segunda-feira, 20 de setembro de 2010

MERCEDES




Foi vovô que me contou essa história, quando eu era rapaz. É a história dele e de minha avó Mercedes.
Foi numa tarde de inverno, quando fui lhe fazer uma visita, naquele casarão imenso de Botafogo onde ele morava.
Quando entrei, encontrei-o sentado na sua poltrona preferida, em frente à porta de vidro que dava para a varanda, de onde se tinha uma vista maravilhosa para o poente. Vovô estava pensativo, com os olhos perdidos no horizonte. Ele vivia falando de Mercedes. “Morreu muito moça, na flor da idade...”, como dizia. E mais: que “ela era linda, do tipo mignon... Pele muito branca, cabelos negros, cacheados... E os olhos? Que olhos... Ora azuis como duas águas marinhas, ora de cor indefinida, cinzentos talvez, como uma tarde ‘gris’... Mas sempre, sempre transmitindo a intensa alegria de viver que possuía...”
Naquela hora, com certeza Vovô estava mais uma vez pensando em Mercedes. Quando me viu, segurou minha mão e falou:
- Vem cá, senta aqui, meu neto.
Sentei numa cadeira ao seu lado e ele me disse, sem tirar os olhos do poente:
- Crepúsculos nunca mudam...
E comentou comigo mais uma vez, que aquela sala, não era mais a sala dele, que tudo havia mudado... que os móveis, os tapetes, o lustre de cristal Baccarat... tudo tinha desaparecido, não era mais como no tempo dos saraus, quando Mercedes sentava ao piano e executava noturnos de Chopin para seus convidados.
- Só o piano sobrou daquele tempo... – ele disse olhando para trás – Tudo mais mudou... Trocaram os móveis, os tapetes... até o lustre... Tudo, tudo...
E arrematou:
- O piano e o crepúsculo...
Então falei, até puxando um pouquinho por ele:
- O piano, o crepúsculo e... Mercedes, não é, vovô?
Ele ficou calado, como quem hesitasse continuar a conversa. Depois falou:
- Meu neto... você quer ouvir uma história? Só não sei se você vai acreditar nela...
- Mas por que, vovô? Por que eu não acreditaria?
Ele falou:
- Eu nunca contei a ninguém essa história, porque nunca vou poder provar que foi verdade.
Eu fiquei curioso.
- Pois, vovô, eu nunca iria achar que é mentira. Se é você que está contando...
Ele sorriu... Comentou sobre o ruído de louças e talheres que vinha da sala ao lado. Estavam botando a mesa para o jantar. Suspirou fundo, e disse:
- Eu às vezes ficava aqui sentado enquanto preparavam o jantar. Ela se sentava ao piano e me brindava com uma melodia. Enquanto isso, o dia ia se transformando em noite, devagarinho...
Ele se calou por um momento. Parecia ter receio de narrar a sua história... Mas, por fim, começou:

