terça-feira, 14 de setembro de 2010

O COFRE

Direitos autorais garantidos

Não que eu seja insensível.
Não; recebi a carta com frieza, mas tinha os meus motivos. Uma frieza bem compreensível. Afinal, há vinte e cinco anos eu não via o Vovô! E dos vinte anos que passamos juntos, as lembranças que ele me deixou não foram nada agradáveis. Vovô sempre fora prepotente e autoritário e mantinha toda a fazenda debaixo do seu tacão. Era um homem intransigente, sua palavra era lei no seu território. Não era propriamente temido, pois jamais fizera mal a alguém e a fama de sua honestidade corria por aquelas plagas. Mas era frio e insensível, tinha gelo nas veias. Se não era temido, sua figura, entretanto, impunha respeito. Alto, muito magro, faces encovadas, sempre de botas que subiam até os joelhos e um jingoto na mão, era o senhor absoluto daquelas terras.
Já a Vovó não, era meiga e carinhosa, sempre preocupada em desfazer os rastros da passagem do velho coronel. Talvez por isso tenha-se ido tão antes dele e  me deixado tantas saudades.
Eusébio mandou-me a carta relatando, na sua linguagem simples, a maneira como Vovô morrera.
Infarto, e fulminante. Quando debruçou sobre a crina do cavalo, já estava morto. “E com oitenta e cinco anos,”- contou ele - “nem foi ao chão. O animal trouxe-o de volta, direitinho. Era de ver.”
Dobrei a carta e guardei-a no envelope. Por que haveria eu de sofrer pela sua perda? Não me lembrava de ter-me ele proporcionado um momento de alegria sequer. Acho até que eu tinha medo dele. Um medo infantil, medo de sua figura imponente e sisuda, que nunca sorria para ninguém e que jamais comentava algo que não fosse providências a tomar ou trabalhos a fazer.
Mas, pobre Vovô! Dava-me a impressão que ele não saberia ser afável, ainda que quisesse. Jamais aprendera a elogiar um serviço bem feito ou uma atitude cor-reta tomada por um serviçal. Eu e Vovó nunca escapávamos da mira de seu olhar penetrante e de seu cenho sempre carregado. Com o tempo, o medo que eu sentia na sua presença foi sendo substituído por um profundo sentimento de pena, à medida que me ia fazendo adulto. Era triste vê-lo, sozinho, sentado em sua cadeira de vime na varanda do casarão, mirando o infinito no sol nascente coado pelas mangueiras em floração. Era triste constatar que nem nesse momento mágico do dia ele se deixava envolver pelo amor e pelo carinho que tentávamos lhe passar. Dava a impressão que se sentia na obrigação de ser duro e inflexível, ainda que contra, talvez, a sua própria vontade.
Por isso, quando Vovó se foi - bem nova, ainda - roída pela tristeza e consumida pelo abandono em que vivia, também eu resolvi deixá-lo. Não tive forças para sacudir aquele homem e extrair do seu olhar todo o fel que carregava.
Na verdade, eles não eram meus avós. Nunca tiveram filhos e que eu saiba, nem parentes próximos ou distantes. Eram sozinhos no mundo, eles e a fazenda. Vovó adotou-me, depois que também eu, cedo, cedo, fiquei sem ninguém. Vovô apenas concordou com a minha presença, num raro gesto de compreensão para minorar a solidão que impunha à mulher. Ela, então, transferira para mim todo o amor que tinha represado. Amor de vó, não de mãe. Amor despreocupado das necessidades de impor limites aos filhos, do rigor que às vezes é preciso que eles reconheçam nos pais.

Por tudo isso foi que recebi a carta com frieza.
Passei, como único herdeiro, a ser dono daquelas terras, daquela enorme fazenda, bonita e fértil, mas estacionada no tempo. Produzia o mínimo para não sucumbir, nas mãos de Eusébio, que era quem, já há muito tempo veladamente manobrava o timão. Vovô jamais teria admitido e nem Eusébio teria feito questão de ser reconhecido como o verdadeiro “coronel”, mas na verdade já nada se fazia na fazenda sem o seu aval.
