terça-feira, 1 de março de 2011

A JANELA

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 - Está estranho, o Edu. De ontem para hoje, está radicalmente mudado. Como é que pode, Andrea?
- Mudado, em que sentido? Você esteve com ele ontem, Vinícius...
- Pois é. Mas está com um comportamento completamente diferente. Você se lembra das histórias que lhe contei, que ele às vezes vem tendo visões estranhas quando chega em uma das janelas da casa?
- Claro. Não é difícil entender que, quem more no largo do Boticário e tenha uma casa que é, em tudo, uma residência do início do século dezenove, inclusive nos costumes...
- ...Comece a ver cenas típicas daquela época. Não foi isso que ele já disse, diversas vezes?
- Foi. A mim mesmo ele relatou algumas dessas cenas.
- E então? Hoje, encontrei-me com ele, e no meio da conversa ele disse-me que nunca viu cena nenhuma, que não entendia por que eu estava inventando aquilo.
- O que? Nunca viu?
- E mais: disse-me, até sorrindo, que eu é que estava com um comportamento estranho, falando aquelas coisas.
- E a Célia?
- A Célia parece-me que pirou junto com ele, porque concordava com tudo o que ele dizia.
- Ela também? E a Rosa?
- A Rosa, você sabe, já é da família, de tanto tempo que está com eles. Concordava, com seu silêncio e seu sorriso de Mona Lisa.
Andréa não conteve uma gargalhada.
- O que foi?
- Ora, Vinícius, você tem cada uma... Imaginei logo Da Vinci pintando a Rosa, pretinha daquele jeito, na pose de Mona Lisa...
- Mas o sorriso é igual...



-Aconteceu ontem de manhã, Vinícius. Quando abri a janela, lá estava. Era como que um footing matutino, onde não faltavam as sinhazinhas, acompanhadas de seus pais, as mucamas, os escravos na fonte, abastecendo suas moringas, tudo, tudo tão verdadeiro, tão vivo...
- E então?
- Fechei a janela assustado... Quando tornei a abri-la, quase em frente à minha casa estava estacionado um carro zerinho, reluzente...
- Com certeza você teve alguma indisposição, Edu. Um mal estar, às vezes, desencadeia estas situações que não se explicam.
- Deve ter sido uma experiência fascinante.
- E foi mesmo, Andréa. Inesquecível. Mas um mal estar não provocaria nada a esse ponto. Além do que, eu estava me sentindo muito bem. Vocês sabem, eu não bebo, alimento-me frugalmente, e havia acordado após uma noite de sono tranquilo... E acordara mesmo, nem estava sonhando.
- Eu sei. Mas o quarto escuro, a manhã de sol muito claro, tudo deve ter contribuído. Quando você abriu subitamente a janela, a claridade excessiva feriu seus olhos. Isso se chama “deslumbramento”, creio eu, em medicina. O deslumbramento provoca às vezes visões que parecem reais.
- Olhe, fiquei mesmo deslumbrado, quando vi o pacato largo do Boticário retornar ao que era no início do século dezenove, com toda aquela gente passeando, os escravos na sua lida diária, tal como num quadro de Rugendas. Fiquei, sim, deslumbrado e assustado.
- Assustado, por que? Foi um episódio passageiro, eu garanto. Não deverá se repetir.
