quinta-feira, 14 de abril de 2011

PEDRO E LAURA


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Outubro 1977



Cinco horas da tarde. Àquela hora, Copacabana fervilhava. Não a praia, que esta, a qualquer hora do dia ou da noite será sempre uma festa, na areia ou fora dela - mas a avenida, que já não é mais de Nossa Senhora, é só de Copacabana.
Calçadas cheias, gente que vai, gente que vem, gente que já saiu das areias e agora se divertia com as vitrines coloridas, com os camelôs apregoando suas mercadorias em altos brados e os guardas regendo o trânsito com seus apitos, diga-se de passagem, um tanto enervantes. Mas ninguém reclamava, parecendo estarem todos de bem com a vida. Copacabana é e será sempre uma festa permanente.
Já a Barata Ribeiro não tem tanto charme. É uma rua apenas barulhenta, ruim para moradia, sem todas aquelas lojas atraentes, mas... “contaminada” pelos inexplicáveis encantos do bairro. Por isso, cheia também de gente que vai e gente que vem... Rua dos botecos, dos horti-frutis, das farmácias.
Rua do “Ponto de Encontro”, discreto e silencioso, calmo e sossegado, em contraste com o burburinho nervoso do outro lado da porta. Mas não conseguia ser um lugar escondido, e nem Pedro e Laura queriam isso. Não estavam esquivando-se de ninguém, nada havia a ocultar.
Não por enquanto.
Tampouco sabiam exatamente o que queriam um do outro. O ambiente ajudava a criar uma atmosfera proibida, até então não vivenciada pelos dois. Haviam tomado uma mesa de canto, conversavam em voz baixa, alegremente, e sequer haviam notado que o chocolate fumegante já havia sido servido.
Olhavam-se nos olhos. Melhor dizendo: examinavam-se minuciosamente. Sentiam próximo o momento da decisão, por isso prolongavam a conversa medrosamente. Eram, naquele momento, os mesmos adolescentes de há vinte e cinco anos atrás.
Vinte e cinco anos! O tempo não havia deixado marcas profundas em nenhum dos dois. Laura era uma mulher bonita e atraente. Conservava seu sorriso franco e era incapaz de exibi-lo sem sinceridade. Pedro mantinha o mesmo porte ereto e esguio da mocidade. Formavam um bonito casal.
Sim, eles examinavam-se docemente, talvez fantasiando recompor aqueles vinte e cinco anos, longo hiato durante o qual nem uma só vez haviam se avistado, nem uma singela notícia haviam tido um do outro, até se encontrarem, casual-mente, naquela manhã.
Pedro já estava de férias há uma semana. Porém outros assuntos, alheios ao trabalho, haviam-no impedido de sair do Rio com a família em viagem, o que faria, entretanto, dali a três dias. Aproveitava a manhã fria, típica de final de outono, quando o céu azul e o sol claro não são suficientes para aquecer o ar, para um passeio na pequena praça perto de casa, enquanto Beatriz ultimava as tarefas caseiras da manhã. E o filho Renato, também em férias, apressou-se em segui-lo.
Era saudosista. Caminhava distraidamente, lembrando-se das poucas vezes que ali estivera com os filhos, pequenos ainda, para o banho de sol matinal.
Renato também só se lembrava das saídas com sua mãe e o irmão, quando era hábito passarem os três, às vezes, manhãs inteiras em brincadeiras. Agora, já rapazinho, rememorava com o pai os bons momentos da sua infância.
Pedro parou para comprar um jornal, enquanto Renato dirigia-se a um banco próximo, onde já havia uma jovem senhora sentada. Notou que ele sentara ao seu lado e que conversavam animadamente, e reparou a facilidade com que Renato fazia novas amizades. Ele era o oposto do pai, que embora não chegasse a ser um introvertido, não tinha a menor tendência para entabular conversas de rua.
Mas pareciam mesmo velhos conhecidos, aqueles dois. Quando ele chegou mais perto, Renato adiantou-se:
- Venha, pai, venha conhecer a tia Laura!
Pedro imediatamente uniu aquele nome ao seu antigo amor de adolescente. Logo procurou, na fisionomia da moça, os traços daquela menina-moça que havia sido sua paixão.
- Eu a reconheci assim que a vi, pai! E faz tanto tempo! Tia Laura sempre vinha aqui na praça com Patrícia, e enquanto conversava com mamãe, brincávamos nos três, eu, Patrícia e o Eduardo...
Era Laura...
