quinta-feira, 15 de março de 2012

O ANTIGO DONO

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O  ANTIGO  DONO
Janeiro 1985
 



-Olhe, Edú!
Era um Packard 1937 que passava, reluzente como novo.
- Que beleza! Parece saído da fábrica... Você sabe que eu tenho um desses?
- Você? Um Packard?
- Não, não um Packard. É um Chevrolet, 1953. Uma dessas raridades, eu quis dizer. O meu rodou menos de dez mil milhas, até hoje. Foi um dia colocado sobre cavaletes de onde só saiu trinta anos depois, para minhas mãos.
- Não me diga! Como você conseguiu esse tesouro?
- Ganhei.
- Ganhou mesmo? De presente? Quem anda por aí dando carros de presente?
- Foi um amigo meu. Quer ver o carro? Vamos até lá em casa.
Deixaram o chopinho sem terminar e saíram. Em poucos minutos estavam na casa de Edú.
Ele morava sozinho naquele subúrbio há muitos anos, mais da metade de sua vida. Casara-se cedo e logo enviuvara, sem filhos. O amor pela mulher fez com que não tentasse recompor sua vida a dois, preferindo permanecer na calma solidão da casinha modesta.
- Vamos continuar aqui? - Edú estendia ao amigo um copo de cerveja recém aberta, enquanto levava-o para a garagem.
- Olhe aí o bichão. Não vá lhe cair o queixo...
Por pouco não caía mesmo. Era realmente uma maravilha. Augusto nunca tinha visto nada igual. A pintura, negra, refletia tudo como um espelho, os cromados reluziam. Vidros “ray-ban”, pneus banda branca ainda originais, "power glide". Tudo como saído de fábrica. E o interior? Forração e teto de casimira, tapetes também originais. Apenas uma pequenina mancha escura no assento traseiro, menor que uma moeda, chamou a atenção de Augusto. Mas mesmo aquela mancha seria imperceptível, não fosse todo o resto impecavelmente conservado.
- Edú, puxa... superou as minhas expectativas! Então, um amigo lhe deu? Não acredito. Deve ser um amigo do peito. Que diabos você fez para merecer este presente?
- Nada. Não fiz nada. E nem o amigo é tão “do peito”assim. Na verdade eu nem conheci o antigo dono. Pensando bem, se fiz alguma coisa por ele foi depois que ganhei o carro.
- Depois?
- Há uma história. Quer ouvi-la?
- Claro que quero. Pelo jeito, deve ser uma história e tanto. Vem cá, não tem uma outra cervejinha?
Edú retornou à cozinha. Já com outra garrafa na mão, sentou-se ao volante. Augusto sentou-se ao seu lado.
- Sabe, eu sempre gostei de carros antigos, mas nunca pensei que teria um destes algum dia. Achava-os muito volumosos para um “hobby”, e se fosse dado a coleções na certa iria preferir os chaveiros. Mas frequentava as reuniões do “Veteran Car”, e foi justamente num desses encontros, em conversa com outros aficionados que fiquei sabendo da existência deste Chevrolet, trancado num fundo de quintal, sobre cavaletes e intocável, numa rua do Encantado. Até o nome do bairro parecia se referir ao carro...
Resolvi ir vê-lo. Quando cheguei em frente à casa, uma placa parecia querer me expulsar dali. Dizia: “O carro não está à venda.” E isso apesar da garagem ser fechada e da rua não se ver nenhum carro. Pensei em voltar dali mesmo, respeitando a intimidade de quem parecia prezá-la tanto. Mas naquela hora vinha saindo da casa um rapaz, e não resisti à curiosidade de ver o automóvel. Abordei-o:
- Curiosa esta placa. Geralmente servem para vender automóveis e não para escondê-los...
Ele sorriu.
- Pois é. Tivemos que fazer isso. Não tínhamos mais sossego, desde que se espalhou a notícia da existência do carro.
- É, eu sei o tesouro que você tem ali dentro. Escute... não poderia abrir uma exceção? Eu não quero comprá-lo, apenas vê-lo...
Foi assim que conheci o Chevrolet. Voltei lá outras vezes, fiquei amigo do rapaz. Gilberto era o seu nome. Conheci suas duas irmãs, sua mãe, e com o tempo fiquei um tanto íntimo da família, embora fosse uma intimidade relativa, com limites claros, que não passavam da sala e de alguns poucos assuntos.
Eu sentia que havia algum mistério envolvendo aquela família. Havia um quarto, sempre fechado, onde de vez em quando alguém entrava e saía em silêncio. Um dia, ouvi um pigarrear discreto,vindo lá de dentro.
- É meu pai - disse Gilberto, e baixou os olhos. Nada perguntei, não tinha liberdade para fazê-lo.