- Assustado, sim, porque ao mesmo tempo que foi deslumbrante, quando vi toda aquela gente lá em baixo veio-me um sentimento inexplicável de... culpa! Por que, não sei. Ainda assim, quisera eu que a cena se repetisse! Você já pensou? Eu desceria correndo as escadas...
- Culpa? Não entendo. Meu caro, quando você tomou posse desse sobrado, eu tinha quase certeza de que alguma coisa desse tipo iria acontecer. Olhe só como ficou esta casa: os móveis, os lustres, a pintura das paredes, tudo está idêntico aos mil e oitocentos e pouco. Você fez questão de voltar ao passado, com toda a fidelidade. Só faltava o exterior. Agora, pelo que vejo, nem isso... Por que, a culpa? Pela restauração que você fez?
- Não, não. Foi a cena, mesmo. Algo com os escravos, não sei. Eu disse que desceria as escadas correndo, mas sei que não me sentiria bem naquele ambiente. Parece-me que eu iria sentir-me um outro homem.
- E aqui dentro? Você sente culpa de alguma coisa? Se tudo é tão fiel...
- Nem tanta é assim a fidelidade. Afinal nós estamos no coração de Laranjeiras, em pleno Rio de Janeiro. E no século vinte e um. Tenho água quente encanada, luz elétrica, uma televisão de plasma...
- ...Que ninguém é de ferro... - era Andréa que aparteava - Mas o fogão não é a lenha? Diga-me: como conseguiu convencer a Rosa a cozinhar naquele belo fogão que vi? E a lenha, onde arranja?...
- Não foi difícil. A Rosa faz parte da família desde que eu era garoto. Foi minha ama de leite. Já cozinhava a lenha, não foi novidade. Ela adorou quando disse que a queria comigo. Gosta daqui, desse ambiente. Quanto à lenha, preciso de muito pouca. Trago uns “gravetos” lá do sítio, que duram a semana inteira. Mas... tenho o gás, para as emergências.
- Não vi...
- É claro... Está bem camuflado, tanto quanto a tv, as lâmpadas, o telefone... Para dar mais autenticidade.
- Vocês dois estão de parabéns. Está tudo perfeito. A casa “retornou” ao século dezenove...
Célia, até então calada, exclamou:
- Pois é. Agora, isto...
Vinícius tentou uma explicação nada convincente:
- É, Eduardo. Você mexeu com a sua mente. Do jeito como você “viaja”, foi fácil criar um quadro vivo de Rugendas, como você mesmo disse, para tornar ainda mais perfeita a sua imaginação. Afinal, o estado de conservação desse largo e de todas as casas em volta dele é impressionante.
- O largo e tudo o mais nele contido estão no livro do tombo da União.
- Eu sei. Mas, mais do que ninguém vocês levaram a sério esse tombamento. As casas dos seus vizinhos não têm um interior elaborado como a de vocês.
- Isso é verdade. Mas nada disso explica a minha visão. Quando eu abri a janela e fui à sacada, os passantes olhavam para cima, alguns sorriam e me cumprimentavam com um meneio de cabeça... Não só eu os via. Eles me viam, também...
- Você queria que eles estivessem lhe vendo.
- Ora, Vinícius, não é tão simples assim. Eu vi toda aquela gente, e fui visto por eles, tenho certeza.
- Esquece, cara. Foi agradável, apesar da sensação de culpa, não foi? Então? Fique com a lembrança. Não apure...