Como Renato, também Pedro a reconheceu assim que a viu... Vinte e cinco anos depois do último encontro, quando deram por terminado um daqueles namoros da adolescência ao qual os jovens se entregam trocando juras de amor eterno... Por todo esse tempo haviam caminhado dentro do mesmo labirinto, sempre em direções opostas, sem jamais se encontrarem. E de repente, ali estava a jovem senhora, sentada à sua frente.
Pedro percebeu, pelo seu olhar, que também ela o reconhecera. Mas repentinas fantasias fizeram com que ambos, naquele momento, esquecessem o passado, fazendo com que Renato nada percebesse.
- Tia Laura, quero lhe apresentar o meu pai...
- Muito prazer, “tia” Laura... - Pedro brincou, nervoso, enquanto ela lhe estendia a mão.
- Igualmente...- foi o que Laura conseguiu dizer.
Aquela voz, aquela mãozinha fina e delicada transportaram Pedro, por breves instantes, aos bons tem-pos em que nada mais importava, além do amor eterno... enquanto durasse, como disse o poeta.
- Como está Patrícia? -perguntou Renato, cortando, com suas palavras, o silencioso colóquio - Eu acho que não a reconheceria. A senhora, tia Laura, não mudou nada, não me foi difícil reconhecê-la. Mas Patrícia deve estar uma moça...
Somente Renato falava. Pedro e Laura tentavam - e estavam conseguindo - disfarçar a emoção do reencontro. Nenhum dos dois se preocupava por haverem omitido a Renato tão antiga ligação.
Por fim, Laura respondeu a Renato:
- Sim, ela está uma moça... e uma moça muito bonita! Aliás, Renato, você mesmo pode confirmar o que digo. Aí vem ela...
Patrícia vinha se aproximando, para encontrar-se com a mãe. Era realmente uma moça encantadora. Seus traços, sua maneira de ser lembraram a Pedro a sua Laura de outros tempos.
Crescia a emoção, aumentavam as fantasias.
Patrícia foi “reapresentada” ao rapaz por Laura, que em seguida voltou-se para o seu ex-namorado:
- Minha filha, Pedro...
- É você outra vez, Laura...
Os dois jovens não perceberam a intimidade do rápido diálogo. Logo se entretiveram em animada conversa, afastando-se de seus pais em passeio pela praça, relembrando também as brincadeiras da infância.
Pedro e Laura viram-se a sós.
- Laura, Laura... como você está bonita... Onde você esteve esse tempo todo, que nunca nos encontramos? Eu nunca me afastei do Rio...
- Tampouco eu, Pedro... Quantas vezes até devemos ter-nos cruzado, não é verdade? Quanto teríamos para conversar...
Calaram-se. Veio-lhes irreprimível desejo de recomeçar o que haviam interrompido. Contiveram-se, talvez um aguardando que o outro tomasse a iniciativa.
- Por que não dissemos às crianças que já nos conhecia-mos ?
- Não sei...
Laura respondera suavemente, baixando os olhos, como fazia quando enrubescia. Mas ela sabia, tanto quanto ele. Começava a crescer a fantasia. Seus filhos, suas famílias, nada parecia ser empecilho para os dois, agora que novamente haviam se encontrado. Esqueciam-se, naquele momento, que o sério compromisso da juventude desvanecera-se com o tempo e as lembranças que agora os excitavam deveriam permanecer apenas como doce recordação de uma época que se foi.
Já não se pertenciam. Cada um tinha seu dono e era dono de alguém... Aquilo sim, era real, verdadeiro, e, para felicidade de ambos, amoroso e sincero.
Mas eles sentiam-se momentaneamente livres diante do imprevisto que os colocara frente a frente, como a lembrar-lhes que ainda havia tempo para se conhecerem, que ainda não era tarde para terminar o que duas crianças haviam começado...
E foi embalado por essa romântica e falsa liberdade que Pedro sussurou-lhe, apressado, quando percebeu que seus filhos vinham retornando do curto passeio:
- Conhece o “Ponto de Encontro”? Eu espero você lá às cinco horas.
Não houve tempo para a resposta, mas Pedro sabia que Laura não faltaria, pois ela enrubesceu e baixou os olhos, novamente...
As paredes forradas de madeira escura, os “plaffoniers” de luz mortiça pendentes das paredes, os garçons que deslizavam entre as mesas, sem ruído, tudo contribuía para criar um clima propício à expansão das mútuas intenções.
Laura estava ainda mais bonita, e Pedro encantava-se com ela, numa felicidade pueril. Trocavam elogios, como se estivessem ali iniciando um relacionamento com as mais sérias intenções...
Despreocupada, ela em dado momento até pensou na família. O marido, como de costume, só chegaria em casa mais tarde, e Patrícia estava com Renato, que se apressara em convidá-la para um cineminha. Não via nenhum problema em estar ali com um velho amigo. Apenas um velho amigo. Tentava enganar-se, como para justificar o seu procedimento.