Minhas visitas continuaram, espaçadas. Eu respeitava o segredo da família e era querido por isso. Um dia, tempos depois, recebi um telefonema de Gilberto. Pedia que eu lhes fosse fazer uma visita. Estranhei. Ele nunca me havia telefonado, pois sempre partia de mim a iniciativa de procurá-lo. Apressei em atender o convite, estava curioso. O que teria havido que justificasse aquela atitude?
Encontrei a casa com as janelas abertas, como nunca tinha visto antes. Bati na porta e enquanto aguardava ouvi vozes e até mesmo risos. Senti que fui recebido, senão com alegria, ao menos sem a tensão a que já estava habituado. Da sala percebi que o quarto misterioso estava aberto, arejado e vazio.
A conversa girava sobre o trivial, quando, aproveitando uma pausa um pouco mais prolongada, Gilberto disse:
- Sabe, Edú, meu pai morreu.
Eu esboçava as minhas condolências, mas ele atalhou-me, como que para cortar-me a intenção.
- Estivemos conversando e resolvemos lhe dar o Chevrolet.
Ele passou da morte do pai para a doação do carro tão repentinamente e com tamanha naturalidade que não tive mais como transmitir os meus pêsames. Continuei com o assunto do carro, que estava parecendo o mais importante.
- Não faça isso, Gilberto. Esse carro vale uma pequena fortuna. Não posso aceitá-lo. Posso, isto sim, encarregar-me de vendê-lo para vocês, pois não faltarão colecionadores dispostos a pagar um bom preço por ele.
- Não, não poderíamos vendê-lo. Sabe, era do papai. Desde que...
Olhou para a mãe, como se estivesse já começando a falar demais. Não recebeu, entretanto, o aval para continuar o assunto.
- Enfim, agora ele morreu... Edú, o velho queria que o carro fosse seu. Mais de uma vez  nos disse isso.
Fiquei sabendo, então, que o velho me conhecia melhor do que eu pensava. Para surpresa minha, queria mesmo que o carro viesse para minhas mãos. Tinha certeza de que eu jamais o venderia e que continuaria cuidando dele como Gilberto o fazia. Não pude mais recusar. Mas aguçou-se mais a minha curiosidade. Havia algo que eu não estava conseguindo captar.
Dias depois trouxe o Chevrolet, e cuido dele talvez até mais do que cuidava Gilberto. Ele tinha a tarefa como obrigação, enquanto eu a faço com prazer. Pouco tempo depois retornei à casa de Gilberto, para continuar tão boa amizade. Mas eles haviam se mudado, não deixando com nenhum dos vizinhos o novo endereço, como se estivessem querendo apagar todas as lembranças de uma fase desagradável de suas vidas. Talvez nessas lembranças me incluíssem, a mim e ao Chevrolet.
Edú fez uma pausa, que Augusto respeitou.
- Pois é, Augusto. Foi assim que me tornei dono desta raridade - disse Edú, batendo com as duas mãos no volante.
- Puxa, que história...
- É... Mas agora vem a segunda parte.
Edú não sabia se deveria ou não continuar a narrativa. Até ali havia narrado fatos; mas a história agora passaria a ser muito subjetiva, aceitável ou não.
- Vamos dar uma volta?
Edú já colocava a chave na ignição, certo de que o amigo não rejeitaria o convite. Ligou o silencioso seis cilindros sem problemas, como se estivesse num zero quilômetro. Logo estavam rolando pelas ruas do bairro, em direção aos subúrbios mais distantes, para onde ele se dirigia sempre.
- Gosto de passear por estes lados. As ruas por aqui ainda são calmas.
- Mas que conforto, Edú! Ele é realmente uma beleza... Mas, e o resto da história?
- Pois é, Augusto. Como já lhe disse, eu vinha, e venho até hoje sempre dar as minhas voltas por aqui. Um dia, num dos meus passeios, tive a sensação de que não estava só. Sabe como é? Como se alguém estivesse aí sentado onde você está. Era uma sensação tão forte que chegou a me incomodar. Mais de uma vez olhei para o lado, certo que veria alguém. É claro, nunca vi ninguém.
Augusto remexeu-se no assento, incomodado.
- E então?
- Mais ainda : senti que estava sendo conduzido, de alguma forma, a um local determinado. Não me pergunte como. Entrava em uma rua, virava em outra, à esquerda, à direita...tudo como um autômato. Quando percebi o que estava acontecendo, não opus resistência. Deixei-me levar pela curiosidade, afinal nada havia a temer. Então, certa hora “mandaram-me” estacionar o carro.
Edú encostou o carro no meio-fio e desligou o motor. Virou-se para o amigo, estendendo o braço por trás do encosto, dizendo :
- Bem aqui, em frente a esta casa.
- Sério? De quem é essa casa?
- Na época eu não sabia. Carro parado, continuava a sensação de não estar só. Queria ver o que poderia acontecer e resolvi esperar, embora sem saber nem o que estava esperando.
Mais uma pausa. Augusto começou a sentir-se meio desconfortável, no lugar do “outro”.
- Vamos, o que aconteceu?
