segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

A GRUTA

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Haviam se mudado há pouco tempo. O sítio era muito aprazível. Recém casados, ambos gostavam do campo, por isso decidiram iniciar a vida em comum trocando a cidade pelo verde. Continuariam atendendo ao trabalho na metrópole, que não era longe, e tinham planos de ficar por ali uns bons anos, enquanto os filhos - o primeiro já estava a caminho - não necessitassem frequentar a escola.
O lugar era privilegiado. Proporcionava a facilidade dos encontros dominicais das duas famílias - dele e dela - tradição que eles cultivavam com carinho.
Em um desses domingos, após o almoço ao ar livre, o novo sitiante resolveu dar uma caminhada pelos arredores. A propriedade era muito grande, havia ainda muita terra para ser explorada, e ele nem mesmo a conhecia até a divisa mais distante.
Ainda não se afastara muito quando deparou com uma gruta, meio encoberta pela vegetação espessa, embora rasteira. Sua entrada, de pouca altura, obrigaria o “explorador” a vergar o corpo para ganhar o interior.
Quando viu aquela fenda na pedra imediatamente vieram-lhe à memória certos fatos de sua infância, até então esquecidos, relacionados com a exploração de uma gruta. Era só o que sabia, de nada mais se lembrava. E, coisa curiosa - veio-lhe um desejo quase infantil de aventurar-se caverna a dentro.
Agachou-se, entrou cautelosamente pela estreita fenda, mas logo constatou que não havia nada a explorar, uma vez que embora tenha deparado com um salão bastante espaçoso, não havia outras galerias que o incentivassem a continuar a aventura. Reforçaram-se as suas lembranças de menino, em outro lugar, outro sítio longe dali, onde nascera e vivera os primeiros anos de sua vida.
Deixou-se ficar, envolto na penumbra, examinando o teto e as paredes lisas, fantasiando encontrar grifadas na pedra inscrições paleolíticas de seus irmãos de outras eras. Escoou-se o tempo, sem que percebesse. Olhou para o relógio: hora e meia! Seus devaneios haviam ido longe demais.
Lembrou-se que já deviam estar todos preocupados com o seu desaparecimento, e procurou a saída.
Sua visão, entretanto, acostumada à escuridão, foi ofuscada pela claridade do dia, obrigando-o a fechar os olhos.
Quando tornou a abri-los, a cena que viu mais uma vez remeteu-o ao passado longínquo, à sua infância. Mas por que ? Nada havia demais naquele quadro: sua mulher, chorando, assustada com o seu desaparecimento, sua mãe, seu pai... todos naturalmente apreensivos. Desculpou-se, não devia ter-se isolado assim, não tinha sido intencional. Enfim, voltaram todos em sua companhia para continuarem gozando a alegria da reunião.
Mas para ele a domingueira havia acabado. Ao deparar com a cena de seus familiares na porta da gruta, relembrou nos seus mínimos detalhes os estranhos fatos ocorridos quando era menino, que haviam sido relegados a segundo plano por ele próprio, na época, como fantasias da idade. Preferiu silenciar. Ao menos até colocar a mente outra vez em ordem.
                               
