quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

GABRIEL D'AQUINO

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 “Petrúcio deu a última tragada. Nunca fumava mais do que um terço do cigarro. Então, num gesto tipicamente seu, segurou-o pelo filtro com o polegar e o dedo mínimo, enquanto esmagava a brasa entre o indicador e o médio. De longe, jogou a ponta do cigarro na cesta de papéis, com precisão. Havia achado a solução para mais um intrincado mistério.”

Gabriel fechou o livro e deixou-se ficar na poltrona, olhando para a televisão desligada à sua frente. Que homem, esse detetive Petrúcio! Perspicaz, astuto, corajoso, era a imagem que sonhava para si mesmo. Mas não era só o detetive Petrúcio que o fascinava assim. Na verdade, a cada livro que lia - e era um devorador de livros - vestia-se na pele do herói. Ângelo Petrúcio não seria uma exceção.
Sem se dar conta, começou a imitar o gesto característico do personagem. Segurou o cigarro da mesma maneira que o policial e correu os dois dedos pelo cilindro de papel, esmagando lentamente o seu recheio até sentir o calor da brasa entre eles. Mas a dor o fez acordar de seu sonho. Decididamente, ele não era Ângelo Petrúcio, o gênio das causas insolúveis.
De um salto, correu para o lavatório e procurou atenuar a dor da queimadura com o frescor da água fria, enquanto se perguntava por que havia feito aquilo. A leitura o absorvera de tal modo que lhe parecia ter-se transportado para dentro do livro. Sentia-se ainda Ângelo Petrúcio, apesar das bolhas que começavam a se formar entre os dedos queimados.

A vida de Gabriel era insossa. Morava sozinho no pequeno apartamento, e os vizinhos nada sabiam de sua família ou de seus amigos. Ou mesmo se os tinha. Saía pela manhã para o trabalho e quando voltava, à tardinha, vinha quase sempre sobraçando alguns livros. Mal cumprimentava os vizinhos. Talvez eles nem dessem por sua falta, se algum dia desaparecesse. Era um tipo comum, quase sem identidade, e sofria por isso. A cada livro que lia transformava-se no personagem principal com tanta intensidade, que não raramente, ao final de cada história tinha dificuldades em retornar à sua insípida personalidade de escriturário. Já fora, sucessivamente, um renomado e aristocrático cirurgião, um guerreiro das Filipinas, um samurai japonês...
Agora, apagava a brasa do cigarro com os dedos, como fazia Ângelo Petrúcio.
A leitura fácil e a narrativa cativante haviam-no prendido à poltrona da primeira à última linha. Já era madrugada e ali estava ele com os dedos debaixo da torneira e o livro na outra mão: “O caso da identidade trocada”. Debaixo do título o número dois, em algarismos romanos.
Então era uma série... Ele não havia percebido. Fechou a torneira e retornou à sua poltrona. A ardência continuava, mas Gabriel já não se importava tanto. O que importava é que havia um primeiro livro, por certo a primeira aventura do infalível homem da lei. Agora mal podia esperar amanhecer o dia, para correr à livraria mais próxima.
No dia seguinte, com efeito, retornou do trabalho já com o livro nas mãos. Não preparou o seu lanche vespertino, tampouco tomou o indispensável banho. Sequer trocou de roupa. Procurou logo a sua poltrona e lançou-se com avidez à leitura.