Pedro, olhava-a, sorrindo. Quis saber mais:
- Você é feliz, Laura?
- Sim, Pedro. Muito. Alberto e eu somos como que uma pessoa só. Sempre nos amamos como dois adolescentes apaixonados...
Ela percebeu, já tarde, que não havia sido feliz na comparação. Era um lugar-comum, mas exprimia a verdade. Ali mesmo estavam dois adolescentes apaixonados que também haviam sido, um dia, uma pessoa só...
Continuou:
- Em todos esses anos que estamos juntos não tivemos desavenças mais sérias do que as que a maioria dos casais enfrenta, para acabar com as arestas do relacionamento. Sempre existem, não é mesmo? Mas Alberto é tão delicado e atencioso que eu não consigo imaginar-me ligada a outro homem... E você, Pedro?... Bem... eu conheço Beatriz, de quando íamos nas manhãs, lá na praça, há muito mais tempo do que você imagina. Jamais poderia imaginar que aquele Pedro de quem ela falava sempre, em verdadeiras declarações de amor, era você...
- Também eu achei a minha companheira certa, Laura...
Apesar do diálogo, quem de longe os visse, sem ouvi-los, imaginaria tratar-se de um casal apaixonado. A mão de Pedro procurou meigamente a de Laura, sobre a mesa.
Ela aceitou-a:
- E agora, Pedro, por que foi acontecer isso?
- Não sei, Laura. Sei apenas que tenho pensamentos irrefreáveis.
Como que acordada por aquelas palavras, Laura, com um movimento rápido, retirou sua mão de baixo da do seu companheiro. Pedro compreendeu. Ele também, apesar dos “pensamentos irrefreáveis”, estava confuso, não tinha certeza do que queria. Eram “livres”, mas sentiam-se impedidos por eles próprios de ressuscitar aquele amor juvenil.
Fez-se um prolongado silêncio, enquanto eles, com um sorriso nos lábios, olhavam-se ternamente.
Foi Laura quem retomou a palavra.
- Que queremos nós, Pedro? - a conversa era ao mesmo tempo clara e velada - Ambos achamos que estamos sabendo o que queremos, não é mesmo? Mas seja o que for, não há de combinar com as nossas realidades.
Laura talvez quisesse ouvir de Pedro argumentos que lhe mostrassem estar errada. Embora no fundo ambos soubessem ser impossível o seu desejo, lutavam contra a lógica, como que querendo substituir a razão pelo coração. Mas quanto mais dialogavam, mais percebiam o absurdo das suas intenções.
Tinham vontade de silenciar, de ficar calados, de não ouvir as mútuas ponderações, para poderem se amar em silêncio, ignorando as evidências que teimavam em impedir a consumação de tão doce fantasia.
Mas não conseguiam, era falso e irreal o desejo irresponsável e quase infantil. Às lembranças da juventude sobrepunham-se outras, reais e recentes.
E Renato e Patrícia, naquele momento, talvez estivessem recomeçando o que eles haviam interrompido, há tantos anos atrás. Seus próprios filhos...
Curiosa, esta vida...
Alberto e Beatriz, tanto quanto eles próprios amantes fiéis, dentro em pouco começariam a sentir as suas faltas, preocupando-se sadia e inocentemente com o paradeiro de ambos. Todas estas lembranças assomavam, ao mesmo tempo, nas duas tontas cabecinhas, enquanto olhavam-se fixamente, aparentando amor eterno...
Foi ainda Laura que primeiro acordou do devaneio, e a pergunta que fez transportou Pedro, de vez, da fantasia para a realidade:
- Que horas são?
- Quase sete! Puxa, como passou rápido o tempo... Acho melhor irmos...
- É... É melhor...
- Eu levo você em casa. Acho que Alberto e Beatriz já devem estar preocupados com a nossa demora!
E, sorrindo:
- É claro que nenhum de nós dois disse onde ia...
O inusitado desfecho não lhes soou inesperado. Pareceu resultado de prévio acordo, cujo mediador foi a razão. Nenhum dos dois estranhou o fim do diálogo, preocupados demais que estavam, agora, em não desapontar suas almas gêmeas. Ao mesmo tempo sentiam estar se livrando da pesada e doce carga que desde a manhã lhes caíra sobre os ombros... 
Saíram apressados, de mãos dadas, num gesto inocente e impensado. Sobre a mesa, o gordo troco não reclamado era prova de que não havia tempo a perder.
E o doce chocolate permaneceu intocado... e esfriou...

                                                                   

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