O menino resolve explorar a gruta. Penetra-a, receoso e escolhe uma, entre as diversas galerias em torno do salão, para seguir em frente na sua irresponsável aventura.
Não anda muito, chega ao absolutamente escuro e tardiamente arrepende-se da empreitada. A gruta é um verdadeiro labirinto.Chora, desesperado, enquanto avança, com passos agora cautelosos, na total ausência de luz. Muito tempo anda sem rumo, e a sua angústia infantil parece estar chegando ao limite. Prestes a se deixar abater, percebe ao longe fraca claridade. Sem despregar os olhos da lusinha salvadora, que aumenta à medida que ele corre, não se preocupa com os empecilhos que possam existir, camuflados  na escuridão.
É realmente a saída. Quando chega a ela, é ofuscado por intensa claridade e pára, ofegante, para que seus olhos acostumem-se à claridade exterior. Ouve vozes. Vozes de pessoas preocupadas com a sua ausência. Mas quem são? Ninguém, naquele grupo, lhe é familiar. Sente-se adulto, mas sabe que não é. Continua a mesma criança de dez anos que se aventurou no desconhecido.
Começa, aos poucos, a ver o grupo que o espera. Vê uma mulher jovem, grávida, que o trata carinhosamente enquanto chora, aliviada, como quem passou por um bom susto. Uma senhora, já idosa, chama-o de meu filho. Sente que de alguma forma pertence àquele momento, mas nada compreende. Medrosamente volta para o interior da gruta, e se vê novamente envolto pela completa ausência de luz.
Refaz-se, aos poucos. Pensa em voltar e procurar aquela gente. Voltar ? Como, se nada vê ? O chão é liso e não há ruídos. Tateando pelas paredes e confiando que a altura da gruta seja suficiente segue adiante, sem rumo.
Novamente um pequeno ponto de luz aparece ao longe. Corre. É a saída. Torna a encontrar pessoas que o esperam com o mesmo ar preocupado, mas que o transformam em alegria incontida quando o vêem. Vê a mesma moça que vira antes, mais velha, acompanhada de um rapaz e de uma adolescente. Já não está grávida.
Não reconhece ninguém, e o local é também outro. Cai neve. Desta vez há um grupo grande, e não apenas os seus familiares, e um “oh!” de alegria e descontração escapa de todos, quando o vêem. Parece-lhe estar em uma estação de inverno. Examina-se. É forte e bem disposto, mas é muito mais velho, agora.
Conscientiza-se de que está vivendo outro tipo de aventura bastante diferente da que procurava o menino quando resolveu explorar a caverna.
E é também em consciência plena que desta vez volta ao seu refúgio. Refúgio tranquilo, escuro e silencioso, embora insondável. Caminha agora descontraído, sem medo de obstáculos que imagina inexistentes, pensando em qual seria seu novo contato com o mundo lá fora.
Não tarda a divisar novamente o ponto luminoso, que cresce com a sua aproximação. Já não corre para alcançá-lo. Mais um pouco e pode ver, na claridade, apenas uma velhinha, na qual reconhece agora a moça grávida da primeira excursão e a jovem senhora preocupada, da segunda. Ela ralha com ele, como quem admoesta uma criança, dizendo-lhe alguma coisa sobre a sua mania de desaparecer pela fenda daquela pedra, e que ele já não tem mais idade para estas brincadeiras de criança. Sente-se beirando os oitenta anos, embora, tanto quanto ela mesmo, com bastante vigor e saúde. 
Fica claro para ele que rápidos instantes de sua vida lhe estão sendo mostrados. Retorna à gruta, já familiarizado com as situações que se desenrolam nas suas tentativas de saída. Não sabe o que pretende com o retorno. Oitenta anos? Já não “viveria” por muito mais tempo, pensa. Imagina, pela lógica, que se novamente tentar sair será para presenciar os seus funerais.
E mais uma vez a luz se faz. Do lado de fora um casal o aguarda. Mas desta vez tudo é mesmo muito diferente. Um homem e uma mulher, que ele não conhece, vestindo roupas que nunca vira antes, chamam-no de “meu filho”. As mesmas brigas e preocupações de sempre. Ele é novamente criança, nos seus dez anos. Mas aqueles não são seus pais.


 Mais curioso do que assustado, desta vez resolve deixar a caverna, para tentar desvendar de uma vez por todas tanto mistério. Quando sai, se vê em uma elevação, de onde, longe, se avista o mar - que ele não conhecia, porque aos dez anos nunca havia feito uma viagem ao litoral. Se já estava começando a acompanhar o que seria uma progressão da sua vida, retornava, agora, às dúvidas do início.
Quem seriam aqueles que lhe sorriam com tanto carinho? Por que voltou a ser o menino de dez anos ?
Seus “pais” levam-no para uma casa que não é a sua. Um local diferente, com móveis e objetos de adorno que ele nunca havia visto antes. Tudo é muito agradável. Vê-se, de corpo inteiro, num grande espelho na sala. Mas não se reconhece. Não é o mesmo menino, tem outro rosto. Não veste apenas outra roupa, veste outro corpo também.
A viagem através da gruta parecia não ter fim. Não esperava ver a continuação da sua existência daquela maneira. Havia se preparado para assistir ao coro angelical das onze mil virgens, aguardando a sua última saída da toca. Não descartava também a possibilidade de vir a sentir o calor dos fornos rubros do inferno, de bocas abertas à sua espera, para todo o sempre. Mas... aquilo ? Por que novamente um menino?
Volta à gruta, o único lugar onde se sente seguro. É uma âncora no tempo. Aconchegado nas trevas, medroso e inseguro, sem nem mais a certeza de ser velho ou criança, imagina-se numa infinita caminhada, sem retorno, presenciando uma sucessão intérmina de corpos e aparências através das rápidas incursões no desconhecido, que a gruta vinha lhe proporcionando.
Parado, em pé, as mãos espalmadas sobre os olhos como se tentasse não ver as trevas, muito tempo se passa, tempo que lhe devolve a sensatez e o raciocínio para imaginar um meio de acabar com tão inusitadas excursões. Imagina que sua mente estava comandando-as. Logo, acha razoável que seja através dela que irá buscar a volta aos seus dez anos.
Começa, então, a se fixar no desejo de retornar à sua casa, ao convívio de seus pais. Concentra-se na sua família, no seu ambiente doméstico, nas suas roupas, seus brinquedos - tudo, enfim, que fazia parte de seu mundo infantil, daquela outra criança que bem conhecia, e não desta, de quem nunca tivera uma  só notícia.
Olha em todas as direções. E é num instante de maior concentração que novamente brota do desconhecido fraco ponto de luz. Mas desta vez também não corre, segue devagar.
Retorna à claridade. É o seu chão, a sua casa, o seu tempo. Radiante, corre para dentro de casa. Passa por sua mãe, atarefada com o almoço, e fecha-se no seu quarto. Chora, um choro infantil. Olha-se no espelho. É ele mesmo, outra vez. Não há dúvida, está em casa.