Havia trazido o primeiro livro da série e por isso mesmo, logo nas primeiras páginas o autor esmerava-se em uma descrição minuciosa de seu personagem. O detetive Petrúcio era celibatário e morava sozinho em um pequeno apartamento entulhado de móveis, tapetes e cortinas pesadas, sempre fechadas. E livros, muitos livros. A pequena cozinha, desarrumada, atestava a sua solidão. Vivia para os seus livros, seus crimes quase insolúveis e sua poltrona predileta em frente ao aparelho de televisão, que já não funcionava há mais de dois anos. Mesmo assim, era fitando a pequena tela sem vida que lhe vinha a inspiração para solver os seus mistérios.
Gabriel levantou os olhos do livro e olhou para a televisão. Não, não estava quebrada. Mas ele nunca a ligava, preferindo os seus livros aos insossos programas rotineiros.
- Parece o meu apartamento... - Deixou escapar em voz alta, percorrendo o ambiente com o olhar. As mesmas cortinas espessas, os tapetes e os móveis empoeirados... Chegou a desejar que a televisão não estivesse funcionando, em absurdo raciocínio.
Sorriu, meneando a cabeça. Que idéia mais idiota... Suspirou fundo e retornou à leitura. O autor continuava a descrição do personagem, porém já não mais abordando os seus hábitos. Descrevia-o agora fisicamente : “...estatura mediana, olhar penetrante, nariz adunco e lábios finos, encimados por espesso bigode. O maxilar inferior saliente dava-lhe um ar rude à fisionomia, acentuado ainda mais pelos contornos da boca, voltados para baixo”.
Decididamente, este não sou eu - tornou a pensar alto - mas bem que gostaria... um bigode, pelo menos...
Entortou os cantos da boca para baixo, franzindo o cenho.
Mas a leitura o fascinava e o personagem o inebriava. Chegava a adivinhar as atitudes que ele tomaria e até mesmo suas deduções, no decorrer da trama. Usava o seu próprio raciocínio e a sua inteligência, antecedendo-se à leitura, prevendo o seu desfecho, como se fora ele próprio o autor da história. Ou o personagem.
Enfim, mais um caso resolvido: “Ângelo Petrúcio amarrou o cinto de sua capa de gabardine, levou o chapéu à cabeça e deixou o sargento cuidando dos detalhes finais. Precisava espairecer um pouco. Tomou o caminho da avenida arborizada que margeava o rio, andou durante algum tempo acompanhando com os olhos a correnteza e parou. Apoiou-se na balaustrada de pedra, segurou o cigarro com o polegar e o mínimo e separou a brasa rubra, esmagando-a entre os dedos, lançando-o depois à correnteza. Missão cumprida.”
Quando Gabriel fechou o livro, segurava ainda na mão o cigarro. Como Petrúcio. A brasa, feita em cinza, estava caída ao seu lado. Como Petrúcio. E não havia queimadura nos seus dedos. Como Petrúcio.
Examinou as mãos, como se não fossem as suas. Pois se ele as havia queimado, na noite anterior... Havia repetido o gesto de Petrúcio, mas desta vez não havia queimaduras. Não lhe pareciam suas aquelas mãos, aquelas unhas, aquele anel no dedo mínimo, ainda mais porque parcamente iluminadas pelo abajur da mesinha, única luz acesa no apartamento. Levantou-se, na penumbra, esforçando-se para sentir alguma dor entre os dedos. Foi ao lavatório, e em ato instintivo deixou jorrar água onde deveria haver uma queimadura. Mas não havia.
Levantou os olhos e mirou-se no grande espelho que encimava a banca de granito. Mas o rosto que o cristal lhe mostrou foi o de um homem de olhar penetrante, nariz adunco e queixo proeminente...

