quinta-feira, 16 de setembro de 2010

NOÊMI

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- Esta moça ao seu lado... de que será que sofre?
- Presumo que seja do mesmo mal que sofremos, não? Sendo este um hospital para tísicos, ela não teria sido internada aqui por outro motivo, não acha?
- Não sei... ela parece estar em coma... Desde que chegou, ontem à noite, eu não a vi mover-se uma só vez. Os frascos de soro se sucedem. Eu nunca ouvi falar que a tuberculose, mesmo em grau adiantado, causasse o coma.
- Talvez além de tuberculose ela sofra de alguma outra doença mais grave.
- Pobre menina, tão jovem ainda... Mal passou dos vinte anos...
O diálogo das duas internas foi interrompido pela enfermeira, que chegava para a última visita da noite. A enfermaria não estava com todos os seus leitos ocupados, o que lhe deixava mais tempo para dedicar-se a cada doente. Dirigiu-se primeiro ao leito da recém chegada. Tomou-lhe o pulso, a temperatura, examinou detidamente o lento e interminável gotejar do soro. Depois, de braços cruzados, aos pés da cama, olhou longamente sua nova paciente e falou baixinho:
- Vamos, minha filha... Reaja... Ainda há tantas coisas a fazer por aqui...
Os olhos da enferma, embora fechados, pareciam umedecidos e uma lágrima ameaçava rolar por suas faces descoradas. A enfermeira recolheu-a com um lenço alvo e ajeitando os lençóis, como para disfarçar a emoção, passou para o leito ao lado.
- E vocês, como estão? Parece-me que a estadia aqui está fazendo duas amigas, não?
- É verdade. Não se aprende que sempre se deve procurar o lado bom das situações, pois ele sempre estará presente? Assim foi a nossa amizade, surgida em meio ao sofrimento...
A outra tentou retornar ao assunto interrompido com a chegada da atendente, desta vez, porém, dirigindo-se a ela própria.
- D. Dulce, como está essa moça ao lado? É muito sério, o seu caso?
A enfermeira levou o indicador aos lábios, pedindo silêncio. Chegando-se mais próximo das duas amigas, sussurrou-lhes :
- Sim, sim, é bastante grave. Mas procurem não falar sobre ela, não temos certeza se tem condições de nos ouvir ou não. Se nos ouve, embora não consiga fa-lar, sofrerá ainda mais se comentarmos a respeito.
Após visitar cada uma das internas do pavilhão, Dulce repetiu para as duas o gesto de silêncio, e dando um ‘boa noite’ sem palavras, deixou a enfermaria.
                                
- Ângela...
A jovem doente abriu os olhos com dificuldade. Pôde ver, com muito esforço, um vulto branco que se debruçava sobre o leito. Lentamente a imagem foi ganhando forma mais nítida aos seus olhos.
- Quem é você? E eu, onde estou?
- Você está num hospital, Ângela. Eu sou uma das enfermeiras...
A moça sorriu para Ângela irradiando tanta simpatia, que a jovem enferma sentiu dissolverem-se seus sentimentos de revolta e intolerância à situação em que se encontrava. Mesmo assim, ainda falou :
- Mas para que me trouxeram para cá? Eu me sentia bem, onde estava. Eles já sabiam que eu estava adoentada, cuidavam de mim, nada me faltava...
- Foram eles, os seus companheiros, que a trouxeram, Ângela. Perceberam que começavam a lhes faltar condições para cuidarem de você.
- Mas eu não quero ficar aqui, eu preciso ir embora. Não vou aguentar muito tempo sem ...
Percebeu, muito tarde, que havia falado demais. Sem o que? A frase ficou inacabada. A enfermeira, entretanto, não parecia preocupar-se com aquelas palavras soltas no ar.
- Você não pode ir embora, minha filha. Você não está bem. Confie em que tudo isso vai passar, é uma questão de tempo. Mais tarde nem se lembrará do quanto está sofrendo... Agora descanse. Amanhã estarei aqui novamente, iremos dar um passeio. Você precisa de ar puro.
Enfim Ângela estava conhecendo alguém que se preocupava com ela.
- Como é o seu nome?
- Noêmi.
A moça sorriu, confiante, e cerrou os olhos. Noêmi retribuiu o sorriso já sem ser percebida, e afastou-se, suavemente.
                                
