segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

SEU ELIAS

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Um dia, eu estava, por acaso, nas proximidades da rua Oto, e resolvi dar uma chegada pelo querido local de minha infância. Alguém já disse: "Não volte a um lugar que lhe foi caro, pois certamente as suas boas lembranças hão de se apagar."
Nada mais certo. A cada passada eu constatava o dito popular. A minha antiga casa havia dado lugar a um prédio de apartamentos. As calçadas, estreitas, que a minha visão infantil teimava em me fazer lembrá-las alargadas, não comportariam mais as cabanas de galhos que fazíamos durante a poda anual as árvores, quando invariavelmente queimávamo-nos com a peçonha das lagartas, alvoroçadas com a destruição de seu habitat. O "outro lado" da rua, que sempre nos era apontado como território proibido, pois poderíamos ser atropelados por algum carro (que, aliás, passavam com intervalo de mais ou menos duas horas...), parecia-me agora muito mais perto. Enfim, tudo estava muito menor do que a minha percepção de criança deixara gravado em minha mente.
Uma ou outra casa ainda resistia, e eu as conhecia todas. Um tanto decepcionado, continuei meu passeio em direção à rua Morais e Silva, agora com tráfego intenso. Busquei o armarinho do seu Elias, ao dobrar a esquina. Não estava mais ali, embora o prédio ainda resistisse ao passar dos anos. Fora substituído por um botequim, bastante reles, por sinal. Veio-me à lembrança o tempo em que eu, com oito ou nove anos, ajudava o seu Elias a vender papel de embrulho para as moças da fábrica de biscoitos Aymoré, na hora do almoço. Era minha função cortar as folhas de papel cor de rosa e vender meia folha a cada uma delas, para que embrulhassem as marmitas vazias. Eu tinha até a minha caixinha de fazer troco... Em troca, sempre que ele abria uma caixa de sabonete Eucalol, para vender a varejo, eu ganhava as estampas. Eram três em cada caixa. Eu tinha a maior coleção do bairro e era invejado pelos outros garotos...
E o sabonete Dorly, que, como prêmio, inseria na massa moedas de dois mil réis? A tentação de furar com alfinete todos os sabonetes do estoque era grande. Um dia, o seu Elias deu-me um sabonete para que tentasse a sorte. Estava premiado! Saí com ele na mão por toda a vizinhança mostrando o meu achado, e por último voltei ao armarinho. Entrei na loja ofegante, e agradeci o presente premiado. Ele sorriu e disse-me "Mas que sorte a sua!..."

Eu já estava parado diante da loja do seu Elias há bastante tempo. Antes que os fregueses estranhassem a minha atitude, atravessei a rua e fiquei observando o boteco que insistia em desviar-me do meu sonho. A loja ao lado era ainda o mesmo armazém, embora um tanto melhorado, mas conservando ainda as características do típico comércio de bairro, que os supermercados encarregaram-se de destruir. Todo o resto do prédio estava até bem preservado, seus três andares de apartamentos não tinham sido alterados e o revestimento de pó de pedra era o mesmo. Somente o bar destoava do conjunto. Por que logo o armarinho do seu Elias tinha que sofrer metamorfose tão grande?
Foi então que ao meu lado parou um rapaz, que, embora muito mais novo do que eu, devia também ser chegado a uma nostalgia. Disse alguma coisa, que não ouvi bem. Mas a sua voz um tanto rouca chamou-me a atenção, por isso virei-me para vê-lo.
Era o seu Elias.
Mas era o seu Elias dos anos quarenta, de calças largas seguras por suspensórios, cabelos lisos um tanto ralos, penteados para trás, realçando a calva que se anunciava. Pensei: "A que ponto chegaram as minhas lembranças... Até o seu Elias achou de se mostrar nas minhas divagações..."
Examinei-o de alto a baixo. A mesma figura esguia e sóbria, o mesmo narigão adunco - marca da raça - o mesmo sorriso amarelado e sem jeito...
- Eu não sei o que houve... Fechei a loja, fui almoçar, agora volto e encontro esse botequim... Eu não sei o que houve...
Não falava exatamente comigo. Eu estava ali por acaso, não sei nem se ele me via ou não. Falava sozinho, coitado, e embora triste, não demonstrava nenhum espanto quanto ao seu armarinho ter se transformado em um bar durante o almoço.
- Eu não sei o que houve... - repetia monotonamente.
Percebi que outras pessoas iam e vinham, mas ninguém acusava sua presença. Pudera, se eu mesmo estava diante de uma figura mais velha, ou mais moça, sei lá, do que eu, e sem saber qual presença eu deveria acusar...
Com um certo receio de parecer meio maluco aos olhos dos outros, dirigi-me a ele:
- Como foi que isto aconteceu, seu Elias? De manhã estava tudo como antes?
Ele olhou para mim demoradamente, como se eu estivesse sendo o único a ouvir suas queixas. Não demonstrou nenhuma curiosidade em saber como eu sabia seu nome.
- Quem é o senhor?
Não respondi. Eu sim, é que estava perplexo por ele ter me ouvido. Também não esperou a minha resposta. Mas, desta vez, falou dirigindo-se a mim:
- Saí para o almoço, logo depois que as meninas da fábrica vieram aqui. Tenho tido muito trabalho, porque nessas horas aquele moleque me ajudava muito. Por isso, tratei de almoçar rápido. Quando voltei, vi este botequim...
O moleque era eu.
- Mas isso aconteceu hoje?
- Venho aqui todos os dias, meu senhor. É sempre a mesma coisa...
Apontava desconsolado para a loja. Entrei no seu esquema:
- Por que você não abre novamente o seu armarinho? Em vez de vir depois do almoço, traga a sua refeição e almoce na loja. Assim, você garante que ela não será transformada.
Ele ficou me olhando, pensativo, com o sorriso amarelo que eu já conhecia.
- Será que vai dar certo?
- Claro que vai! É só você ter muita vontade, ficar com o pensamento fixo no seu desejo. Você vai ver... Vai ter o seu armarinho de volta.
Os olhos dele brilharam, como se eu fosse o dono da verdade. Despedi-me, sem antes incentivá-lo ainda mais na empreitada sugerida, e segui meu caminho. Olhei para trás. Ele estava sentado no meio-fio, olhando para o outro lado da rua, sem entender a aparição do boteco. Com certeza, agora cheio de confiança em retomar a sua loja.
Passou-se o tempo. Voltei lá umas duas ou três vezes, mas não mais o vi. Obviamente, o bar estava no mesmo lugar.

