sábado, 11 de setembro de 2010

O CELULAR

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          - Geraldo, estou começando a ficar preocupada com seu pai.
- Por que, mãe? Onde ele foi?
- Ele já saiu há tanto tempo... Foi dar uma daquelas na-dadas nostálgicas que tanto gosta. Está na pracinha. Acabei de falar com ele... Sua voz está diferente, disse umas coisas um tanto sem nexo... Perguntou-me até de onde eu estava fa-lando, imagine. Se quando saiu, deixou-me aqui em casa... Além disso, não tem mais idade para ficar pela rua até essa hora da noite.
- São nove horas, mãe...
- Eu sei. Mas aquela pracinha não é mais o que era no nosso tempo, agora está sempre tão deserta... Nunca se sabe de onde vem o perigo, e um velho, sozinho, é alvo fácil. Vá até lá, vá ver se ele está bem.
- Ele falou coisas sem nexo? Como assim?
- Não sei... Murmurou alguma coisa, duvidou até que fosse eu mesmo, no telefone. Disse que minha voz estava diferente... Tive a impressão de que havia outra pessoa por perto. Acabou desligando no meio da conversa...
- Estranho... Está bem, vou até a praça. Mas fique tran-qüila, não deve ter havido nada. Quando papai volta ao pás-sado, esquece-se do presente.
- Lá isso é verdade. Como esquece !
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Marilda tinha razão. Inácio viajava no tempo, sempre que se via sozinho. Agora mesmo, sentado num banco da pracinha de que tanto gostava, estava num daqueles momen-tos. Não fosse o calor sufocante da noite de verão, tudo estaria perfeito para suas “viagens”. Aliás... ele estava sentado no banco da pracinha, porque só havia restado aquele, do bom tempo da sua adolescência. Justamente no que ele e os colegas uma dia gravaram, a canivete, os nomes dos seus “brotinhos”.
- Um único banco ! Que fim deram a todos os outros? Esta praça tinha bancos em toda a volta, sempre cheios, na hora do “footing”... Ainda bem que o que restou foi esse... - disse para si mesmo, passando os dedos sobre um nome gravado no encosto de madeira - Marilda... Puxa, mais de cinqüenta anos !
Inácio dava asas às tão gratas lembranças:
- Se estávamos sentados, as meninas ficavam rodeando o lago, depois éramos nós a desfilar em frente a elas... Eram voltas e mais voltas em torno da estátua, e o almirante só vi-giando-nos lá do alto, com seu sisudo olhar de bronze...
Dos outros nomes gravados, não tinha notícia. Seriam, atualmente, senhores e senhoras respeitáveis, todos mais ou menos da sua idade. Nunca mais encontrara nenhum dos seus amigos, embora quem sabe morassem todos ainda na mesma cidade. Talvez os pares perpetuados na madeira estivessem ainda juntos, como ele e Marilda, talvez não.
- Puxa, e na mesma cidade... - deixou escapar, mais uma vez, em voz alta.
 Olhou para o alto, pareceu-lhe que Tamandaré lhe sor-ria, cúmplice de suas lembranças. Desviou os olhos da está-tua, para contemplar o céu estrelado.
- Até o céu era mais estrelado... Menos luzes... acho até que nem tanto calor assim era comum...
- O que disse, senhor?
Era um jovem que passava em frente ao seu banco, fla-grando-o no solitário monólogo. Inácio não prestou atenção às palavras do rapaz. Continuava contemplando as estrelas. Mas o jovem insistiu:
- O céu?... Tinha mais estrelas? - disse, sorrindo e apon-tando para o alto, como que antegozando a cena que provo-cara.
Voltou-se para o rapaz. No mesmo instante que seus o-lhos se encontraram, tudo aos poucos mudou à sua volta. O ar tornou-se mais leve, uma brisa suave e agradável substituiu a desagradável sensação de calor que sentia. Aos seus olhos, a praça agora parecia bem cuidada, limpa, os jardins tratados, o lago em volta da estátua com os chafarizes funcionando. E cheia de gente. Jovens circulavam em grupos, em volta do gramado, conversando e rindo na alegria da adolescência, trocando olhares com as moças, que cochichavam, ingenua-mente, sabe-se lá o que. Reconheceu neles, rapazes e moças, seus amigos colegas de “footing”...
