a ti, que és ao menos uma, a conhecer a verdadeira história.
- Que queres que eu faça... Julieta?...
- Não serei eu a dizer-te, por Deus. Temo que, se a alguém relatares estes fatos, seja por este considerada como tendo a razão obscurecida.
Julieta, a de Montechio, tinha razão.
- Agora me vou, estou mais leve de meu fardo. Que os Santos iluminem a tua trajetória por esta romagem.
A donzela de Verona sorriu para sua irmã de Bom Despacho, um sorriso meigo e tranqüilo, de quem se estava livrando de um pesado fardo. Então, aos poucos foi sendo envolta por suave névoa, eterizando-se aos olhos da sua xará, até desaparecer por completo. Só então Julieta percebeu que um silêncio absoluto reinara durante o inusitado diálogo, e agora começava a ser substituído pelos sons característicos do buliçoso mundo de fantasia que existe por detrás das cortinas de um teatro.

- Chico...
- Que foi, meu anjo? Como foi ontem à noite? Pela primeira vez não fui bater palmas para minha Sarah Bernhardt...
- Sabe? Decidi parar com a temporada de “Romeu e Julieta”... 
- O que?!
- Foi o que você ouviu...
- Por que? No auge do sucesso?...
- É... Justamente no topo que se deve parar, para deixar saudades.
- Mas você não pode parar assim, de repente... O que foi que aconteceu?
- Nada, nada... Mas eu vou parar, já estou cansada de ser Julieta.
- Minha querida, você será sempre Julieta. Não faça isso, não é ainda a hora...
- Eu faço a hora, Chico. É a vantagem da fama...
- Mais um mês... pelo menos... Será ruim para você, parar assim tão de repente.
- Não, não será ruim, me fará muito bem, eu lhe garanto... Além do mais, essa história de Romeu e Julieta já está muito batida.
E, sorrindo :
- Já virou até sobremesa, lá em Minas...

   

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