domingo, 29 de maio de 2011

A AGENDA



Domingo, 31 de dezembro. Mil novecentos e oitenta e três.
Eu estava sentado num banco da praça, pensando na vida. Que, afinal de contas, não era nem boa nem ruim. Uma vida mais para o sem graça, de dias rotineiros que se arrastavam entre a casa e o trabalho, este também meio parado, onde eu fazia todos os dias a mesma coisa, tipo carimbar documentos sem expressão, o expediente inteiro. Mas era um emprego seguro. Se eu não aprontasse uma justa causa, ninguém me mandaria embora. O governo garantia o meu pão de cada dia.
Pensando na vida, pensando que à noite iria ver os fogos - tomara que não chovesse, o céu estava nublado - que no dia seguinte seria feriado, que bom, que vidinha sem sal. Mas nem por isso triste ou revoltado. Não. Conformado, sim. Afinal, estava tudo bem. Vivia sozinho, nunca tivera grandes sonhos, nem pequenos, nunca fora ambicioso. Tinha minha tv de vinte e nove, meu dvd. (Fiz questão de comprar sem karaoke. Que coisa ridícula, aquela cantoria.) Se, no fim do mês, se sobrasse algum para uns filminhos, estava bom.
Tudo bem, mesmo? Sei lá. Essa mania de dizer tudo bem pra qualquer coisa. Acho mesmo é que gostaria que tudo fosse diferente. Gostaria, sim. Afinal, era uma vida meio besta a que eu levava, não passava de uma sequência de dias absolutamente iguais, estivesse eu trabalhando ou me divertindo. Divertindo, isto é, sentado na cama, em frente ao dvd, que no meu caso queria dizer: deita, vira e dorme.
Mas pensar na vida é uma coisa, modificá-la é outra bem diferente.
Estava assim, quando vi aproximar-se o homem. Caminhava lentamente, mãos para trás, olhando para tudo, como quem examina a natureza. A praça estava vazia e o dia frio, curioso, apesar de dezembro. “Já vi tudo”- pen-sei - “vai sentar-se aqui ao lado e puxar um papo. Papo de mais-um-ano-que-se-foi. Tudo bem...”. O tudo bem, novamente. Mas o cara passou direto, sem antes sorrir para mim, caminhou até a estátua do centro da praça e colocou numa platibanda o que me pareceu ser um livro de capa preta. Tranquilamente, se foi, com as mãos para trás.
Estranho, pensei. Ele não esqueceu aquilo ali. Deixou lá consciente, o caderno. Esperei que ele se afastasse - pois não pensei em devolvê-lo, lógico, se ele o deixou - e fui até lá. Tomei o livro nas mãos. Não era um livro, era uma agenda. E estava em branco. Menos na primeira página, onde havia uma espécie de dedicatória, manuscrita, com letra desenhada: “Esta agenda agora é sua. Anote nela os seus desejos. Faça bom proveito. Espero que ela lhe ajude tanto quanto me ajudou.” Ass: Um amigo. Em cima da dedicatória, o ano: 1984, também manuscrito. O ano que ia começar no dia seguinte. Procurei pelo homem, havia sumido enquanto eu me distraia com o caderno.
Mais estranho ainda, pensei de novo. Examinei o caderno. Estava meio surrado. Como qualquer agenda, cada página correspondia a um dia do ano, mas nesta os sábados e domingos ganhavam folhas inteiras. Só tinha dias e  meses, era dessas que servem para qualquer ano. Nos rodapés, cada página tinha uma frase tipo “Conte os dias pelos botões de flores e não pelas pétalas caídas”,“O próximo está mais próximo do que pode parecer”, etc. Não folheei mais, parei em dois de janeiro. Detive-me na dedicatória. 
Pomba, de que adiantaria anotar os meus desejos? Eu anotaria meus compromissos, se os tivesse. Mas os meus desejos? Vontade é uma coisa que dá e passa, alguém me disse uma vez. Levei a agenda para casa, afinal, “ela agora era minha”, dizia a dedicatória. Ainda me lembro que coloquei-a num canto, tomei um bom banho e fiquei aguardando a hora de ir para a praia ver os fogos de fim de ano.
E fui. Como todos os anos, foi tão bacana quanto rotineiro. Nem chover, choveu. Assim que acabou a pirotecnia, voltei para casa, para o meu dvd. Deitei-me, virei-me e dormi. Como se cumprisse uma obrigação.
No dia seguinte, acordei um pouco mais tarde - era feriado. Abri os olhos, deparei com a agenda na mesa de cabeceira. Curioso, folheei-a. Estava lá, anotado no dia primeiro, e com a minha letra: “Andar na praia.”
- Mas... eu não escrevi nada... - deixei escapar em voz alta - Ou será que escrevi? Não, não estou maluco... Andar na praia... que idéia! Virei sonâmbulo, para escrever dormindo? Eu nunca ando na praia...
