sábado, 9 de abril de 2011

RAIO DE SOL





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Guardei para mim esta história, por bem uns cinquenta anos.
É a história de uma música. Talvez com receio de que ela não fosse levada muito a sério, não a dividi com ninguém. Aliás, se não tivesse acontecido comigo, acho que nem eu mesmo acreditaria.
Eu estava chegando em Barbacena, com as luzes do crepúsculo. Não conhecia a cidade. Entrei pelas ruazinhas estreitas, propositalmente sem dar muita atenção a elas, às casas ou às pessoas. Uma vez me disseram, muito acertadamente, que em viagem, quando se chega a uma cidade pela primeira vez, nunca se deve fazê-lo debaixo de um escaldante sol de meio-dia, após horas de estradas estafantes. A chegada deve coincidir com o lusco-fusco da noitinha, quando a penumbra esconde o cansaço, a poeira, e quem sabe? até o mau humor...
As descobertas do que a cidade tem para nos mostrar devem ser feitas após uma entrada discreta no hotel, um banho quente, um belo jantar e uma noite bem dormida. Na manhã seguinte tudo será novidade, tudo será mais belo aos olhos repousados e propensos a relevar os pontos, digamos assim, não tão turísticos do lugar...

Bem que eu tentei...
Fui direto para o hotel. Estacionei na garagem, e tomei um apartamento. Após o banho, desci para jantar. Tudo como deveria ser feito. As belezas ficariam para as horas da manhã. Se bem que seria um tour bem rápido, porque meu destino era um pouco mais adiante de Barbacena. Eu ia até Ressaquinha, terra do meu pai. Ele me havia feito um pedido, antes de me deixar.

Velhinho, expirou em meus braços. No dia em que se foi, estava contando-me suas histórias de infância, cheias de nostalgia... De suas idas a Barbacena, que para ele era o paraiso, pois, aos seus olhos de criança acostumada às lides da roça, a cidade das rosas era uma metrópole. De como gostava de ouvir a banda tocar nos recitais de domingo, no coreto da praça. Lembrou-se de “Raio de Sol”, a música que ele mais gostava. Estava feliz...
Então fez uma longa pausa, que eu respeitei. Seus olhos estavam perdidos no infinito, que lhe escapava pela janela aberta. Depois, voltou-os lentamente para mim e, com um fio de voz, mandou que eu apanhasse um envelope nos seus guardados:
- Meu filho... depois que eu me for, vá até Ressaquinha... procure lá o Ariosto e entregue a ele este envelope. E em mão. Não quero que vá pelo correio. É muito importante... - e repetiu - Ariosto... não se esqueça...
- Ariosto... Pode deixar, pai.
Ainda tentou orientar-me mais, sobre o que seria tão importante missão. Mas todas aquelas lembranças haviam si-do demais para ele. Emocionado, calou-se e sorriu para mim, fechando os olhos.
- Dorme um pouquinho, pai. - ainda falei - Depois a gente conversa mais...
Mas... logo depois ele se foi, sem dar mais uma palavra.
O envelope me havia sido entregue aberto, mas não tive curiosidade de conhecer seu conteúdo. Isso, aliás, foi uma herança que ele me deixou - se a correspondência não me pertencia, não poderia ser aberta.