No céu, agora, milhares de estrelas faiscavam, como dia-mantes celestes.
Inácio sabia do que era capaz a sua imaginação. Não te-ria mesmo sequer se alterado, vendo aquela cena tão grata do seu passado, não fosse por algo que lhe fez bater mais forte o coração. O rosto daquele rapaz parado na sua frente, a sua voz, o seu jeito de sorrir, até aquela singular maneira de abor-dar um desconhecido, tudo lhe era tão familiar que por um momento não percebeu nem que a pergunta era dirigida a ele.
- Eram mais estrelas, no céu? - Mais uma vez o rapaz insistia.
- É... Talvez, menos luz...
- Eu posso imaginar. Quando vou para o interior, onde a eletricidade ainda não chegou, gosto de ficar admirando o céu. A Via Láctea aparece inteira, como uma enorme mancha branca cortando o céu. Parece mesmo um jorro de leite derra-mado nos céus.
Inácio não despregava os olhos do rapaz.
- E para onde, você costuma ir?
- Meu pai tem um sítio, no pé da serra. Lá ainda não tem luz. É uma beleza.
Se Inácio ainda tinha alguma dúvida, ela dissipou-se ali. O céu do sítio, à noite, sempre foi para ele um espetáculo inesquecível.., Agora tinha certeza de quem era aquele rapaz.
- Sente-se aqui, rapaz. Como é seu nome?
O rapaz sentou-se ao seu lado.
- Inácio, senhor.
- Inácio... Somos xarás, então... - falou, a custo - Meu filho... Você me conhece?
- Não, senhor. Mas o seu rosto não me é estranho. O senhor deve parecer-se com alguém que eu conheça.
- Pois eu... o conheço... Mas... tudo é muito estranho...
- Estranho, senhor? Por que? Dizem que a memória re-duz-se com a idade, mas não é isso que vejo. Da maneira co-mo me olha, parece lembrar-se mais de mim do que eu do senhor. Apenas sinto que seu rosto me é familiar, mas... de onde? Não sei...
-Meu jovem, você reconhece isso?
Inácio virou-se um pouco para o lado, mostrando o encosto do banco, passando a mão na madeira, onde ele e os colegas haviam gravado os nomes de suas amadas. Mas a trave estava intacta. Nada havia gravado. Ainda procurou do outro lado, pensando ter-se confundido.
- O que, senhor?
- Não, nada... - respondeu, desconcertado. Ia inventar uma desculpa, quando um grupo de rapazolas chegou em frente a eles, distraindo a atenção do jovem.
- Oi, Inácio ! Chegou cedo, hoje...
- É... Dia especial... Marilda me telefonou. Vem aí com as irmãs.
Marilda, as irmãs... A insólita situação começava a tomar vulto.
- É hoje, então?
- Quem sabe?... 
O rapaz riu com os amigos, que já se afastavam. Voltou-se para Inácio, que acompanhou-os com o olhar.
- Hoje vou ver se começamos um namoro... Eu e Maril-da, sabe? Uma menina e tanto !
De repente, uma música suave fez-se ouvir. Inácio levou a mão ao bolso e retirou o celular. O visor aceso chamou a atenção do seu xará, que não escondeu a admiração:
- Uma caixinha de música? Com lanterna...
O velho levou-o ao ouvido :
- Inácio, meu amor, estou preocupada ! Onde você está, até essa hora? É perigoso, você sozinho nessa praça deserta...
- A praça não está deserta, Marilda... Está cheia de gente, está linda... Você precisa ver os chafarizes...
Agora era o rapaz, o assustado.
- Senhor, - ele tocou no braço de Inácio, interrompendo o diálogo - o que é isso? O senhor está falando com alguém, ou outra vez fala sozinho? Quem é Marilda? Por que finge falar com a minha... bem... quase namorada?