“Não apure”... Se era tão fácil para Vinícius, era impossível para Eduardo deixar o acontecimento de lado. A visão que teve do Brasil colônia, de sua sacada, havia sido como que o coroamento da minuciosa restauração a que se entregaram, ele e Célia, com dedicação e carinho, e que lhes tomara dois anos de trabalho. Mas... culpado de quê, estaria se sentindo? E a sensação de querer retornar, consertar alguma coisa que deixou pendente?

Edú havia recebido como herança, de seu pai, o imóvel do largo do Boticário, lugar onde nenhum dos proprietários das oito casas pensaria em vender suas preciosidades.
Depois das obras, da compra dos móveis - autênticos, peregrinados, um a um, em lojas de antiguidades - da decoração caprichada, resolveram logo mudar para lá e viver a vida colonial. Mas... com muito mais conforto do que seus antecessores.
Estavam realizados.
Agora, logo na primeira manhã na tão antiga quanto nova residência, é brindado com muito mais do que esperava: o ambiente havia criado vida, vida de verdade, ainda que tenha sido apenas por alguns poucos segundos, mágicos segundos que o transportaram pelo tempo a quase dois séculos passados.
Não conteve o susto, inevitável. Fechou violentamente a janela, deu três passos atrás e tropeçou, caindo sentado na cama. Ali ficou algum tempo, refazendo-se, e quando levantou-se, novamente abriu a janela de par a par, o pacato e sombreado largo reluzia, vazio, ao sol da manhã.
- Meu Deus, por que fechei a janela?...
Um carro, reluzente, estava estacionado no meio-fio em frente.
- Que heresia... - foi o que conseguiu resmungar, entre dentes - Ainda se fosse um cabriolet...
Voltou para o quarto, e ainda em pijamas, ganhou a cozinha.
- Bom dia, seu Edu. O café está quase pronto.
Talvez esperasse ver a Rosa com um vestido de algodão cru, alvo e quase arrastando no chão, contrastando com sua negritude, e um torso bem enrolado escondendo os cabelos, sorrindo com seus dentes muito brancos.
Mas, não; sorrindo, até que estava, que ela sorria sempre. Mas seu devaneio terminara com a inusitada cena barroca.
- Bom dia, Rosa. Onde está a Célia? Acho que preciso mesmo de um café bem forte. Não estou muito legal.
- Por que, seu Eduardo? Ressaca não é, o senhor não bebe... D. Célia já saiu, foi fazer as compras.
- Antes fosse ressaca, Rosa. Ressaca se cura.
- “Qué que” aconteceu? O senhor está branco...
- Deixa pra lá, Rosa. Não foi nada. O Lindolfo me ligou?
- Quem? Quem é Lindolfo?
Edú consertou, sem saber porque havia mencionado aquele nome:
- Não... O meu amigo, Vinícius. Não sei de onde tirei esse nome, Lindolfo...
- Ah, o Vinícius. Não, senhor. Mas são sete e meia, ainda...
- É verdade. Eu é que estou ansioso para mostrar-lhe a nossa nova residência.
- Quanta bondade... “nossa”... Nossa por que?
- Rosa, Rosa... Você é da família... O que é meu e de Célia,, é seu...
Rosa sentiu-se enrubescer, mas Eduardo jamais notaria. Ela sabia que era sincero o que ele havia dito. Ele viveu sozinho, na companhia dela, durante muito tempo antes de conhecer Célia, e não tinha então mais ninguém além da sua mãe preta. Mas o seu pensamento o traia, às vezes. Quando olhava para ela, imaginava-a escrava, ainda. Por que aquilo? Era forte a sensação, que intimamente a combatia com veemência. Se seu sentimento por Rosa era quase filial...
- Quero que ele venha aqui hoje com a Andrea. Você viu que nesses dois anos não quisemos que nenhum dos nossos amigos visse a obra de reforma da casa? Acho que a surpresa deles vai ser grande.

-Pois é, Vinícius. É fácil você me aconselhar com um “não apure”. Seria o que você faria, talvez?
- Não, meu caro, certamente não... Mas, o que fazer?, se a situação foi-se, como veio. O que aconteceu foi um episódio fortuito. Não deve se repetir.
- É pena. Eu daria tudo para viver naquela época, apesar das mazelas que existiam.
- Mas você não disse que não se sentiu bem, ao ver a cena?
- Ainda assim.
- Os trabalhos de Debret e Rugendas são apenas relatórios artísticos. As atrocidades cometidas não cabiam em folhas de “canson”.
- Alguma coisa me atrai para aqueles tempos. Às vezes sinto que não é nem algo bom, ao contrário, angustia-me um pouco.
Célia interrompeu-o :
- Sabe, Vinícius? É curioso, acontece o mesmo comigo. A impressão que tenho é que fiquei - ou ficamos - “devendo” alguma coisa, naqueles tempos tão remotos.
- Devendo, como?
- Não sei... Às vezes acho que eu e Edu partimos antes de pormos os pingos nos “is”...
- Ora, nós todos podemos ter vivido na colônia. E os pingos nos “is” têm que ser colocados agora, hoje.
- Eu sei... É apenas uma sensação estranha, que acaba por nos dar essa vontade de viver por lá, como se pudéssemos consertar algo que ficou pendente.
- Isso está ficando muito complicado. O melhor é fazer o que eu disse: não apurem... Deixem o barco correr... Não vai haver mais cenas do Brasil Colônia, vocês vão ver. Foi um deslumbramento...
- Mesmo porque nada se pode fazer... 
Célia estava conformada.
- É verdade. A minha janela tentou encenar-me uma novela de época, mas eu desliguei a tevê...   