Sentei-me à mesa, aguardando que fosse servido o jantar. Era já tarde, o restaurante estava vazio. Distrai-me, examinando o bom gosto da decoração do salão. O ambiente era calmo e silencioso. Como, de resto, toda a cidade. Respirava-se paz, ali.
Comecei, então, a ouvir sons distantes e característicos de músicos afinando seus instrumentos, sons que me eram bem familiares. Eram instrumentos de uma banda, sem dúvida, e... bandas se apresentam em coretos. Por certo Barbacena ainda teria um coreto...
Eram trombones, pistons e clarinetes, naquele concerto desordenado que sempre anuncia o início de um recital. Sem faltar os simpáticos graves de uma tuba.
Por isso, esqueci meu jantar, e meus planos primeiros. Iria começar a ver as belezas da cidade, mesmo naquela noite. Por nada perderia um recital da banda que eu imaginava existir. Com um sorriso e um “com licença”, deixei o garçom com a comanda na mão e desci as escadas em passo acelerado. Na gerência, perguntei que sons eram aqueles e de onde vinham, já sabendo a resposta de antemão.
- Da praça, senhor. A banda vai se apresentar.
- Em qual praça?
- A única...
Ganhei a rua. Estava excitado como uma criança. Um recital de banda! Há quanto tempo eu estava afastado de coisas tão boas e tão simples... Era um sábado, o movimento de pessoas era grande. Pareceu-me que todos se dirigiam à praça, em passos lentos e compassados, como que saboreando a calma e a tranqüilidade interiorana.
Não estava errado.
- É longe, a praça?
- Não, senhor. Logo ali... - O rapaz mostrou-me a direção distendendo o lábio inferior, como bom mineiro.
Já chegando, ouvi três pancadinhas, como da batuta de um maestro na estante de partituras. Logo silenciaram-se os instrumentos. Acelerei o passo, por nada perderia uma única nota. Quando dobrei a esquina, lá estava a praça. Parecia uma ilustração viva para aquelas histórias que eu ouvia contar, quando criança.
O imponente coreto, de estrutura metálica, - certamente importada da Europa - todo iluminado, reluzia. Era a única iluminação da praça, propositalmente mantida na penumbra, salientando o austero clima do concerto. Sentados em suas cadeiras, ostentando vistosos dolmans vermelhos e calças azuis, cabeças encimadas por quepes brancos, os músicos permaneciam imóveis como soldadinhos de chumbo, com seus instrumentos na posição, aguardando o sinal do maestro, que, em pé, empertigado em frente a eles, mantinha os braços levantados, segurando a batuta e olhando para cada um dos seus comandados, a ver se estava tudo em ordem. O povo, em volta, respeitosamente aguardava, silencioso.
Parei, ainda de longe, para deliciar-me com a cena. A visão era mágica. Como um cartão-postal.
Então, de repente, após o indefectível “um, dois, três”, com um movimento brusco da batuta o maestro deu início a um dobrado.
Reconheci a música, nos seus primeiros acordes.
Era “Raio de Sol”.
Um tanto modificada pelo arranjo, mas... era “Raio de Sol”...
Ali onde estava, fiquei. Eu não precisava chegar mais perto. Aquele quadro vivo, na minha frente, tocava-me fundo. Não consegui conter a emoção. Lembrei-me de meu pai, de seu assovio forte e estridente entoando “Raio de Sol”, enquanto trabalhava. Lembrei-me de como aprendi cada nota daquela música, de como, ainda garoto, tentava assoviar como ele, sem nunca conseguir, de como ele ria das minhas tentativas...
- Tem que ter pulmão... Um dia você vai conseguir...
Não movi um só músculo até o final da música. Cada nota levava-me mais e mais longe, alheio a tudo o mais o que se passava em volta. Ao final, as palmas trouxeram-me novamente à praça do coreto, mas... por pouco tempo. A banda iniciou o seu segundo número, que já não mais sei qual foi.
Eu continuava ouvindo “Raio de Sol”.