O médico plantonista fazia sua ronda pelas enfermarias, acompanhado de Dulce. Vinha liberando as pacientes para o passeio matinal, quando parou ao pé da cama de Ângela, dirigindo-se à enfermeira em voz baixa :
- Pobre moça. Tão jovem e já em tão complicado envolvimento... Como as pessoas se deixam levar pelo vício até as últimas consequências... Trilham o caminho tenebroso lentamente, até a total degradação. A dependência, por fim, torna-se tão intensa que nada mais vêem à sua frente, senão eles mesmos. Essa moça, abandonada como um traste na porta do hospital, em pré coma, pelos próprios companheiros de grupo, deve ter-se tornado, para eles, apenas alguém que começava a dar muito trabalho, a exigir atenções em demasia... Como se não bastasse a intoxicação aguda, requerendo cuidados urgentes, também seus dois pulmões estão afetados Agora, ei-la conosco. Assistida, sim, e amparada ; mas... nem seu nome nos pôde revelar. Uma moça, jovem, mas um fardo quase sem valor... mais nada...
Sua voz era um sussurro, não podia correr o risco de ser ouvido pela paciente. O jovem médico se emocionara. Aquela moça de traços finos, suaves, ainda visíveis por trás da máscara de sofrimento, teria sido, talvez em passado recente, uma criança cheia de vida, e uma adolescente alegre e saudável. Lembrava-lhe sua noiva, teriam talvez a mesma idade. O paralelo era inevitável...
- Vamos continuar com a mesma medicação, Dulce - O tom de sua voz elevara-se, para novamente baixar - E vamos torcer para que aconteça um milagre...
Dulce tinha um nó na garganta. Estava afeiçoando-se a alguém que não se movia, não se exprimia por um gesto sequer. Quem era, de onde teria vindo?
- Sim, senhor.
Foram as únicas palavras que conseguiu articular.
                               
Ângela estava sozinha. Dormia, ainda. Todas as outras ocupantes do pavilhão passeavam no tranquilo pátio ensolarado do hospital, aproveitando o ar puro de manhã.
Uma sensação de que havia alguém perto do seu leito a fez acordar.
- Noêmi ?
- Estou aqui, Ângela. Esperava que você despertasse... Vim buscá-la para o nosso passeio...
- Por que você se incomoda comigo, Noêmi? O que preciso agora você não poderá me dar. Carinho, atenção, há muito tempo não tenho e já não sinto falta. Deixe-me por aqui... Sabe? Ouvi tudo o que aquele médico disse para a outra enfermeira. Mas estava em tamanho torpor que por mais que quisesse não conseguiria articular uma só palavra...
- Vamos, vamos, levante-se devagarzinho. Vamos gozar um pouco daquele sol lá fora. As conversas ficam para mais tarde.
- Ele tem razão, Noêmi, ele tem razão...
Ângela desfez-se num pranto convulso, reprimido há muito tempo. Logo ela, que não chorava nunca... Pois se se julgava feliz, sentia-se livre...
- Vamos, chore, se quiser. Mas não vai lhe fazer bem. Poupe suas forças, respire esse ar puro, ele é que é o seu verdadeiro remédio !
Aquela enfermeira não se preocupava em recriminá-la e tampouco lhe despejava os surrados sermões dos que procuram apenas lavar as mãos. Isso mais ainda a emocionava, fazendo aflorarem-se as lágrimas, contidas há tanto tempo, mais e mais.
- Ele tem razão... No início tudo se parecia com muita paz e amor, como nós dizíamos. Mas em pouco tempo éramos escravos - e ainda somos - de um senhor invisível e poderoso, o vício. E distantes, cada vez mais distantes do amor e da paz que procurávamos...
- Você vai sair daqui, sua vida vai ser outra. Verá que nada vai restar destas trevas que lhe envolvem agora.
- Como viverei afastada do vício, Noêmi? Eu não suportaria mais, a droga já faz parte de mim !
- Paciência, Ângela. A paciência e a tolerância irão lhe devolver a alegria que você mesma jogou fora.
- Eu não quero mais sair daqui ! Voltaria à minha vida desregrada e inútil... Ajude-me, Noêmi, por favor...
Era o que Noêmi precisava ouvir. Ela só poderia ajudar aquela moça se ela sentisse realmente necessidade de auxílio.
- Sim, claro, estarei sempre por perto...
Passavam-se os dias. Os passeios, os longos diálogos entre Noêmi e Ângela eram cada vez mais frequentes, cada vez mais profundos. A enfermeira agora era amiga e confidente de sua paciente. Esta, por sua vez, sentia nela a presença da distante família, que renegara por espontânea vontade. Havia já relatado, com pormenores, a sua fuga do seio familiar e a determinação de não mais voltar, adolescente ainda; a fácil iniciação nas drogas, seguida da consequente e quase impossível líbertação; o surgimento da tísica, ameaçadora, e por fim o abandono em que foi deixada até por aqueles aos quais havia eleito como nova família. Sequência de acontecimentos em velocidade galopante, que lhe haviam consumido o físico e a mente nos poucos anos de sua curta vida.
- Noêmi...
- Sim?
- Por que eu não consigo falar com mais ninguém, a não ser você ? Nas visitas médicas rotineiras sou sempre acometida de tamanho cansaço que parece-me estar chumbada à cama e com enorme peso sobre as pálpebras. Somente os meus ouvidos estão sempre atentos. Ouço o que todos dizem, mesmo quando falam em voz baixa, e tenho tanta vontade de dizer-lhes o quanto tenho melhorado, como estou agora me sentindo bem, e não consigo.
Preocupo-me com minhas colegas de enfermaria, coitadas, sempre com tanto cuidado com a minha saúde!  Fale com elas, Noêmi, fale por mim... Diga-lhes que em breve sairei daqui, que um outro mundo me espera ! Não deixe que elas sofram por minha causa, já basta o que já fiz outros sofrerem...
- Claro, claro, meu anjo ! Todos saberão como você se sente agora... Tudo virá ao seu tempo e à sua hora.
- A pressa agora é minha, Noêmi. Eu quero viver novamente, quero recuperar esses anos que perdi. Quando me darão alta?
- Breve, minha filha. Mas não se preocupe, você não está aqui há tanto tempo assim ! Não se esqueça que você abusou demais do seu corpo, e isso exige minuciosa reparação... Você conseguiu mudar a sua maneira de pensar e todo o seu modo de ver as coisas se alterou. Mas as feridas aí estão, e só o tempo poderá cicatrizá-las.
- Oh, meu Deus, por que não conheci você antes ?
- Talvez de nada tivesse adiantado, Ângela. Talvez muitas vezes já tenhamos nos cruzado sem sequer nos havermos notado. Só se vê aquilo que se quer ver, dentre tudo o que nos rodeia...
As visitas de Noêmi sucediam-se. Ângela via que a enfermeira, sempre abnegada e solícita, velava não só por ela como por muitas outras internas, durante o sono reparador. Sentava-se sempre à beira de um leito, geralmente quando a enfermaria repousava na calma e no silêncio da noite, e derramava palavras de alento e de esperança para aquelas que ali curtiam o sofrimento imposto pela doença. Parecia-lhe que as outras auxiliares, também muito cientes de seus deveres, tinham a missão de cuidar dos boletins diários, dos medicamentos, da higiene geral, mas Noêmi sempre chegava irradiando confiança e paz de espírito, elementos tão ou mais necessários quanto as pílulas ou as refeições ministradas nas horas certas..
                                