Mas... a “novela” não parou por ali. As cenas repetiram-se, sim. Muitas vezes. A intervalos cada vez mais curtos. Porém, mesmo que nesses momentos Edu mantivesse a janela aberta, elas se desvaneciam lentamente, até a praça voltar ao seu aspecto normal.
Ele já as aguardava com ansiedade, a cada dia, a cada noite que chegava perto da janela. Quando a abria e via apenas o tranqüilo e pacato largo de todos os dias, ficava decepcionado :
- Meu Deus, onde está o meu largo?  
Edu resolveu não comentar nada mais com seu amigo. Não adiantaria, ele continuaria invocando a forte claridade da manhã. Só que agora os “deslumbramentos” ocorriam também à tardinha ou à noite, na penumbra do mal iluminado largo do Boticário dos mil oitocentos e pouco. Se tomasse conhecimento, o incrédulo Vinícius haveria de continuar arranjando explicações, a seu modo, para os estranhos fenômenos.
Uma noite Célia estava com ele no quarto, quando mais uma vez o largo iluminou-se ante seus olhos.
- Célia ! Rápido, venha até a janela !
Ela juntou-se ao marido :
- Meu Deus, Edu ! O que é isso? Eu também estou vendo !
- Diga-me, Célia ! O que você está vendo?! Não sou apenas eu que vejo, então?
- Não, Edu ! Lá estão todos, olhando para mim, sorrindo, olhe, aquele senhor acena para nós ! Não feche a janela, Edu, vamos descer !
Correram, os dois, tropeçando nos móveis, atropelando-se escada abaixo, e ganharam a porta da rua. Abriram-na de par em par.
 Mas não havia ninguém no largo. A lua cheia iluminava-o mais do que os lampiões, embora adaptados para luz elétrica.
- Você viu, Célia, você também viu ! A coisa não é assim tão simples... E Vinícius aconselhando-me com o “não apure”... Eu sabia, eu sabia que havia algo...
- Que coisa maravilhosa, Edu !
Porém, desse dia em diante nada mais aconteceu. Mas de uma coisa tinham agora certeza : não eram “deslumbramentos”... Resolveram, então, não mais comentar com os amigos os insólitos acontecimentos. De nada adiantaria.
A cada dia, a cada mês que se passava sentiam-se mais e mais integrados à vida colonial que eles mesmos criaram. Dentro de casa, eram verdadeiros cortesãos, esquecidos do gás encanado, da televisão que permanecia muda e da água que vinha das torneiras. Às vezes, abdicavam até da luz elétrica em favor dos lampiões a querosene espalhados pela casa. Estranha e curiosa vida, que apenas se modificava quando ganhavam a rua, onde, obviamente, tudo pertencia ao século vinte e um.
Uma noite, porém, estavam curtindo um desses devaneios vestidos a caráter, como gostavam de estar, em seu faz-de-conta. Já quase esquecidos das cenas que a janela esporadicamente lhes proporcionava, foram até ela, e mais uma vez abriram-na de par a par.
Viram, até sem surpresa, a cena tão conhecida se repetir. Debruçaram-se na sacada, para melhor apreciar o quadro vivo de Rugendas...
Foi quando um jovem casal que passava em frente à janela olhou para cima e sorriu para eles. O rapaz exclamou:
- Então, Eduardo, vocês não vão descer?
Ele acenou para os dois, respondendo:
- Num momento, estamos acabando de nos aprontar.
Fechou a janela, cedeu o braço à Célia, que aceitou a gentileza, sorrindo. Juntos desceram as escadas e ganharam a rua.
O século vinte e um havia ficado definitivamente para trás.