- Calma... Depois de cerca de meia hora, vi ali naquela varanda um senhor e um jovem saindo da casa, que depois vim a saber serem pai e filho. O senhor, em uma cadeira de rodas, era conduzido pelo rapaz.
Quando ele deu com os olhos no carro não conseguiu dissimular o susto, embora a paralisia lhe embotasse a expressão facial. Não se mexia, e falava com dificuldade. Ouvi quando o rapaz lhe perguntou: “O que foi, pai?”. Ele lhe respondeu alguma coisa em voz baixa, que não consegui ouvir, e ato contínuo também o rapaz olhou para o carro. O meu Chevrolet havia despertado qualquer lembrança, não havia dúvida.
Resolvi saltar, a pretexto de pedir uma informação qualquer, e aproximei-me de ambos. Perguntei pela rua Gastão Taveira, que sabia ser ali perto. O rapaz deu-me a informação correta e agradeci, esperando que ele aproveitasse a situação criada por mim para falar qualquer coisa sobre o carro. Assim ele fez.
“Bonito carro, o seu” - disse. Respondi algo que não me lembro agora. Percebi que o pai do rapaz dizia algo, quase num sussurro. “É ele, eu sei que é ele...”. O olhar, mantinha-o preso no Chevrolet. Perguntei:
- Como, senhor?
O rapaz tomou-lhe a frente:
- Foi um carro, senhor, e muito parecido com o seu, que deixou meu pai nesta cadeira de rodas para o resto da vida. Por isso, achou que estava novamente à frente do atropelador.
O pai continuou, com dificuldade:
- Uma mancha... uma manchinha no banco de trás...é o meu sangue... Ele ainda levou-me para o hospital, culpando-se todo o tempo, desesperado, desnorteado... Pobre homem, estava fora de si... Jamais soube da verdade... Como ninguém jamais soube... ninguém...
- Verdade, pai? Mas que verdade? De que o senhor está falando?
- Meu filho, eu havia preparado tudo, naquele dia... Fiz com que tudo parecesse ser um acidente, para que jogassem sobre o pobre homem toda a culpa pela minha morte, com medo de descobrirem a minha fraqueza... Mas eu queria morrer... Eu queria acabar com a vida, mas não consegui...
- Suicídio? Não é possível, pai!
O rapaz estava perplexo.
- Sim, suicídio... Mas... quase nada sofri... Apenas um filete de sangue manchou os meus lábios, gravando, no tecido, a prova da minha covardia em enfrentar a vida...
O rapaz olhou para mim. Acenei afirmativamente com a cabeça. Você pode imaginar como eu também estava me sentindo.
- Sim, posso. Talvez como eu mesmo me sinto agora - Augusto voltou a cabeça, procurando a pequena mancha na casimira - E então, o que houve depois?
- O pobre homem continuou a falar. Sabia que o remorso, que lhe doía por dentro, era o causador da sua paralisia, e não o atropelamento que provocou. Nunca tivera coragem para narrar a sua história até aquele momento. O impacto causado pela visão daquela máquina quase mortífera havia libertado a sua mente de trinta anos de prisão. Contou como havia sido socorrido pelo dono do carro, também aquele em estado de choque, repetindo monotonamente que ele havia sido o culpado; e como, deitado no ban-co traseiro a tudo ouvia, impotente, paralisado. Arrematou, dizendo que nunca mais tivera notícias do pobre motorista. Eu silenciei, para não lhe aumentar ainda mais o sofrimento. Mas sabia, agora, o segredo daquele quarto sempre fechado, daquela outra família que também sofreu, embora sem culpa, anos e mais anos, em silêncio...
Edú estava de cabeça baixa, olhando para o painel do Chevrolet. Ele próprio nunca havia contado a ninguém aquela história. Endireitou-se no assento, como para espantar as tristes recordações, e continuou:
- Sabe, Augusto, durante toda a conversa com os dois, pai e filho, permaneci com a sensação de estar acompanhado, de sermos quatro e não apenas três naquela calçada. Havíamos provocado um silêncio desagradável e não estávamos sabendo continuar o assunto, tantas eram as surpresas, de ambas as partes. Por fim os olhos do senhor, a muito custo, acharam os meus: “Procure o antigo dono, por favor... Diga-lhe a verdade, eu preciso libertá-lo da culpa, que nunca existiu... Ele deve estar sofrendo muito...”. Prometi-lhe que faria aquilo, embora sabendo ser impossível. Afastaram-se os dois, pai e filho. Entrei no carro e dei a partida, lentamente tomando o caminho de casa. Na volta, enquanto reme-morava as palavras do pobre homem, lembrei-me do outro, do antigo dono. Foi quando dei conta de que acabara aquela sensação de sentir-me acompanhada. Não havia mais ninguém ao meu lado.
Quem havia me levado até aquela rua, também se libertara...
- Edú... Você não tem só um tesouro e uma história... É muito mais que isso...
- É verdade...