Vinte e cinco anos depois - uma vida ! - e eu voltava à fazenda. Já a visão da velha porteira, ao longe, acelerou-me as batidas do coração. Pensei que Vovô pode-ria bem ainda estar ali, montado em seu cavalo, perguntando-se quem estaria chegando naquele carro reluzente, jamais imaginando que seu neto voltaria um dia. Na verdade, quando cruzei a cancela de madeira cheguei a sentir a sua presença, tão impregnado estava aquele sítio por tantos e tantos anos de comando.
Conduzi o carro pela aléia de dentes-de-leão, até a sede da  fazenda, a  casa-grande,  no  fim  da florida estradinha. Mas não parei em frente a ela. Contornei-a pela direita, estacionando atrás, perto do pátio de café e bem em frente à cozinha, de cuja porta dominava-se todo o terreiro, do alto de uma bonita escada em cantaria. Era o lugar onde sabia que encontraria Quitéria. Eusébio também estaria por ali, talvez na cocheira ou na estrebaria. Talvez nada houvesse mudado. Afinal, haviam-se passado “apenas” vinte e cinco anos...
Não errei. Eusébio veio correndo a me receber. Tinha lágrimas nos olhos e um largo sorriso iluminando-lhe o rosto de pele carcomida pelo sol. Era da minha idade. Lembrei-me de nós dois, moleques, brincando naqueles campos. Mas, na lida da roça o tempo maltrata mais as pessoas. Sentia-me, no mínimo, como seu irmão caçula. Éramos ali dois velhos companheiros que se uniam num abraço antigo, chorando como crianças.
Vi Quitéria assomar à porta da cozinha e começar a descer a escadaria, lentamente, degrau por degrau. Talvez com medo de que suas pernas, trêmulas de emoção, a traíssem. Um tanto gorda, torso na cabeça e um avental muito branco sobre o longo vestido que lhe descia até as canelas, parecia uma figura dos tempos da colônia, ou de uma gravura de Debret. Juntou-se a nós. Ficamos os três unidos pelo amor e pela saudade da separação, enquanto os outros agregados aos poucos se aproximavam sem entender aquela cena de carinho, jamais vista nos tempos do “coronel”...
Olhei para o alto da escada. Podia jurar ter visto a Vovó encostada no umbral da porta da cozinha, de braços cruzados, sorrindo para nós três...
Quitéria puxou-nos lá para cima. Era o seu reduto. E entre um café quentinho e uma broa de milho gastamos o tempo em recordações.
Não éramos mais patrão e empregados e sim uma família, três irmãos que naquele momento não percebiam que estavam selando uma união definitiva. Eram boas, as lembranças, apesar do Vovô, da sua presença constante, da atmosfera pesada de comando que ainda se podia sentir no ar.
Eu realmente detectava sua presença, não era força de expressão. Era uma presença quase viva, atuante, parecendo-me que a qualquer momento eu iria ouvir sua voz.
Mas havia algo diferente. Eu o sentia triste e cabisbaixo, como se observasse timidamente aquela nossa explosão de alegria, sem a sua orgulhosa pose de outros tempos. Era tão forte a sensação que em dado momento cheguei a virar-me, julgando que iria vê-lo. Mas não havia ninguém.
Então, nesse momento, ecoou uma voz dentro de mim. Não me vinha pelos ouvidos, apenas tocava a minha sensibilidade. Era a sua voz. Grave, pausada, idêntica à que eu tanto conhecia, porém sem a altivez de outrora. Disse-me, e senti que o fazia gentilmente, mas com grande esforço, apenas estas palavras: “Abra o cofre”.
Abra o cofre! Aquelas palavras soaram tão nítidas dentro de mim, que de inopino perguntei em voz alta: “Que cofre?” Um tanto sem jeito, tentei recolher minhas palavras quando as vi soltas no ar, mas já era tarde. Eusébio e Quitéria, ao mesmo tempo perguntaram-me a que eu estava me referindo. Não tive como dissimular o meu susto, que foi grande, e relatei-lhes o que ocorrera, já prevendo os conselhos quanto ao descanso necessário para atenuar a forte emoção do reencontro e seus efeitos.
Mas não, em vez de conselhos ouvi de Quitéria:
- É, ele está sempre aqui.