Folheei-a mais uma vez. Li a frase alentadora do rodapé: “O perigo que o trovão nos incute já foi anulado pelo relâmpago”. Bonito e correto. Deixei-a na mesinha e fui até a janela. Realmente, eu morava num lugar privilegiado. Apartamentozinho pequeno, mas numa rua calma e arborizada, perpendicular à praia. Por isso, da janela se via um retângulo do céu, do mar e do calçadão com as pessoas andando pra lá e pra cá. Nunca havia prestado muita atenção naquela nesga de beleza. Quanta gente!
Andar na praia... Até que...
Tomei meu café e desci. Cumprimentei o Raimundo, soube das novidades da portaria e ganhei a rua. Eu também ia andar na praia.
Agora estava fazendo parte daquela multidão, andando, embora bem mais devagar, que eles pareciam todos estar indo tirar o pai da forca, sacudindo os braços, virando o pescoço para um lado e para o outro, uns com as mãos na cintura, outros balançando os ombros. Todos de bermuda. Eu me sentia um peixe fora d’água, de calça comprida, camiseta, sapato e meia. Mas estava achando legal. Muito sol para o meu gosto, mas legal.
Depois, em casa, senti-me cansado. Havia andado bastante. Mas era um cansaço diferente, apenas físico, só os músculos doíam, nada mais. Diferente de quando eu chegava da repartição, doido pra tomar um banho e cair na cama.
Passou-se o resto do dia, eu na já minha conhecida rotina, que me fez esquecer até da agenda. Aliás, o dia, não. A semana. Quando me lembrei dela, já era sexta-feira outra vez. Curioso, então, abri no dia 6, sábado. Lá estava: “Andar na praia. De bermuda.” Que diabos, eu não havia escrito aquilo. Mas era a minha letra. E ainda me mandando ir de bermuda. Meio invocado, no dia seguinte lá estava eu no calçadão. Tive que passar antes numa loja e comprar uma bermuda, não tinha nenhuma.
Era realmente diferente, sentir o vento batendo nas pernas peladas. O sol não me parecia mais tão quente. Sem perceber, comecei a andar mais depressa. Daí a pouco, já estava no mesmo ritmo daquele povo, andando sem destino. Voltei para casa, tomei um banho, mas não caí na cama. À tarde, para surpresa minha, lá estava eu de novo, de bermuda, agora andando calmamente, apreciando o dia que se esvaia em cores cambiantes.
Já havia mais de uma semana que eu estava indo às minhas andanças todos os dias, antes de ir para o trabalho. E todos os dias abri-a a agenda, mas as páginas agora estavam sempre em branco. Mas as frases de rodapé bastavam para tornar meus dias melhores.
Até que um dia, mais ou menos um mês depois, lá estava, novamente num sábado: “Ir à praia”. Não havia dúvida que aquele livro estava conversando comigo. Eu não escreveria “ir à praia”. Há mais de vinte anos eu não sabia o que era uma praia, nem sunga tinha. Estava desacostumado da água fria, salgada, das ondas, de tudo. E morando ali pertinho! Mas senti que não devia desobedecer. Lógico, antes passei na loja e comprei uma sunga - bem discreta, preta, parecia uma cueca. Fui, confesso que até encabulado.
Que surpresa! Como era bom o banho de mar, tão esquecido dele que eu estava! Quase fui atropelado pelos surfistas, caí, enrolado pelas ondas, no meu tempo se chamava caldo. Levantei-me igual a um bêbado, fiquei meio sem graça, olhei para os lados, ninguém estava nem prestando atenção em mim. Voltei para dentro do mar, pulando igual a uma criança, rindo sozinho. De tarde, estava ardendo e vermelho que nem um camarão. Mas, feliz.
Passei a levar a agenda mais a sério. Resolvi não apurar se era eu ou não, quem estava escrevendo. Mas no fundo tinha certeza que eu não escrevia nada, tampouco era sonâmbulo. Às vezes, passavam-se dias e dias – eu agora a consultava todos os dias - e nada aparecia escrito. Uma noite, resolvi ficar de vigília até amanhecer, e fiquei, a duras penas. Mas pela manhã a página continuava em branco, só com a frase do rodapé.
- Como é, vai escrever ou não vai?
Ri de mim mesmo, querendo dialogar com um livro.
No dia seguinte, lá estava: “Ir ao cinema. Ver Ponto Final”. Ora essa, eu estava mesmo querendo ver se já havia chegado ‘Ponto Final’ na locadora. Gostei da idéia, fui até lá. Mas todas as cópias estavam alugadas. Não dei muita bola. Tentaria no dia seguinte.
No outro dia, a agenda foi dura: “IR AO CINEMA”. Assim, com todas as maiúsculas. Pelo jeito, dvd nunca mais. Não é preciso dizer que fui, gostei muito do filme, enfim, um Woody Allen. Daí para a frente comecei a levar a coisa a sério. Agora tinha a certeza que não era eu mesmo, quem escrevia. Mas a letra continuava sendo a minha.