Inácio afastou o celular do ouvido.
- Isto não é uma caixinha de música, é um telefone... Fa-le... Fale com a Marilda...
- Um telefone? Que brincadeira é essa? - disse o rapaz, tomando o celular de Inácio e levando-o ao ouvido, imitando o seu companheiro de banco.
- Inácio... Alô... Você ainda está aí?
- Quem é você? De onde está falando?
- Quem sou eu?! Marilda, Inácio... O que houve? Você está com a voz diferente...
- Marilda? Onde você está, Marilda?
- Estou em casa, meu bem. Você está bem?
- Estava, até há pouco... Agora, já não sei o que está acontecendo... Você também está com a voz diferente... Não vem mais hoje, aqui na praça? Como você “ligou” para aqui? Ligou... para que número, para me encontrar aqui, no meio da praça?
O desconcertado rapaz não esperou as respostas para tantas perguntas. Devolveu o celular para o seu xará, que tentou continuar a conversa interrompida.
- Marilda, está tudo bem... Eu vou demorar um pouco... Você nem imagina com quem você falou...
- Não foi com você? Fique aí, Inácio. Vou pedir ao Geraldo para ir ter com você...
- Seu Inácio... Quem é Marilda?... 
Inácio fechou o pequeno aparelho e estendeu-o ao ra-paz. Ele tomou-o novamente nas mãos, e examinou-o, entre curioso e perplexo.
- O que é isso? De onde surgiu esse aparelho?
- Eu não saberia como lhe explicar... É um telefone...
- Mas, assim? No meio da rua? E os fios?
- Não insista... É algo muito novo... É um celular. É o nome desse telefone. Algum dia você vai entender tudo.
Inácio teve uma intuição :
- Fique com o celular. Mas não deixe ninguém vê-lo.
- Eu, ficar com ele? Para que? Por que não poderia mostrá-lo a ninguém?
Inácio também estava confuso. O que dizer àquele ra-paz, tão distante do seu tempo, que tinha certeza de que ele mais tarde entenderia tudo o que estava acontecendo?
- Pai ! Está tudo bem? 
Era Geraldo, vindo ainda distante. Quando Inácio o viu, todo aquele cenário mágico começou a anuviar-se. Aos pou-cos, a praça voltava a ser triste e vazia. Ainda via o seu xará, apertando o celular nas mãos, a pergunta presa no olhar.
- Vá agora, Inácio ! Só peço, por favor, que me atenda. Esconda esse telefone num lugar onde ninguém possa encontrá-lo. Não o mostre a ninguém. Talvez ali, na estátua. Não há tempo para lhe explicar. Eu lhe prometo - um dia você há de entender tudo... Deixe o tempo passar... Confie em mim... Agora vá...
Do outro lado da praça, ainda distinguiu três mocinhas que se aproximavam, sorridentes. A emoção quase embarga suas palavras.
- Olhe lá, a sua Marilda vem chegando com as irmãs... Não diga nada a elas...
- Como sabe que é Marilda? O senhor a conhece, também? Quem... é o senhor, seu Inácio? Quem é o senhor?
Desconcertado, o rapaz apertava o celular na palma da mão.
- Conheço, conheço... Mas vá, por favor... Esconda o celular...
- Mas por que?... Por que?
Contrafeito, o rapaz obedeceu ao velho xará. Saiu, lenta-mente, sem olhar para trás. Encaminhou-se para a estátua. Antes que Marilda e as irmãs se aproximassem, escondeu o pequeno aparelho numa das reentrâncias do pedestal. Nin-guém notou o seu gesto, que teve apenas o almirante Taman-daré por testemunha. Ali ninguém acharia o estranho presen-te.
Depois, foi ao encontro da sua Marilda, que com certeza o fez esquecer o insólito episódio. Ela era muito, muito mais importante do que aquele velho e seu estranho telefone. Prin-cipalmente naquela noite. 

Quando Geraldo aproximou-se, viu seu pai curvado, os cotovelos apoiados nos joelhos, as mãos cruzadas, a cabeça baixa. Assustou-se.