Quer dizer então que as minhas sensações, que culminavam com a voz do Vovô dando a sua última ordem, não eram infundadas? Vovô ainda caminhava por aqueles sítios pelos quais zelara por tanto tempo? E Vovó? Será que eu a havia visto também, no topo da escada da cozinha?
Quitéria pareceu ler os meus pensamentos:
- Só a Vozinha, que nunca mais veio. Mas o “coronel” de vez em quando fala com a gente. Ou melhor, tenta falar, porque a gente nunca entende o que ele quer dizer. Ele está muito mudado...
A mudança de rumo da conversa aguçou a minha curiosidade. Mas nem Eusébio nem Quitéria tinham muito mais o que acrescentar além de sentirem quanto ao Vovô, a mesma impressão que senti: ele não seria mais o mesmo homem arrogante e senhor das terras.
Parecia estar, acima de tudo, triste, muito triste. E um tanto humilde, se é que se poderia imaginar o poderoso mandatário vestindo a capa da humildade.
- Mas ele nunca nos falou de nenhum cofre.
De repente Eusébio retomava o assunto interrompido.
Eu me lembrava do cofre. Aquele anãozinho de aço sempre exercera sobre mim um grande fascínio. Proibimo-nos de nos aproximar dele, e não era Vovô que nos impunha, ao menos diretamente, esse procedimento. Mas bastava o seu olhar, quando nos aproximávamos do cofre, para que nos escondêssemos e ficássemos de longe, imaginando os tesouros que ele devia manusear. Vovô passava horas sentado em frente daquele bloco de ferro, de costas para a porta do escritório, de maneira que nunca víamos o que ele estava fazendo. Nem Vovó se atrevia a entrar na sala naquela hora.
E agora, de repente, vinha aquela ordem. Etérea, sutil, mas sempre uma ordem: “Abra o cofre”. Abri-lo, como? Ele levara o segredo daquela fascinante rodinha numerada da minha infância para o túmulo e agora mandava-me abrir o cofre. Não saberia nem como fazê-lo. Além do mais, que poderia ter sido guardado ali dentro? Velhos documentos, papéis sem maior interesse e talvez alguns maços de notas aos quais o tempo se encarregara de subtrair o valor. Não, eu não abriria o cofre. Mesmo porque talvez nem conseguisse mover com facilidade um só centímetro os seus quase duzentos quilos.
Caiu e se fez alta a noite, até que a horas tantas o sono começou a nos vencer. Quitéria e Eusébio desejaram-me um bom descanso, o qual lhes retribuí. Ela havia arrumado o meu antigo quarto, e mais uma vez fui presa de forte emoção. Revi silenciosamente todos os seus detalhes, as grossas paredes e as janelas de doze vidros. Doze vidros em cada folha da guilhotina, trinta e três tábuas no forro do teto, que tanto haviam me ajudado a vencer o medo das noites, sempre muito escuras e com todos os sons característicos do mato próximo, antes que o sono tomasse conta de mim. Eu ficava contando-as e recontando-as, sob a luz de uma lamparina, até quando fechava os olhos. Agora, já deitado, mais uma vez conferi o meu sonífero: trinta e três...

Foi nesta primeira noite na fazenda, entretido com as taboas do teto, que a idéia do hotel começou a tomar vulto. Era um antigo sonho meu, até então inatingível, mas como que num passe de mágica e graças ao Vovô poderia, quem sabe, tornar-se real. Um hotel, por que não? Tantos quartos tinha aquele casarão! Seriam poucas as reformas. E eu tinha Eusébio e Quitéria, que conheciam a fazenda como ninguém.
Na minha excitação pela lembrança, deixei escapar em voz alta:
- E então, Vovô, que tal a idéia?
Era uma brincadeira, fruto da minha alegria só de pensar em de tornar-me um hoteleiro, embora invadindo os bens do patriarca. Talvez fosse um velado pedido de permissão...
Desta vez eu estava sozinho e não vi nem ouvi nada, mas imediatamente vieram-me à lembrança as palavras do velho coronel: “Abra o cofre”... Contei nova-mente as tábuas do teto e apaguei a luz, enquanto decidia-me a abrir o cofre, de algum jeito.