- Foi numa tarde igual a esta, meu neto. Eu estava aqui, admirando o crepúsculo, e aí ao lado estavam também preparando o jantar... como hoje. Mas eu quase não ouvia nada. Estava longe... só pensando em Mercedes, em como ela tinha nos deixado tão cedo... – e repetiu – na flor da idade... Então, foi aí que aconteceu.
E olhou para mim, sério, parece que para ver a minha reação ao suspense que provocou.
Eu perguntei:
- Aconteceu o que, vovô?
Ele continuou sério, e falou:
- De repente, começou a entrar uma brisa suave, pela varanda. Logo depois, comecei a ouvir o tilintar de... pingentes de cristal. Ao mesmo tempo, lentamente, já na penumbra, tudo foi se modificando, nesta sala... Os móveis, os quadros, as cortinas... Olhei para baixo, para meus pés. Minhas chinelas haviam desaparecido. Eu estava calçando sapatos de verniz! Eu pisava num tapete persa, e usava polainas!... Então, olhei para o alto, e revi, agora até sem surpresa, o meu lustre Baccarat, balançando-se no teto...
Depois, examinei minhas mãos: estavam jovens, lisas, com as unhas bem cuidadas... Cofiei meus bigodes, meus bastos bigodes de outras eras... Eu já não tinha bigodes há muito tempo, mas isso não fazia a menor diferença...
Olha... voltei no tempo...
Comecei a ouvir uma melodia vinda do piano atrás de mim, que parecia fazer um... dueto com os pingentes de cristal. Parecia que o próprio Chopin estava sentado na banqueta.
Mas... não, meu neto... eu sabia que era Mercedes que estava ali... No primeiro momento não tive nem coragem de voltar-me para vê-la, tinha medo de quebrar aquele encantamento.
Mas... por fim, virei-me, lentamente.
Era ela... Mercedes estava mais bela do que nunca, na penumbra do crepúsculo... Olhou-me, com aqueles grandes olhos azuis, a cabeleira negra caindo em cascata sobre os ombros, e as mãozinhas de dedos finos e longos dedilhando o teclado. E sorriu... Mas não parou de tocar. Parecia estar me dedicando aquela melodia...
Levantei-me, fui até o piano e apoiei-me nele. Agradeci a ela, com um movimento de cabeça, enquanto ela continuava a tocar.
Enquanto isso eu ouvia, bem longe, ruído de talheres e vozes que falavam baixinho.
Misturavam-se ali tempo e espaço. O que era real? Real, para mim, eram os olhos e o sorriso de Mercedes. E sua música...
Então ouvi a voz de sua irmã, me procurando:
- Vovô... onde está você? É hora de jantar...
Alice vinha entrando na sala.
Imagine... Hora de jantar, hora de caminhar, hora de dormir... Ali não havia mais horas... Era tudo muito mágico, passado e presente se misturavam...
Quando Alice entrou, Mercedes parou de tocar e cruzou as mãos sobre os joelhos, como se respeitasse a chegada da neta. E ela falou:
-Venha, vovô... Sua sopa vai esfriar... Acende a luz, vovô... Está escuro, aqui...
Então, Mercedes levantou-se, deu a volta ao piano e ficou em pé na minha frente... Segurou-me as duas mãos e encostou a cabeça no meu peito...
Ah, meu neto...
Senti seu corpinho encostado ao meu, seu perfume suave, o toque de suas mãozinhas...
Alice continuava insistindo, ao meu lado:
- Vovô... sua sopa...
Eu não tirava os olhos de Mercedes. Falei para Alice:
- Eu não quero a sopa, Alice... Não faz mal que esfrie...
Então, Mercedes apertou mais as minhas mãos, e disse:
- Vá, meu amor... Estão todos te esperando... Eu vou estar sempre ao teu lado... como sempre estive...
Eu lhe respondi:
- Vamos, então? E abracei Alice, enquanto era abraçado por ela.
E seguimos, nós três, para o salão de jantar...


Vovô terminou a sua história, e fez uma longa pausa, que eu respeitei.
Eu tinha degustado cada uma de suas palavras, tinha ouvido o dueto do piano com os cristais, tinha visto minha avó Mercedes na flor da idade, frágil, suave e bela... Tinha ido, abraçado com eles, para o salão de jantar... Mas estava com a voz presa na garganta.
Ele olhou-me, sério... Acho até que um pouco decepcionado com a minha reação, muda. Depois de um tempinho, falou:
- Você não acreditou, não é? Não faz mal... Eu sei que foi verdade...
E voltou-se novamente para o crepúsculo, já agora transformado em quase noite.
Eu me lembro que me levantei, dei a volta e ajoelhei-me em frente a ele. Fiquei olhando aquele velhinho tão puro, tão cheio de amor, fitando-me e sorrindo...
Segurei suas duas mãos e falei:
- Vô, eu não conheci Mercedes. E... acho que não conhecia tão bem você, vovô. Agora, eu conheço...

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