-Já estávamos sentindo falta da presença de vocês. São tão agradáveis os nossos passeios noturnos... Ainda mais agora, que tão melhorada está a iluminação, com o gás nos lampiões.
- Não deixaríamos de vir, mas você sabe como são as damas. Esta aqui leva horas diante do toucador, a ajeitar as madeixas... Eu há muito estou pronto.
- Isto é verdade, Célia?
- Meia verdade... O meu senhor aqui também gosta de enfeitar-se.
Lindolfo e Palmira eram seus vizinhos no largo. Vizinhos também em suas fazendas de café, para onde, juntos, iam cuidar do gado e das plantações. Na cidade, continuavam o bom relacionamento que tinham no campo.
Em um canto da praça, um grupo de escravos observava, em silêncio, a alegria de algumas crianças brincando com uma bola.
- De quem são esses escravos, Lindolfo? O que fazem aqui, a esta hora?
- São meus, Eduardo. Pedem, vez por outra, para apreciar o movimento. Não posso recusar.
- Contanto que fiquem quietos...
- Mas por que não ficariam? Você precisa ser mais tolerante, meu compadre.
- Eles têm suas reuniões, suas festas. Nós não participamos delas. Cada um no seu lugar, não creio que seja intolerância.
- Eles sempre nos convidam. Já fui a várias.
- Pois eu jamais vou querer misturar-me à negrada. Ora... convenhamos, Lindolfo.
Célia reforçou as opiniões do marido:
- Por mim, só quero ao meu lado minha mucama, ela me é muito útil. Não gosto de intrometimentos.
Eduardo era conhecido na Corte por suas maneiras ríspidas no tratamento com os escravos. Era severo aos menores erros de suas peças, como chamava seus trabalhadores, e não hesitava em castigá-los, quando os julgava merecedores. Célia, talvez por influência de seu marido, seguia os seus passos.
Lindolfo calou-se. Não eram novas para ele as opiniões do amigo, que lhe causavam profunda tristeza. Exceto pelo tratamento dado aos seus escravos - o que já era suficiente para traçar-lhe a falha de caráter - mostrava-se sempre bom e fiel amigo, pronto para ajudar a todos em qualquer eventualidade. Gostava de Eduardo.
Resolveu não mais tocar no assunto. De nada adiantaria. Era preferível aproveitar o momento de confraternização. Voltou os olhos para seus escravos. Eram nove ou dez, sentados na mureta que circundava parte do largo, que riam, observando - de longe - as crianças, os sinhozinhos, como as chamavam.
Invadiu-lhe um sentimento de tristeza incontrolável. Meu Deus, eram pessoas iguais a ele, a Eduardo, a Célia... que apenas pela cor da pele eram submissos às vontades de seus senhores. Não conseguiu conter-se. Chamou um outro escravo, que vendia espigas de milho cozido, e distribuiu-as entre os negros. Eduardo não se conteve, foi ao seu encontro.
- Que absurdo está fazendo, Lindolfo?
- Ora, Eduardo, que mal há nisso? São gente como nós...
Os negros, assustados e respeitosos, depuseram as espigas na amurada.
- Você não devia misturá-los conosco. Nem sei se são gente.
Lindolfo não respondeu, acabrunhado.  Baixou a cabeça e começou a riscar o chão com a bengala, enquanto “pensava alto”:
- Esses negros lembram-me os touros.
- Os touros? Que bobagem é essa?
- Como aqueles, se imaginassem a força que têm, não seriam tão submissos...
- Meu caro Lindolfo, deixe-se de fantasias. São, sim, toupeiras como os touros. Por isso não reagem.
- Não, Eduardo, como os animais, o que eles não têm é uma liderança. Deixe que esta apareça, um dia. - e, após breve pausa - Talvez não seja para nosso tempo. Ainda há muitos “Eduardos” por aqui.
- Vamos embora, nossas esposas nos esperam. Não vamos nos indispor por causa de um grupo de negros.
Lindolfo sorriu para o “grupo de negros”, que conti-nuava respeitosamente quieto:
- Peguem suas espigas. A praça é de todos...