Na manhã seguinte, depois do café e de expor as minhas idéias aos futuros sócios, que acataram a minha lembrança com entusiasmo, fui à sala que servira de escritório a Vovô, a ver o cofre. Lá estava ele, semiescondido pelo pesado reposteiro, no mesmo exato lugar onde o havia visto pela última vez, há vinte e cinco anos atrás.
Aproximei-me. Já não me transmitia o medo e o mistério de outros tempos, embora continuasse cerrado à minha curiosidade. Que, diga-se de passagem, era nenhuma, então. Podia imaginar perfeitamente o que haveria lá dentro. Por que, então, o empenho em abri-lo? Não sei. Talvez porque continuasse a sentir constante-mente a presença do Vovô como que me cobrando tal providência.
Girei aleatoriamente o segredo para a direita, para a esquerda. Funcionava perfeitamente, mas obviamente não abri a pesada portinhola. Tentei movê-lo do lugar, não consegui. Desafiava-me, o anãozinho de um olho só. Sorri, quando lembrei-me que aquela caixa de aço já me havia inspirado medo e respeito...
Eusébio entrou na sala. Pedi-lhe sugestões para abri-lo, não tinha. Aliás, deu-me outra. Que mantivéssemos o cofre fechado e arranjássemos uma maneira de transportá-lo para a sala principal onde seria a recepção do nosso hotel e o usássemos na decoração, em memória ao Vovô. Aceitei de imediato a idéia. Seria a primeira providência para transformarmos a velha fazenda em um belo e aconchegante hotel de repouso. Eusébio saiu e voltou com um carrinho de mão reforçado e dois fortes peões escolhidos a dedo. O carrinho foi colocado inclinado ao pé do cofre, que com um galeio tombou de lado dentro da caçamba. Agora, era força para transportá-lo.
Foi então que apareceram, no fundo do cofre, protegidas pela quase impossibilidade de serem movidas suas quase duas centenas de quilos de aço, pintadas em meio à sujeira de pelo menos vinte e cinco anos, cinco dezenas entremeadas pelas letras “D”e “E”. Era a chave, com certeza, que desvendaria o segredo do cofre - se é que havia algum.
Fizemos com que ele fosse transportado para o seu novo local, escolhido com carinho. Dispensados os ajudantes, iniciei a operação para a abertura. Não foi sem emoção que girei o olho de metal, alternadamente para a direita e para a esquerda, obedecendo à senha escondida por tanto tempo. Pouco depois, a um leve toque da maçaneta, a porta abriu-se suavemente, como se houvesse sido fechada no dia anterior.
A minha previsão confirmou-se quase que completamente. Dentro do cofre nada havia além de algumas certidões, a escritura da fazenda e maços de notas amarrados com barbante, que nada mais valiam... Mas as palavras do vovô continuavam martelando-me o cérebro: “Abra o cofre”.
Por que? Não poderia haver tanta insistência para que eu encontrasse apenas um monte de papéis velhos. Abaixei-me, passando a mão por todo o seu interior, mas nada mais havia. Com certa frustração já ia voltando a fechá-lo, quando percebi uma pequena gaveta, sem chave, embaixo das duas prateleiras. Abri-a, sem esforço. Deparei com um caderno de capa preta, surrado pelo manuseio e de folhas amarelecidas. Tomei-o nas mãos, com respeito, prevendo que ali estaria o motivo de tanta insistência para que eu abrisse o cofre. Seria para revelar aquele caderno, com certeza.
Abri-o. Na primeira página estava escrito, em letras caprichadas: “Notas”. Folheei-o, detendo-me, ao acaso, em uma página. O caderno estava todo escrito à mão, e eu bem conhecia aquela letra.
Li-a, com espanto. Li depois outra e mais outra. Todas do mesmo teor. Olhei para Eusébio, que não decifrou o meu olhar, mas percebeu a forte emoção que me dominava. Aguardava impaciente algum comentário meu.
O caderno era como que um diário do Vovô. Mas não era um diário comum. Ele relatava em suas páginas episódios aparentemente sem importância, acontecidos em dias e situações as mais diversas da rotina da fazenda.
Mas... cada palavra, cada frase era um hino de amor... Amor à vida, à sua "querida Vovó", que era como se referia a ela em seus manuscritos e ao seu "adorado neto"... Falava com extremo carinho sobre Quitéria e Eusébio, sobre seus empregados e até mesmo quando se referia aos animais e às plantas...