Somente agora, que também voltei para este lado, lembrei-me de procurá-lo. Fui à rua Morais e Silva, quase certo de revê-lo, para contar-me a mesma história, desde o começo.
Não me enganei. Lá estava o seu Elias no seu armarinho, por trás do balcão, de braços cruzados aguardando os fregueses, exatamente como ficava há sessenta anos atrás. Entrei na loja e dirigi-me a ele.
- Seu Elias, como está? Hoje não vim comprar nada... Só conversar.
- Mas uma boa conversa é sempre bem vinda. Estou aguardando as moças chegarem...
- Vejo que conseguiu reabrir a loja. Meus parabéns!
- Mas... eu nunca a fechei...
De alguma forma ele conseguira apagar a antiga decepção. Contornei a situação:
- Bem, é que um dia eu passei aqui e não o vi. Deve ter sido num domingo... Mas, então? Como vão as coisas?
- O movimento caiu muito. Só quem vem aqui agora são as moças da fábrica...
- E no resto do dia?
- Ninguém entra na loja. As pessoas passam em frente, mas ninguém sequer olha para as vitrines. Só uma vez, que eu estava em pé na porta, quando aproximou-se uma senhora puxando um cachorrinho pela coleira. Quando me viu, o danado pôs-se a latir como se tivesse visto um fantasma... A dona ficou assustada e arrastou-o para longe. Mas ela mesmo, nem me viu...
Não estava em mim acordá-lo. Seria um assunto muito longo, e certamente ele não aceitaria os meus argumentos. Pois se o armarinho estava ali, seria porque ele havia conseguido "reabri-lo". Ou... nunca o teria fechado, segundo ele próprio.
Enquanto conversávamos, chegaram, em bando alegre, as moças da fábrica Aymoré. Ele já havia cortado as folhas de papel de embrulho e atrapalhava-se para atender diversas moças ao mesmo tempo, debaixo da algazarra natural que elas faziam. No meio da confusão, dirigiu-se a mim:
- Não tenho mais o Maurício para me ajudar. Prestava-me grande ajuda, o danadinho.
- Você nunca mais o viu?
- Nunca mais. Era um bom menino. Sabe? Apesar de ter apenas oito anos, ele nunca aceitou nem um trocado, por me auxiliar. Dizia que fazia só para me ajudar. Queria que o senhor visse a alegria dele quando eu lhe dava estampas Eucalol. Era muito mais do que dinheiro... E o sabonete Dorly, que andou dando prêmios, embutindo moedas no próprio sabonete? Um dia tirei um para meu uso e furei-o, para ver se trazia o brinde. Estava premiado. Disfarcei o furo, embalei-o novamente e dei de presente a ele. Mais tarde veio todo alegre mostrar-me a moeda de dois mil réis. Estava exultante...
Surpresa para mim. Só ali, naquele instante, tomei conhecimento da "armação" a meu favor...
Vendo o tumulto formado, ofereci-me para ajudar.
- Mas o senhor não entende nada...
- Entendo sim, seu Elias, mais do que você pensa...
Comecei a fazer as vendas com ligeireza, e num instante tudo acabou. Senti falta apenas da minha caixinha de troco. As moças foram saindo até que a última se foi. Pudemos conversar, então.
- Como é, seu Elias? Satisfeito em ter sua loja novamente?
Esqueci-me que ele havia dito que nunca a fechou. Respondeu-me com outra pergunta, aquela que ficou no ar, quando estávamos em planos diferentes.
Ele olhou-me, desconfiado com os acontecimentos, e perguntou-me, agora sério:
- Quem é você?
- Você não me conhece. De nada vai adiantar dizer quem eu sou.
Mais uma vez ele se satisfez com a minha resposta. Porém senti que havia algo de errado com ele. Não estava feliz na sua loja. Arrisquei:
- O que está lhe preocupando?
Ele baixou a cabeça e apoiou-se no balcão, com os braços abertos.
- O senhor notou? Estou mesmo preocupado. Não consigo dissimular. Acho até que espanto os fregueses. Ninguém mais vem aqui...