E a história evoluiu. Das dicas de vida, passou aos conselhos. Sugeria-me ser mais afável, mais participativo no trabalho, mais aberto com os colegas, enfim, estava tentando tirar-me - tentando, não, tirando-me - daquela vidinha besta e sem sal que era a minha existência. Eu estava consciente do que acontecia, e depois daquele “ir ao cinema” com letras maiúsculas, nunca mais meti-me a querer saber o que estava acontecendo. De vez em quando, voltava à primeira página: “Anote nela os seus desejos”. Só que eu não estava anotando nada, acho que eles estavam aparecendo sem meu controle, ou melhor, sem nem eu saber que tinha aqueles desejos.
Um dia - estávamos já no inverno, as idas à praia já não eram tão frequentes - li: “Chamar a Laurita para jantar.”
- O que?!... Só me faltava essa...
Laurita era uma colega da repartição. Sempre muito alegre, simpática, dava-se bem com todos. Divorciada já há muito tempo, e até onde eu sabia, livre e desimpedida. Mas nunca me havia dado mais atenção do que a mínima necessária para um bom relacionamento no escritório. Agora, essa? Será que ela era um “desejo” meu, também?
Relutei. Jantar com a Laurita? A troco de nada? Não chamei. No dia seguinte, abri a agenda com medo. Estava em branco. O livrinho era paciente, parecia saber que eu iria capitular.
O dia custou a passar, a cada cruzada com Laurita pela sala parecia-me que ela esperava que eu falasse alguma coisa. Bobagem, se ela não havia lido a agenda... Pura idéia minha. Fui para casa sem falar nada. No dia seguinte, agenda em branco novamente.
No terceiro dia, nem abri o livrinho, com medo das letras maiúsculas. Mas mal cheguei na repartição, procurei Laurita e soltei, de chofre:
- Laurita!
O chamado saiu tão alto que ela levou um susto.
- Credo, Téo, que houve?
- Você tem algum compromisso para hoje à noite?
Eu suava em bicas. E era inverno.
- Eu? Ora... não... Por que?
- Estou lhe convidando para jantar.
Ela não escondeu a surpresa.
- Jantar com você?
- É...
Eu já estava arrependido. Como fui dar bola para aquela agenda? Agora...
Ela, então, segurou-me pela mão e levou-me até a janela, um lugar um pouco mais reservado da sala.
- Vem cá, Téo.
 Sem largar a minha mão, olhou-me bem nos olhos, longamente, e não disse nada, preenchendo uma longa pausa apenas com seu sorriso. Depois, falou baixinho, como se houvesse alguém por perto :
- Você não sabe há quanto tempo espero por esse convite...
Eu não sabia mesmo. Jamais teria percebido. Logo eu, o cara mais sem graça da repartição, o mais sem jeito... A princípio achei que caçoava de mim. Mas, não; não a Laurita. Ela não seria capaz de brincadeira tão humilhante...
- Sério, Laurita? Há muito tempo?
- Você mudou muito, Téo... De uns meses para cá você é outro homem, mais alegre, parece-me até que mais feliz... Tão diferente do Téo que conheço há tantos anos... Que houve com você?
- Aprendi a viver, Laurita...
- Aprendeu? Quem anda por ai ensinando os outros a viver?
- Você nem imagina... Não foi “quem”, foi “o que”...
Felizmente o assunto morreu por ali.
Desse dia em diante, minhas conversas com a agenda tinham um único objetivo: Laurita. Eu tinha compromissos, agora. Eu tinha alguém com quem repartir minhas alegrias, meus cinemas, minhas praias, minha vida, enfim. E não precisava dividir tristezas, além das necessárias. Não que não as houvesse; mas aprendi a guardá-las para mim, quando ninguém pudesse ajudar-me a acabar com elas. No rodapé de uma página de dezembro, a lembrança da frase era clara: “Não sature os ouvidos de quem não tem como lhe ajudar. As suas tristezas passarão a ser também do seu próximo. É o que você quer?”

Segunda-feira, 31 de dezembro de mil novecentos e oitenta e quatro.
Acordei cedo, apesar do feriado. Alguém já me disse que sempre, nos feriados, faz questão de acordar de madrugada, levantar-se e sentar no banco da praça, para ficar mais tempo sem fazer nada. Olhei para o lado, Laurita ainda ressonava, tranquila. Sentei-me na cama e busquei a agenda na gaveta da mesinha, a ver o que ela me reservava para o último dia do ano.
Abri a capa, passei a primeira, a segunda, a terceira folha. Tomei todas as folhas com o polegar e desfolhei-as. O livro estava totalmente em branco. Procurei a dedicatória, dirigida a mim - nada mais havia. “Com certeza”- ironizei - “o sonâmbulo aqui apagou tudo durante essa noite...”
Não. A agenda havia era cumprido a sua missão.
Abri, então, novamente a primeira folha, e escrevi, com letra bonita e desenhada: “Esta agenda agora é sua. Anote nela os seus desejos. Faça bom proveito. Espero que ela lhe ajude tanto quanto me ajudou. Ass. Um amigo.”
Daqui a pouco, vou lá na praça, deixá-la numa platibanda da estátua, para quem a quiser. Depois, vou dar uma volta e fazer uma horinha para ver os fogos, na praia. Com a Laurita.























































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