Eu não acreditava no que lia: “Hoje surpreendi meu querido netinho tentando ordenhar a Mimosa. O peralta amarrou-lhe as patas traseiras, como vê fazerem os peões. Mas amarrou-as com uma... tira de barbante. Quanta inocência!” E queixava-se ao livro, como quem se queixasse a um confidente: “Meu Deus, por que não o abracei e o trouxe ao colo, ao invés de deixá-lo fugir medroso e assustado por uma possível reprimenda?”
Lágrimas desciam-me pelas faces. Eu estava estarrecido. Estendi o caderno a Eusébio, sem uma palavra. Ele não saberia responder à pergunta que ficou crivada no meu peito:
- Meu Deus, quem era o Vovô?
Eusébio tomou-me o caderno das mãos, ávido por conhecer o que me havia alterado tanto. Começou a ler uma página, aberta também ao acaso, em silêncio, mas logo alteou a voz para dividir comigo o espanto por que foi tomado:
“Como é lindo este início de primavera! Eu deveria estar colhendo as primeiras flores para a minha amada, minha pobre esposa! Ah, minha adorada, como a faço sofrer! Mas... eu não sei como se ama, não consigo dividir com você as alegrias que me estão presas no peito... Apenas neste caderno frio e sem alma encontro um companheiro que me entende. O que fiz, meu Deus, para merecer esta carapaça de carne, que aprisiona meus sentimentos e me faz espalhar tanto sofrimento? Algum dia saberei?”
Eusébio, presa de profunda emoção, quase não conseguiu terminar a leitura. Que terrível mistério por tanto tempo escondeu aquele cofre, que estranho segredo, maior ainda, havia escravizado o pobre homem durante toda a sua vida?
Estávamos sentados no sofá, ao lado do cofre, que com sua pesada porta escancarada parecia ter-se livrado de um peso talvez maior que o seu próprio. O diário do Vovô pendia, aberto, das mãos de Eusébio. Mesmo que quiséssemos não conseguiríamos ler nem mais uma só página. Já nos bastavam os trechos lidos para que alterássemos todos os conceitos que tínhamos sobre o velho coronel. Mantínhamo-nos mudos, de olhos perdidos nas centenárias mangueiras do jardim, emolduradas pelas portas da espaçosa sala.
Eusébio pos fim ao silêncio:
- Onde há de estar o Coronel, agora que revelou-nos o seu segredo? Não sinto mais a sua presença...
Fez uma longa pausa, respeitada por mim. Por fim, continuou:
- Revelou-nos o seu segredo, mas deixou-nos um mistério...
Eusébio tinha razão.
A sala, àquela hora da manhã, estava inundada pelos raios do sol nascente, que entravam pelas portas à nossa frente. Uma leve brisa trazia o perfume das mangueiras em flor.
O ar estava leve.
Imaginei o casal de velhinhos, quem sabe agora de mãos dadas, descendo o degrau para a ensolarada varanda e dali para a confortável sombra das majestosas mangueiras. Cheguei a vê-los em uma das tantas cenas descritas naquele diário, abraçando-se com amor e carinho, seguindo juntos, começando uma nova vida, livres agora de suas carapaças de carne...
Eu os vi? Não sei...
Mas eles por certo estavam ali na porta, recebendo no rosto toda aquela luz, numa visão tão maravilhosa que há de me acompanhar até o resto de meus dias...
Quitéria veio chegando da cozinha. Viu-nos sentados no sofá, o cofre aberto, o livro nas mãos de Eusébio. Havia notado também a leveza do ar e as mudanças no ambiente. Nada comentou, mas parecia já estar a par do conteúdo daquele caderno. Sentou-se no braço do sofá, ao meu lado, e olhando para a varanda, pôs a mão no meu ombro:
- Aquele cofre estava cheio de amor, não é mesmo? Amor tanto tempo trancado, pelo Vovô... Agora esse amor espalhou-se por toda a casa, livre que está da pesada porta...
E olhando para mim, sorriu:
- O Coronel já não está aqui... Vovó veio buscá-lo...

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