No dia seguinte, Eduardo e Célia estavam na janela, observando os escravos que cruzavam o largo, em seus afazeres.
- Não gosto da maneira como Lindolfo trata seus negros. Não duvido que pelas costas eles tramem algo para prejudicá-lo.
- Não é o que dizem. Por que fariam isso, se ele parece ser muito benquisto na fazenda e todos trabalham satisfeitos?
- Satisfeitos e escravizados? Isso não existe. Língua do povo...
- Pode ser. Mas lá não há troncos nem gargalheiras. Se não há escravos fujões...
- Olhe, falamos nele, vem chegando.
Lindolfo aproximava-se, já de longe cumprimentando-os.
- Bom dia, Eduardo. Senhora...
Célia respondeu, convidando-o à sua casa.
- Suba, Lindolfo. O que o traz por aqui?
- Boas novas, meu amigo. Ao menos para os meus escravos.
- Para os escravos?
- Sim. Fiz algo que já deveria ter feito há muito tempo. Alforriei-os todos, esta manhã.
- Como? Enlouqueceu, Lindolfo?
- Por que acha que perdi o juízo? Não queira saber o que mais aconteceu.
- Ainda algo mais?
- Nenhum deles quis sair da minha fazenda. Preferem continuar trabalhando para mim, ganhando um soldo, não mais como escravos. São homens livres, agora. Mais de duzentos... Não é formidável?
Eduardo estava surpreso. Jamais faria algo semelhante, pensou.
- E o seu prejuízo? Quanto há de gastar para pagar toda essa gente?
- Ora, Eduardo, você tanto quanto eu sabe como os negros nos dão lucros. Há de sobra para todos. Para mim e para eles. Vejo que os chamou de gente... Já é alguma coisa...
- Olhe como fala: “para mim e para eles”... Já os nivela assim?
- São gente, meu caro. Como você e como eu...
- Não como eu.
De repente, um escravo irrompe na sala, esbaforido cortando a conversa, vindo da cozinha.
- Sinhô, o capitão Estevão está chamando o patrão na fazenda, disse que tem pressa !
- Outra fuga, negro?
- Não sei, sinhô. Disse para o patrão ir a galope !
- Desculpe-me o transtorno, Lindolfo. Vou ter que deixá-lo. É só afastar-me da fazenda para que me mandem chamar. Não quer vir comigo?
- Vamos, sim. O que será de tão grave que aconteceu?
Seguiram os dois, preocupados. Após duas horas de viagem, encostavam na porteira, que o escravo apressou-se em abrir, guiando-os, em seguida, até onde estava o capitão de mato. Amarrado ao tronco, jazia um homem, aparentemente já morto. Ajoelhada a seus pés, uma negra apertava em seu colo uma criança recém nascida.
- Que significa isto?
- Bom dia, coronel Eduardo. Esses negros sem vergonha estão acabando com a minha paciência. Mas por que o senhor está aqui?
- Se mandou me chamar... E mais, com pressa...
Estêvão olhou para o escravo que trouxera os dois coronéis. Soltava chispas pelos olhos.
- Não ia lhe incomodar por uma bobagem, coronel. Esse negro chamou-o por sua própria conta. E, virando-se para o negro :
- Não perde por esperar...
- Mas o que houve, afinal?
- Esta mulher está espalhando para todos que eu abusei dela, e que o seu filho é meu, também. E o homem dela veio tomar satisfações comigo.
Eduardo voltou-se para o escravo caído ao lado do tronco.
- Que é que você diz, infeliz?
- Está morto, coronel. Comi ele de pancada.
- O que? Quem lhe autorizou a isso?
- A minha honra, coronel. E a criança foi junto.

 A negra irrompeu num pranto convulso, ao ouvir as palavras do capitão do mato. Voltou-se para Eduardo:
- Minha filha... Eu não espalhei nada... Ele é que vivia atrás de mim... Então, cravou o facão nela, na minha filhinha... matou meu homem... minha filha... acabou com tudo...
Eduardo estava lívido. Jamais autorizara nada além de algumas chicotadas como corrigenda, por maior que fosse a falta do escravo. Agora presenciava aquela tragédia, fruto dos desmandos de um capitão do mato assassino.
Lindolfo ajoelhou-se, com gestos de carinho para a pobre mulher. Percebeu, então, que ela também havia sido atingida pela arma do capataz.
- Mas... você está sangrando...
- Ai, sinhô... Deixe que eu morra em paz... Não tenho mais nada, não tenho mais ninguém...
Eduardo sacou do bacamarte e apontou-o para o capataz.
- Que é isso, coronel? A minha honra...
- Vou acabar com a sua honra, assassino !
Lindolfo interveio, baixando o braço do amigo :
- Não faça isso, Eduardo ! Basta de sangue !
- Corre, monstro assassino ! Corre, desaparece da minha vista, que eu nunca mais o veja nem nessa fazenda e nem nessa cidade ! Corre, desgraçado infeliz, antes que eu mude de idéia e lhe meta chumbo nas fuças !
Aparvalhado, o homem rodou nos calcanhares e desandou a correr. Mas não foi longe. A “negrada”, como dizia Eduardo, saiu-lhe atrás e fez sua própria justiça.
- Levem essa negra para a casa grande, rápido ! Ela tem que viver, ela precisa viver !
Os dois amigos montaram seus cavalos e demandaram a sede da fazenda. Quando a escrava chegou, já o médico do vilarejo esperava por ela. Sentenciou, após breve exame :
- Ela não vai morrer, coronel Eduardo. Vai ficar boa.
Eduardo ajoelhou-se ao lado da negra, que, de fraca, sequer abria os olhos. Segurou a mão calejada da escrava e apertou-a com carinho.
- Como é seu nome, mulher?
- Rosa...
- Você não vai morrer, Rosa... Eu prometo... Vou cuidar de você...
A mulher lentamente abriu os olhos, sorriu, e excla-mou, num sussurro :
- Deus lhe pague, sinhô... E... dos outros?... Quem vai cuidar?...
- Tudo vai mudar, Rosa... Tudo vai mudar...

