sexta-feira, 5 de agosto de 2011

Negro Lustro


NEGRO  LUSTRO





-Negro lustro!
O quarto sórdido, nauseante, era pequeno para a sua angústia. Revolta. Arrependimento. Lembranças da mulher, dos filhos, da casa, do emprego. Lixo. Tudo atirado ao lixo, em apenas um lustro.
- Negro lustro! Negro lustro!
Palavras de efeito, enfáticas, teatrais, válvulas de escape para a tensão que o engolia como um monstro de mil cabeças, que desfilavam coladas às paredes e ao teto daquele cubículo infecto. Era o limite. Lembrou-se de alguém ter lhe dito, certa vez : “Ninguém carrega um fardo superior às suas forças.” Óbvio, por certo? Não, mentira! O peso da culpa sobre seus ombros parecia afundá-lo no chão, amassá-lo sobre a cama. Era demais, superior às suas forças. Mentira!
Chegou à janela. Confusão de telhados e antenas e caixas d’água não lhe permitiam sequer ver uma nesga do céu. Lá fora ainda estava mais escuro do que aquele quarto mal cheiroso. Noite ou dia? Não sabia.
Voltou-se e caminhou até a porta. Trancou-a. Estava resolvido, iria deixar-se acabar naquele quarto. Atirou-se pesadamente à cama - único móvel existente, além de uma velha cômoda com três gavetas - e de olhos cravados no teto acompanhou o bote mortal que uma lagartixa desferiu em uma distraída mosca.
Soltou sonora gargalhada:
- Não pode haver distração, sua burra!
Sentiu-se como a mosca, à espera do golpe de misericórdia que a vida não tardaria a desfechar sobre ele.
Reviu sua vida. O primeiro desfalque, a sua habilidade: fácil demais. Depois outro e mais outro. Já então não mais poderia agir sozinho. Mais fácil ainda foi envolver-se naquele mundo fascinante, estonteante, mas cheio de calúnias, mentiras, infidelidade e depravação. Bola de neve incontrolável no declive da vida, crescendo, deixando um rastro de lágrimas, destruição e discórdia, até um dia espatifar-se em mil pedaços contra o muro da ambição desmedida. Bola de neve? Bola de lama!
- Negro lustro!
Por que continuava repetindo essa bobagem? Era automático. Por que não dizia : “- Cinco anos de trevas!” ?
Era uma fuga. “Negro lustro” era mais misterioso, mais trágico... Só que de repente, ilustrando aquela figura teatral, veio-lhe à mente, apesar de toda a angústia que o consumia, um crioulo... bem reluzente...

 Riu da própria estupidez. Nervosamente, do riso passou às gargalhadas. Histérico, perguntava-se em voz alta por que ria. E vieram as lágrimas, o choro convulso, incontrolável, que tentou abafar no travesseiro encardido, num esforço supremo para não ouvir a sua dor.
- Ah, se eu tivesse outra chance...- deixou escapar. Sincero, profundamente sincero...