Cofiou o farto bigode com a mão ainda molhada. Chegou bem perto da sua imagem. Olhos nos olhos. Sorriu. E disse baixinho :
- Você está aí, detetive Petrúcio... Eu sei...
Acordou com as primeiras luzes da manhã. Ali mesmo, na poltrona. De olhos ainda semi-cerrados, mas lúcido, imaginava o que o esperava. Mais um dia comum, atrás de uma escrivaninha, garantindo o seu sustento. Depois, no fim da tarde, estaria naquela poltrona novamente, por certo iniciando a leitura de um novo livro, talvez - quem sabe? - o terceiro volume das aventuras de Ângelo Petrúcio.
Levantou-se, fez o café, torrou o pão dormido. Não havia pressa. Calmamente fez a primeira refeição do dia e vestiu-se. Enquanto se preparava, mais uma vez apanhou-se examinando os dedos. Inconscientemente evitava o espelho, sem saber bem com medo de quê. Talvez, quem sabe, por já estar cansado do seu rosto inexpressivo.
Ao fechar a porta do apartamento, cumprimentou o vizinho, que chegava com o leite e o pão. Seu cumprimento foi retribuído apenas com um olhar espantado e de incompreensão. Não se importou. Afinal, sempre fora anti-social e tampouco se interessava em melhorar a sua imagem. Mas o vizinho, este sim, estranhou-o. E muito.
Quem seria aquele desconhecido, saindo em silêncio do apartamento do sr. Gabriel, na penumbra da manhã ? Pois se era um homem sem amigos, o sr. Gabriel...
Gabriel ganhou a rua, mas andava a esmo. Os acontecimentos da véspera ainda não tinham sido bem digeridos. Era sua vontade não ir ao escritório e sim percorrer as livrarias atrás do terceiro volume (deveria existir...) das aventuras do seu ídolo do momento. Mas resolveu caminhar pela avenida arborizada, à margem do rio. Era um lugar calmo e propício às suas divagações. Resolveu parar. Apoiou-se no largo parapeito de pedra e deixou-se ficar ali olhando para as águas, não sabia se por minutos ou horas, enquanto seu pensamento parecia estar também sendo arrastado pela correnteza. Lenta, sim, mas transformando inexoravelmente em ontem o seu amanhã.
“- Nada do que foi será...”
Lembrou-se vagamente da letra da música. Levou a mão aos bigodes - bastos bigodes - e não estranhou, embora sabendo-os inexistentes. Sua mente também lhe parecia um rio, mas não como aquele à sua frente. Um rio caudaloso, onde sucediam-se vertiginosamente os seus pensa-mentos. Quem era Gabriel D’Aquino, acostumado a refugiar-se nos livros e na solidão, à cata talvez de uma identidade que não possuía ? Quem era esse homem sem amigos, sem parentes, sem tradição, que descia a correnteza da vida junto com as águas e ao sabor dela ? E agora, que fazia ali Ângelo Petrúcio, intrometendo-se em sua vida, impedindo-o de queimar seus dedos com brinca-deiras fúteis ?
Desta vez, jogou o cigarro no chão e amassou-o com a ponta do sapato. Não lhe interessavam mais as sutilezas infantis do detetive. Não queria ser mais ninguém além dele mesmo.
Mas Gabriel já não sabia quem era ele. Gabriel? Agora havia o anel, o bigode, o olhar penetrante...
Talvez fosse tarde demais...
Deu meia volta e deixou a beira-rio. Caminhava devagar, cabeça baixa e sem rumo, colocando maquinalmente um pé ante outro, vendo-os se sucederem como se não fossem os seus. Sentia travar-se angustiante e surda batalha entre Gabriel D’Aquino e Ângelo Petrúcio, dois personagens irreais, inexistentes, insistindo em mixarem-se, revolvendo-lhe as entranhas, queimando-lhe os dedos, brincando com aquele corpo que já havia pertencido a um samurai, a um guerreiro e a tantos outros personagens. As pessoas que passavam por ele pareciam estar em outro mundo, caminhando entre os capítulos de um livro, um volumoso livro que o engolia mais e mais a cada página virada.
Agora eram centenas de livros que o rodeavam e ele inebriava-se com aquela visão. Folheava-os sofregamente, atirando-os incontinenti para os lados e para a frente. Já os conhecia a todos, não havia novidades. Lançava-se a uma procura febril, à caça não sabia de quê, até que por fim um volume chamou-lhe a atenção: era a terceira aventura de Ângelo Petrúcio. De um salto, tomou-o com as duas mãos. Apertava-o nervosamente, quase danificando-o.
Aquele título... por que aquele título?...
- Pois não, senhor. Quer que mande embrulhá-lo?
As palavras do livreiro soaram como se uma bala de canhão atravessasse a sua cabeça. Não respondeu. Sua garganta fechava-se, sem voz. Automaticamente tirou um maço de notas do bolso e depositou-as sobre o balcão. Ato contínuo girou nos calcanhares e correu, correu sofregamente à cata de sua casa.
- Um momento, senhor ! O seu troco...
Havia muita gente em frente ao prédio. E polícia, também, carros com todas aquelas luzes vermelhas e brancas girando, como nos filmes de televisão. E a indefectível faixa amarela isolando toda a área. Ele já não corria, de nada mais adiantaria.
Caminhando lentamente, como se ainda estivesse à beira-rio, chegou ao local interditado. Na porta do pequeno prédio ninguém lhe impediu a passagem. Ao contrário, policiais facilitaram a sua entrada. Havia moradores espalhados pelos corredores.
Subiu as escadas que davam para o seu andar, sem ser molestado. A porta do seu apartamento estava aberta de par em par e um policial fazia perguntas àquele seu vizinho a quem cumprimentara ao sair, pela manhã. Quando o viu, o homem arregalou os olhos :
- É este, sargento ! É este o homem que vi saindo do apartamento do sr. Gabriel, pela manhã !
- Como, senhor ?
- Ele cumprimentou-me, eu me lembro bem ! Estava ainda clareando o dia, mas pude ver perfeitamente. Eu não me enganaria !
- Impossível, senhor... Este homem é o detetive Petrúcio. Ele esteve conosco por toda a noite, na delegacia. Talvez a penumbra tenha-o induzido à confusão...
O recém-chegado sorriu para o senhor, que emudeceu, extático. Depois, entrou na sala. E viu Gabriel D’Aquino sentado na sua poltrona, em frente à televisão, a cabeça pendente para a frente. Estava morto.
Olhou para a mão esquerda inerte, de onde ainda prendia um toco de cigarro. Queimara até atingir os dois dedos que o seguravam, o médio e o indicador.
Deixou-se ficar ali, de pé ao lado da poltrona, o olhar fixo em Gabriel D’Aquino, o homenzinho misterioso, soli-tário, sempre inconformado com a sua identidade.
Sua mão, no bolso do sobretudo de gabardine, aper-tava ainda nervosamente o terceiro volume da série poli-cial: “A estranha morte de Gabriel D'Aquino”.







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