Naquela noite Noêmi chegou mais alegre do que de costume.
- Ângela, tenho boas novas! Está próxima a sua recuperação! Amanhã bem cedo você será transferida para um sanatório especial, onde ficará algum tempo. E eu obtive permissão para acompanhá-la e participar do seu tratamento! Talvez não seja longo, esse período, ao fim do qual você retornará curada, sadia, sem essas terríveis marcas que nos deixa o passado...
- Oh, Noêmi, quanta alegria! Já nem me importava permanecer para sempre ao seu lado, fosse onde fosse, e creio mesmo que é o que mais desejo no momento! Re-tornar? Mas retornar para onde? Há muitas maneiras diferentes de recomeçar a vida, e vejo que escolheu uma das mais sublimes fazendo da vida dos outros a sua própria vida, devolvendo aos angustiados a verdadeira paz e a única liberdade que existe, tão diferentes as duas daquelas que eu apregoava em minha vida inútil. Percebo que há muito serviço por perto de você. Deixe-me ficar e ajudá-la.
- Quase nunca somos nós que escolhemos o nosso destino, Ângela, embora o tenhamos conhecido antes de chegarmos por aqui. Só o tempo lhe dirá o que será melhor para você.
-Está bem, seja o que for. Sinto que agora estou pronta para cumprir outra missão bem diferente...
- Prepare-se, meu anjo, amanhã bem cedinho virei buscá-la...
Ângela sentiu que não conseguiria dormir. Grande excitação dominava-lhe os sentidos, e seu coração batia forte e apressado. Sabia que ainda estava muito fraca, que sua recuperação poderia ser até bastante longa, mas não se importava. Noêmi estaria por perto para ampará-la, certamente.
E assim atravessou a sua última noite naquele hospital.
Mal despontava a aurora, Ângela percebeu que dois enfermeiros entravam no pavilhão, empurrando silenciosa maca. Atrás deles, sempre sorridente, vinha sua devotada guardiã. Sua excitação chegou ao auge :
- Noêmi, você veio !
- Sim, Ângela, vamos... está na hora...
Os dois auxiliares passaram-na cuidadosamente para a maca e acomodaram os lençóis, enquanto Noêmi carinhosamente segurava sua mão. Lentamente deixaram o recinto, e ela, ao seu lado, ia adiantando-lhe pormenores sobre o novo estabelecimento para onde a estava levando...
O dia amanhecia agora por inteiro. Na enfermaria, o leito de Ângela estava vazio. Roupas trocadas e limpas, aguardava nova ocupante para o bendito repouso. As duas internas, vizinhas e participantes do drama da jovem nas duas últimas semanas, comentavam o ocorrrido :
- Pobre moça, tão jovem ainda...
- No entanto parece ter tido uma vida tão sofrida quanto curta... Algumas vezes ainda cheguei a alimentar esperanças quanto à sua recuperação. Mas, coitadinha, a pobrezinha parecia já ter chegado aqui sem vida...
- Não moveu uma pálpebra nestas duas semanas, não disse um ‘ai’. Mas na hora da sua morte pareceu-me que sorria e chamava por alguém... Noemi, se não me engano. Você ouviu?
- Não, eu nada ouvi. Noêmi? Quem será?
- Bem, quem quer que seja, que possa ter ouvido o seu chamado...
- E que possa estar amparando essa moça, onde estiver.
- Ouviu, sim... Deus queira que tenha ouvido...

                        

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