À tardinha voltaram os dois para a Corte. Quase não trocaram palavras, Eduardo estava calado e pensativo. Lindolfo respeitou o silêncio do amigo, aturdido com as cenas que presenciara. Já perto do largo, Eduardo parou a montaria, no que foi seguido por Lindolfo.
- Lindolfo... - falava encarando o amigo - Resolvi. Vou imitá-lo...
- Imitar-me?
- Amanhã cedo todos os meus escravos estarão alforiados.

-Estou me sentindo mais leve, Célia. Parece que me foi tirado um peso dos ombros. Lindolfo tinha razão. Eu estava acoitando um monstro na fazenda, que mandava e desmandava em meu nome, e eu de nada sabia.
- Você nunca dirigiu sequer uma palavra a um escravo...
- Mas já conversei muito com eles, depois da alforria. Tinham medo de mim, pensavam que tudo o que Estevão fazia era por ordem minha. Mas são gente muito boa. Acreditaram no que eu disse, não guardam nenhum rancor...
- São gente, você disse? Não era o que dizia...
- Sabe do que mais? - Eduardo abraçou Célia, enquanto fazia rápido suspense - Nenhum deles quer sair da fazenda...
- E a Rosa?
- Esta fica aqui em casa. Vai lhe ajudar nas lides domésticas. Se ela quiser, é lógico.
- Se ela quiser... Você mudou mesmo, senhor meu marido... Eu também sinto que ela vai ser muito mais que uma mucama. Vai ser minha companheira.

-Lindolfo, graças a você, sou outro homem. Eu carregava nas costas enorme peso, na minha ganância. Você tinha razão. Há muito para todos. Não ficamos mais pobres com a alforria, não é mesmo? Minhas preocupações agora são outras.
- Posso imaginar quais sejam. As visões...
- Sim, as visões. A mesma cena. Aparece-me o nosso largo, porém descampado, sem o chafariz, calçado e iluminado por fortes lampiões que não conheço... E mais, pessoas com roupas estranhas, que nunca vi... e como vem, vai, a cena insólita, numa espécie de névoa... E o mais curioso é que sinto um impulso irresistível de descer e sair para o largo... Estarei enlouquecendo?
- Não, meu caro. Não será nada demais. Deixe que as coisas aconteçam sem sustos. Não apure...
Era difícil para Eduardo “não apurar”, como sugeria o compadre. Ademais, não era só ele. Quando estavam juntos, na janela, Célia também era brindada com o desconhecido.

Longo tempo se passou sem que Eduardo e Célia sentissem algo anormal. Uma manhã, porém, Célia cha-mou Eduardo à janela.
- Venha, querido, venha ver.
Desta vez, a cena não se desfez. Debaixo de um sol brilhante, pessoas vestidas com roupas estranhas, muito curtas, iam e vinham sobraçando embrulhos, parecendo todos estarem com muita pressa, muito diferentes da calma com que Eduardo e Célia estavam acostumados. Um jovem que passava olhou para a sacada e acenou-lhes :
- Bom dia, seu Eduardo ! Já está atrasado...
- Um momento, vamos descer já.
Eduardo apanhou sua pasta de cima da cadeira, botou a mão carinhosamente no ombro de Célia, e sorrindo, disse-lhe :
- Vamos?
Em seguida, desceram as escadas e ganharam a rua. Da sacada, Rosa lhes exibia seu sorriso de Mona Lisa...
  
O século dezenove havia ficado definitivamente para trás.  


 

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