Mas o espírito infantil, imprudente e aventureiro era forte demais para encerrar por ali a fascinante experiência. Por isso, na manhã seguinte, após terminar a refeição matinal apressadamente, munido de um volumoso rolo de barbante e de uma lanterna de querosene, parte para tentar desvendar o mistério da gruta. Estava preparado para não se perder, desta vez, na escuridão.
Em frente à abertura da pedra amarra o barbante em arbusto próximo, acende a lanterna e enquanto desenrola pelo chão o novelo, penetra pela segunda vez o desconhecido, disposto a voltar com a curiosidade satisfeita...
Mas, para total decepção, não caminha mais do que dez metros. Tampouco a luz natural que ilumina a caverna se desfaz em trevas absolutas. Apaga a lanterna, solta o barbante e, na penumbra reinante, apenas um vasto salão se mostra à sua frustrada curiosidade, sem outras galerias ou comunicações, e não tem a menor dificuldade em distinguir a direção da fenda que lhe serviu de entrada. Em vão procura uma possível passagem dissimulada ou algo que justifique os acontecimentos da véspera. Desapontado volta para casa, sem conseguir entender porque foi protagonista de tão estranho episódio.
E jamais imaginaria que tudo retornaria com tanta lucidez à sua mente, trinta anos depois, após um festivo almoço com seus familiares...
                              
Enfim, estava de férias, e não eram férias comuns. Era mais uma extravagância financeira. Não tinha condições de se deslocar, com toda a família, para uma estação de inverno. Mas havia feito exatamente isto. Afinal, pensou, pouco faltava para completar sessenta anos, e embora saudável e bem disposto, achou que era hora de usufruir um pouco mais o tempo que lhe restava.
Endividou-se um pouco, até. Mas resolveu que todos juntos iriam conhecer e gozar as delícias da neve.
Naquela manhã, um grupo formado com os hóspedes do hotel faria uma excursão a pé pelos arredores e ele convocou os familiares para juntarem-se aos excursionistas. Uma caminhada na neve prometia ser um bom divertimento.
Sempre assessorado pelo prestimoso guia, o grupo já estava com meia hora de caminhada, quando ele foi se deixando ficar para trás, até se ver como o último da fila indiana. Fosse pela idade ou pelo seu espírito perquiridor, sempre atento às menores coisas que o rodeavam, acabou separando-se dos outros, embora não o suficiente, entretanto, para causar qualquer apreensão. Levava um cajado na mão e com ele ora ia medindo a profundidade da neve, ora soltando-a das pequenas encostas para vê-la rolar abaixo.
Quando passava por um trecho onde a aclividade era mais acentuada, debaixo de uma saliência de pedra, um grande bloco de neve desprendeu-se sobre a sua cabeça, e embora não o atingisse, enclausurou-o sob a rocha, que tornou-se um abrigo natural da pequena avalanche. Toneladas de neve tolhiam parcialmente seus movimentos e sua visão, mas estava bem. Passado o susto, examinou a situação e não se preocupou muito. A bolsa de ar que se formara era de bom tamanho e o manteria por algumas horas, tempo mais do que suficiente para que as providências de salvamento fossem tomadas.
Seus companheiros, com efeito, logo perceberam o acontecido. Mas estes sim, estavam preocupados - supunham-no soterrado na neve.
Logo veio o socorro. Após meia hora de angústia era vencida a barreira gelada, e para alegria de todos ele surgiu sem um só arranhão e respirando normalmente. Em uníssono, o grupo deixou escapar um - oh! - de alívio e alegria, por tê-lo de volta são e salvo.
Então, novamente a cena lhe era familiar...
Mais uma vez foi transportado à infância, relembrou a incrível aventura da gruta, o sítio de seus pais, a repentina luz que o cegava temporariamente e todas aquelas pessoas sorrindo de alívio...
Acompanhou os colegas de excursão na volta para o hotel, compartilhando da alegria, mas no íntimo divagando em seus pensamentos. No hotel, após ser obrigado a repetir várias vezes a história do acidente, instado pelos hóspedes, conseguiu se isolar a pretexto de um revigorante banho quente.
De uma coisa, agora, tinha quase certeza: após verem-se confirmados dois instantes de sua vida, de seu passado, pelo menos mais dois “flashes” de seu futuro lhe haviam sido mostrados. Não duvidava mais. E, se conhecia apenas estes dois momentos, teria sido porque ele próprio não tivera forças para continuar a viagem, que seria infinita através dos tempos...
Infinita, sim. Estava ficando tudo mais claro. Agora podia imaginar quem seria aquele outro menino. Sabia também que, se tivesse continuado com as suas explorações, haveria muitos e muitos meninos sucedendo-se através dos tempos, separados por túneis e grutas escuras - as próprias trevas em que estivera mergulhado até então.
Sabia também que ele, imortal, comandaria todas aquelas crianças, uma por uma, transformando-as em jovens e adultos, na constante busca da perfeição. Ele sempre fora e sempre haveria de ser o mesmo ser pensante que movimentaria aqueles veículos de carne, com os quais seria agraciado através dos tempos, em viagens que já não seriam por tão escuras cavernas...




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