Então, foi aí que aconteceu...
As pessoas em volta do coreto, os músicos, o maestro, nós todos, enfim, começamos a ser envolvidos por uma suave neblina, como se ela nos estivesse levando para longe dali. Os sons da banda, aos poucos baixando em intensidade, eram substituídos por um tênue assovio, que entoava a mesma melodia. Ao mesmo tempo, o som fanhoso de uma rabeca fazia a “segunda voz”, uma terça abaixo.
A praça, agora, estava vazia.
Mas... não era a praça onde eu estava. Era outra praça. Era outro, o coreto.
O frio do outono, trazido por suave e agradável brisa, acentuava a magia do ambiente, envolto em uma claridade indefinida. Eu não sabia se era noite, se era dia.
Lentamente, senti que me aproximava do coreto, contornando-o. Vi, então, do outro lado, uma criança, que olhava para o alto como se ainda ali estivesse a banda. Trajava roupas pobres, tinha os pés descalços. Parei ao seu lado. O menino olhou-me e sorriu, encostando o dedinho indicador no ouvido:
- Está ouvindo? É “Raio de Sol”...
Respondi com um meneio da cabeça, afirmativamente.
- E eu sei quem é que está assoviando...
- Você sabe? E quem é?
- É o velho... Quase não se ouve, ele assovia muito baixinho... Já falei pra ele: tem que assoviar forte, mas ele gosta assim...
- E quem está tocando o violino?
- Não é violino, moço... é rabeca... É ele, mesmo... Ele é tocador de rabeca... Ele faz as rabeca e vende, também.
- Ah, sei. Onde ele está?
- Ali, ó. Trabalhando... Eu estou sempre com ele. Gosto de ver ele fazer e depois tocar as rabeca.
Apontou para o nada.
- Sim? Mas onde ele trabalha?
- Quer que eu te leve lá?
Não esperou que eu respondesse. Tomou-me pela mão, e guiou-me até uma pequena e tosca construção, onde um senhor, já bem idoso, rodeado de primitivas ferramentas de marcenaria, empunhava uma rabeca, sentado em um tamborete. Ao lado dele, outro menino observava atento o que fazia.
Quando nos viu, o luthier da roça baixou o instrumento e parou de assoviar.
- Seja bem vindo...
- Muito obrigado.
O velho sorriu para o meu acompanhante:
- Quem é este senhor?
- Ele veio com o “Raio de Sol”.
- Então, é bem vindo mais uma vez...
- Senhor... Onde estou?
Ele sorriu, como que dizendo “que importância tem isso?”, mas não respondeu. Levou o instrumento ao ouvido, tangendo uma das cordas várias vezes, como que apurando a afinação.
- Vejo que um dos meus “ajudantes” o trouxe.
Sorri para o menino.
- É seu ajudante?
- Meu braço direito... Vai me substituir, quando eu for embora. Disse-me que quer aprender a fazer rabeca...
E depois de uma pausa:
- Gosta de “Raio de Sol” ?
- Muito. Esta música faz-me retornar à infância. Meu pai gostava muito de assoviar, e sua música predileta era “Raio de Sol”.
O velho olhou para o garoto e sorriu.
- É, eu sei...
Não procurei entender aquelas palavras. Não eram apenas elas, o que eu não entendia.
- Só não estão tocando a minha música do jeito que eu fiz...
Admirei-me:
- Mas... então é de sua autoria, “Raio de Sol”? Sempre pensei que fosse de autor desconhecido... Meu pai nunca...
Ele interrompeu-me:
- É deste seu criado, sim senhor. Mas, não faz mal... Deixa eles tocarem assim mesmo, está bom... Eu também nem escrevi a partitura direito...
Tirou do bolso da camisa, então, uma folha de papel dobrada e entregou-a a mim. Era uma partitura, escrita em um papel liso, comum, manchado pelo tempo, onde até as pautas haviam sido desenhadas a mão. Encimando as notas, o título.
Ao ler a partitura, o pouco que eu entendia de música me fez reconhecer a melodia, ali escrita do jeito que eu a conhecia. Devolvi-lhe o papel, que ele cuidadosamente dobrou e guardou novamente.
- Vou confiar essa partitura a alguém, algum dia...  
- Quer dizer, então, que estou diante do autor de “Raio de Sol”...