- Paizinho, que é que você está fazendo nesse ermo, a essa hora, aqui sozinho?
Inácio levantou a cabeça. Estava sorrindo... Olhou para o filho, depois virou-se de lado e discretamente passou a mão direita sobre o encosto do banco, como que conferindo, sob os dedos, as ranhuras que seu canivete havia esculpido na madeira. Sentado no único banco da pracinha - o seu banco - tinha as faces coradas de felicidade.
- Filho, olhe aqui. Veja o que está escrito...
Geraldo aproximou-se, sentando ao lado do pai.
- Inácio e Marilda... Puxa, pai, há quanto tempo que isso aqui está gravado?
- Há mais de cinqüenta anos, meu filho. No entanto, há pouco, nada havia gravado... Acho que eu nunca lhe contei a história do celular...
- Nada havia gravado? História de celular? Não... Lem-bro-me de uma vez você ter me contado algo sobre um te-lefone, quando você era ainda um rapazola. Mas isso já faz tanto tempo... Era uma história estranha, de um presente que você havia ganho de um velho, se não me engano um xará seu, quando ainda era rapaz,... Mas você na época não soube contar nada direito, nem mesmo que fim levou o tal tele-fone...
- Eu era tão novo... Dezesseis, dezessete anos, talvez...
- Pois é... Quando você tentou contar-me a história - da qual não entendi nada - convenci-me de que os seus famosos devaneios vinham de longe, da adolescência... Era mais um deles, a história do velho, com certeza. Pra falar a verdade, não dei muita bola pra ela.
Inácio riu das palavras do filho. Ele sempre fora mesmo um velho cheio de sonhos e de histórias nostálgicas...
-  Mas agora é diferente, meu filho. Eu sei onde está esse “telefone”... O Tamandaré tomou conta dele para mim nesses últimos cinqüenta anos... Vá até a estátua, por favor, e procu-re, por trás dela, numa daquelas reentrâncias da base...
- O Tamandaré... tomou conta, pai?
Gilberto começou a duvidar da integridade mental do pai. Por que ele teria escondido o celular na estátua? Se aça-bara de falar com sua mãe... Obedeceu, contudo. Era melhor não contrariá-lo. E àquela hora, na pracinha deserta, não há-veria testemunhas para a sua estranha atitude...
Tateando, esquadrinhava as reentrâncias da base de pe-dra e estava prestes a desistir da busca, quando seus dedos to-caram num pequeno objeto. Trouxe-o para fora. Era um celular, realmente, mas não poderia ser o do seu pai, e sim, talvez um idêntico ao dele. O pequeno aparelho estava in-teiramente deteriorado, sujo, descolorido e azinhavrado, co-mo que carcomido por um longo tempo abandonado ao re-lento.
Gilberto levou-o até onde estava seu pai, que continuava sentado no banco, ainda passando os dedos carinhosamente sobre o entalhe na madeira do encosto. Quando viu o apa-relho nas mãos do filho, não conteve as lágrimas.
- Pai, você está chorando?
- De alegria, meu filho... De alegria...
Gilberto estendeu-lhe o celular.
- Achei este celular lá, pai. Como você sabia? Onde está o seu?
Inácio tomou o pequeno objeto nas mãos, com cuidado. Examinou-o demoradamente - uma massa de plástico irre-conhecível - como se fosse a mais cara das jóias.
- O que faz o tempo... Cinqüenta anos...
Fez-se o silêncio.Cinqüenta anos? Gilberto, embora sem nada entender respeitou a muda emoção do pai, que agora a-pertava o pequeno aparelho contra o peito.
- Você trouxe o seu, filho?
Ele não conseguiu falar. Fez apenas um aceno afirmati-vo com a cabeça. Era, também, presa de forte emoção.
- Ligue para sua mãe... Diga a ela que vamos demorar um pouco mais aqui na pracinha... Agora eu tenho certeza que você vai entender toda aquela história que eu não soube contar, quando você era rapaz...  

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