- O que é que o está entristecendo?
- Estou num dilema e ninguém pode me ajudar. Não sei se estou certo em permanecer aqui. Às vezes eu sinto que estou parado no mesmo lugar, e isso não é bom.
- Realmente ninguém pode criar raízes para sempre. Temos que melhorar, a cada nascer do sol...
- Eu sei. Por isso mesmo é que estou pensando em acabar com esse negócio. Mas ainda estou inseguro, sem saber se devo ou não fazer isso. Algo me diz que eu tenho que ir em frente, que um dia tudo isso terá que acabar...
- Acho uma boa idéia. - arrisquei. Eu sabia que a decisão era a melhor solução para ele, mas precisava chegar a ela por si mesmo.
Nesse momento chegaram as moças da fábrica, na alegre algazarra de sempre.
 - Estou cansado... Olhe para estas moças: esta cena se repete todos os dias, e mais de uma vez por dia. Não compreendo porque, se a hora do almoço é uma só... Elas vêm, conversando sempre o mesmo assunto, entram aqui na mesma ordem, e até os movimentos que fazem, as risadas, as brincadeiras, são os mesmos. Todos os dias, todas as horas!... A única diferença nesta cena, hoje, é que você está aqui, senão, quando a última moça fosse embora, eu voltaria ao meu silêncio, ao meu isolamento atrás desse balcão.
O pobre homem estava desolado, sem saber o que fazer. Mas estava no caminho certo.
Enquanto mais uma vez eu servia as moças, continuamos o diálogo. Ele estava, como sempre, atrapalhado com suas freguesas, mas isso não impediria a nossa conversa.
- Que falta me faz o Maurício...
Disse isso com tranquilidade, como se o Maurício fosse pessoa já conhecida por mim. Sem querer, acertou.
- Você nunca mais o viu?
- Nunca mais. Acho que a família mudou-se. Ele era muito esperto, dava conta do recado muito bem.
- É mesmo? Para a idade dele, só mexer com a caixinha de troco sem errar já era de se estranhar...
Seu Elias olhou-me, arregalando os olhos:
- Quem lhe falou da caixinha de troco?
Tinha que sair dessa honradamente, ainda que precisasse mentir um pouco.
- Você mesmo, seu Elias.
- Eu não! Em hora nenhuma comentei sobre essa caixinha.
Ele olhou-me muito sério. Estava já desconfiado de alguma coisa. Pela terceira vez fez-me a mesma pergunta:
- Quem é você?
Não tinha mais como omitir a minha identidade.
- Quando eu era criança, tinha a maior coleção de estampas Eucalol do bairro. Graças a você, seu Elias...
- Você... é o Maurício?
Sorri para ele, enquanto fazia um sinal afirmativo. Seria normal ele assustar-se com aquele velho na sua frente dizendo ser o Maurício. Mas não, para ele eu era o amigo e o ajudante de balcão que cuidava do bando de moças, todos os dias, não lhe importava a minha aparência...
Segurou-me pelos dois braços e deu-me uma sacudidela:
- Você sumiu, Maurício! O que houve? Esqueceu-se do companheiro?
- Cresci, seu Elias...
- Ora vejam só! O moleque cresceu mesmo! Vejo que eu também preciso modificar essa minha vida. A sua chegada por aqui foi muito boa, agora não tenho mais dúvidas. Vou acabar com este armarinho!
E, saindo de trás do balcão, pedindo licença entre as freguesas de todos os dias, bateu nas minhas costas:
- Vamos embora?
- Tem certeza de que é o que você quer?
- Claro, estou mais do que certo!
Seu Elias estava animado. Era a resolução certa que estava tomando, embora ainda não percebesse.
- Então vamos.
Pus a mão em seu ombro e deixamos a loja conversando. À medida em que caminhávamos, atrás de nós o armarinho, as moças da fábrica Aymoré, a rua Morais e Silva, todo aquele mundo que ele construiu começava a volatilizar-se, até desaparecer por completo...



 


   

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