- Pois é...
- É pena, meu pai já não vive. Ele gostaria muito de saber disso.
- Quem sabe?... Dê tempo ao tempo...
O velho era enigmático, e por certo não me deixaria desvendar seus segredos. Não sei nem se de alguma coisa adiantaria tentar fazê-lo.
Ele empunhou a rabeca e começou novamente a tocar.
Então, mais uma vez a etérea neblina começou a me envolver. E aos pouco os acordes do instrumento foram mesclando-se ao som de palmas, que me fizeram retornar à praça de Barbacena.
Quando o recital acabou, corri a cumprimentar o velho maestro, elogiando-o pela condução da banda. Perguntei-lhe se ele sabia de quem era aquela primeira música da apresentação, não lhe declinando o nome.
- Meu amigo, não me lembro quem é o autor e nem se tem nome. Venho trazendo essa música na cabeça, desde criança... Então, um dia resolvi de escrevê-la, como pude. Depois, mostrei-a aos meus músicos, e eles pediram-me para fazer um arranjo para a banda. Foi o que o senhor ouviu. Mas não ficou como eu queria. Parece que falta alguma coisa...
Concordei plenamente.
Ainda fiquei em Barbacena por mais um dia, na esperança que o insólito encontro com o “fazedor de rabeca” se repetisse, pois a banda se apresentaria novamente, seria domingo. Mas... nada mais aconteceu. Na segunda feira, cedo, parti para Ressaquinha, a procurar o Ariosto, como havia prometido a meu pai.
Entrei no povoado ainda com as luzes da manhã, e dei razão a quem havia dito ser melhor chegar com o crepúsculo. A terra natal do meu pai não era um lugar muito bonito.
Eu não tinha noção por onde começar a minha procura, mas não seria difícil, o lugar era muito pequeno. Comecei a dar umas voltas a esmo, a ver como iria começar a minha busca, quando, de repente, na curva de uma rua, meu coração bateu mais forte.
Deparei, no centro de uma modesta praça, com o mesmo coreto que vi, envolto em bruma, no meu devaneio em Barbacena. Olhei em volta, procurando nem sei mais o quê. E vi, numa ruela bem perto da pracinha, o galpão até o qual eu havia sido conduzido pelo pequeno ajudante do fazedor de rabeca. Estava abandonado, com o mato impedindo a entrada e deixando ver a porta descaída, meio fora dos gonzos. 
Parei o carro, desci e fiquei olhando para a tosca construção.
- Meu Deus! - exclamei, em voz alta - Então você existe...
- O senhor disse alguma coisa? - Era um senhor, que me surpreendeu pensando alto.
- Bom dia, amigo... - falei, meio sem jeito, como um menino que tivesse sido apanhado numa travessura - Diga-me, por favor: este barracão... Há quanto tempo esta assim, abandonado?
- Ih, faz é tempo...
- Não era aqui a oficina de um artesão? Um homem já de idade, sempre com uma criança que ele dizia, brincando, ser seu ajudante...
- Então?... Era o fazedor de rabeca... Mas ele morreu faz tempo, meu senhor... E a criança virou homem, largou da cidade faz tempo, também.
Resolvi, então, iniciar minha pesquisa ali mesmo:
- O nome dessa criança seria Ariosto, por acaso?
- Ariosto? Não, senhor. Não me lembro do seu nome, mas não era Ariosto... - O homem coçou o queixo - Mas... tinha um Ariosto aqui em Ressaquinha, por essa ocasião. Esse, então, foi embora ainda criança.
E arrematou, depois de uma pausa:
- Era ‘artista de música’... Aqui não tem lugar pra músico. Acho que ele virou condutor de banda, lá em Barbacena...

Artista de música...
Minha procura havia terminado.
Naquela manhã mesmo, voltei a Barbacena e corri a procurar o velho maestro. Sabia, agora, o que continha o envelope que meu pai pedira que fosse entregue a ele. E sabia quem era o “ajudante” a quem o velho fazedor de rabeca havia confiado a partitura de “Raio de Sol”...







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