-Está mesmo disposto?
Parecia alguém ao seu lado. Usou o travesseiro para enxugar o rosto e afastou-o dos olhos. Viu um homem sentado aos pés da cama, de pernas cruzadas, segurando o joelho com as mãos.
Sorria.
- Está disposto?
O recém-chegado repetiu a pergunta, como se estivesse dando tempo ao seu anfitrião para que ele pudesse assimilar a sua chegada, um tanto insólita. O outro levantou-se lentamente, foi até a porta e verificou a maça-neta. Continuava fechada.
- Quem é você? Como entrou aqui?
Sentiu, meio envergonhado, que as clássicas perguntas haviam dado à cena um toque de seriado de televisão. Lembrou-se do “negro lustro”, do crioulo reluzente e sentiu novamente nervosa vontade de rir. Ridículo...
O homem não tomou conhecimento de suas palavras. Continuava com um tranquilo sorriso nos lábios.
- Então, está disposto ou não?
Ele nem se lembrava mais a que deveria estar disposto.
- Disposto a que? Quem é você? Como entrou...
Parou a tempo. Era outro seriado da TV.
A resposta veio pela metade:
- A uma nova chance. Você não a queria?
Então era isso. Já não importava como ele teria conseguido entrar. O fato, para si, era patente: seu esconderijo já não era mais seguro.
- Ouça, não sei o que quer de mim. O que lhe devo? Quanto lhe devo? Já me levaram tudo, não tenho mais nada. Chame a polícia, mate-me, acabe com isso! Ou você também tem culpa no cartório? Não pode se arriscar a chamá-la?
- Nada mais lhe importa, então? O seu pedido de uma nova chance foi sincero, isso pode ser estudado.
Ele não sabia onde iria parar aquela conversa. Deitou-se novamente, com o cuidado de não encostar os pés no seu visitante, que continuava sentado na cama. Não sabia o que ele era. Cruzou as mãos sob a nuca. Lá estava a lagartixa aguardando pacientemente outra mosca distraída. Manteve os olhos no teto, com esperança que o outro saísse do quarto da mesma maneira como havia entrado. Não queria saber de nada. Não queria outra chance.
Mas o recém-chegado não se foi.
- Você vinha bem, pela vida... Tranquilamente...
(Quem era aquele homem?)
- ...porém, quando lhe foram apresentados os primeiros testes, você enfiou os pés pelas mãos...
(Testes? Que testes?)
- A vida, sem testes para serem vencidos, não é vida, meu caro.
(Lá vai a lagartixa novamente. Pata ante pata... e o bichinho de nada desconfia... Por que esse cara não vai embora? Pronto, mais um inseto distraído que se foi...)
 - Os seus testes estavam programados para depois dos quarenta anos. Até então sua vida seria amena. Aliás, como na verdade foi, não?
- Mas quem é você, afinal? Que pretende de mim?
Vinha disfarçando com lagartixas e moscas o medo de enfrentar o irreal. O homem lhe falava de testes, prometia coisas incompreensíveis, mas não estava lhe cobrando nada, não parecia ser um de seus comparsas, traidores ou traídos. Seria melhor ouvi-lo.
- De você? Não pretendo nada. Pode haver uma nova chance, só isso. Você é um homem bom. Por isso pode ser possível outra oportunidade.
- Nova chance... Chance para que?
- Para enfrentar os mesmos testes nos quais você falhou.
- Mas de que você está falando?
- Você aceitaria?
Ele sempre respondia as suas perguntas com outra pergunta. Agora enfrentaria o irreal. Irreal?
- Sim.
O outro deixou escapar um suspiro profundo. Ele não poderia ajudar a quem não quisesse ajuda. Agora estava aliviado, missão quase cumprida.
Já mais interessado, o desgraçado perguntou:
- E como seria essa nova chance?
- Vamos ter que dar para trás – cinco anos - e recomeçar de onde você se desviou, enfiando os pés pelas mãos. Você vai estar tão vulnerável quanto antes. Terá todas as facilidades para o primeiro desfalque que lhe desgraçou. Irá depender exclusivamente de você.
Ele ficou olhando para o desconhecido, meio aparvalhado.
- Entendeu ?
Sim, havia entendido. Jamais cairia no mesmo erro!... Mas como se daria a coisa? Ainda hesitava. Quem era aquele homem, afinal?
- Não hesite... Se você não tentar, não saberá se será capaz...
Parecia ler os seus pensamentos.
- O que eu tenho que fazer? Se está tudo destruído...Minha família, meu lar, meu emprego...Como vou enfrentá-los? O que você me propõe?
- Viver...
- Viver? Ora, e o que mais?
- Viver, viver... Confie em mim...
- Pois bem, eu confio. Mas, viver? Não basta querer viver, ora essa. Eu estou no fundo poço e a corda que você me atira é a vida? A vida que estou desprezando ?
- Nada mais posso lhe dizer. Confie em mim...
O pobre coitado estava decepcionado. Esperava mais ajuda, afinal, depois de tantas promessas. Talvez algo mais palpável, mais concreto. Viver... Por certo que se lhe fosse permitido viver, não afundaria mais no lodaçal pela segunda vez. Não senhor! Tinha uma bagagem, agora!
- Você não se lembrará desta minha visita... Irá, simplesmente, em frente, vivendo a sua vida. Não pense que será fácil...
Aquele homem mais parecia um anjo, uma visão, um delírio do que um simples mortal. Era tudo complicado demais. Se o homem era um anjo, ele seria um náufrago a se agarrar até na espuma das ondas para não mais afundar. Viver... Recomeçar, aos quarenta e cinco anos?...
Olhou para o companheiro de quarto. Estava quase na mesma posição que tomara ao chegar. Sorria, sorria sempre. Então, de repente o viu começar a  volatilizar-se, lentamente, ganhando crescente transparência, até desaparecer por completo.
- Como nos filmes... Ora, ora...
Deixou-se ficar deitado. Não estava assustado. Passou a perna esticada, num vai-vem, pelo local onde esteve sentado o etéreo personagem, como numa ingênua confirmação de sua ausência. Olhou novamente para o teto. Lá no alto, continuava a eterna luta pela sobrevivência.
Sentou-se na cama. Apoiou os braços nos joelhos e cruzou as mãos. Examinou-as. Meu Deus! O que haviam feito aquelas mãos! Tanto trabalharam, tantas alegrias produziram e destruíram, em tão pouco tempo! Cinco anos tinham sido suficientes para acabar com a sua vida...
Começaram a voltar, nítidas, as imagens que tanto o angustiavam. Revia seus desregramentos, chorava a sua insensatez. Agora, delirava, até. Por certo, começara a perder a razão, dialogando com misteriosas figuras que se esfumavam na sua frente...
E a sua família, como estaria? Recomeçar... Como, recomeçar? Nova chance?... Viver, com todas as letras maiúsculas, era uma quimera...
Avolumavam-se os pensamentos. Sentiu-se invadido por imensa saudade, uma inexplicável, repentina e quase impossível necessidade de rever os seus queridos. Como estariam, depois de cinco anos?
Vestiu o surrado paletó e saiu. Já não queria continuar naquele quarto imundo. Precisava fazer alguma coisa, embora não soubesse exatamente o que. Como um robô, dirigiu-se à sua casa. Para que? Recomeçar, como a transcendental figura lhe sugerira? Não, jamais. Impossível... Iria até lá, mas permaneceria distante. Quem sabe poderia vê-los, apenas de longe? Não teria coragem de encará-los frente a frente, nunca mais...

Chegou em casa.
Entrou. Um abraço carinhoso o recebeu. Era um bálsamo, após um dia de trabalho.
- Que bom, querido, você ter chegado mais cedo do banco...
- Por que? Algo especial, hoje?
Sua mulher sorria, um sorriso maroto.
- Hoje é dia de festa...
Ele beijou-lhe a testa, enquanto punha o jornal sobre a mesa.
- Dia de festa? E posso saber o motivo?
- Meu bem... Todos os anos você esquece... Feliz aniversário, querido. Quarenta anos! A vida começa aos quarenta, não é o que se diz?
Quarenta anos! Ele abraçou-a fortemente... Não saberia explicar por que, mas parecia-lhe ter mais idade. Pelo menos mais cinco anos... Por que seria?
Logo seus filhos vieram correndo para também abraçá-lo. Como era feliz, com sua família, sua casa, seu emprego...
Sentia que nada, mas nada mesmo, poderia abalar a sua felicidade...