segunda-feira, 28 de março de 2011

À PROCURA DE UM FINAL

 



Sexta-feira. Eu estava sem dinheiro em casa para o fim de semana, mas felizmente a minha conta bancária estava recheada.
- Vou ao banco, mas daqui a pouco estarei de volta. - falei para minha mulher.
- Passa no aviário... Estou com vontade de fazer um franguinho ao molho pardo, o que é que você acha ?
Eu sempre achava excelente um frango ao molho pardo, embora o petisco me parecesse um tanto macabro, antes de entrar na panela.
- Não se esqueça de trazer o sangue fresco, separado...
Aquele “sangue fresco” me incomodava, mas... não me esqueci. Do aviário segui para o banco, debaixo de um sol a pino, verão de 40 graus, com o frango e seu sangue - fresco - debaixo do braço. Quando empurrei a porta giratória e recebi uma lufada de ar gelado, quase rezei uma ave-maria para o inventor do ar condicionado.
O banco estava quase vazio. Enquanto cuidava de garantir a provisão para o fim de semana, demorei-me observando o local. Do gerente ao segurança, todos  trabalhavam  calmos  e  tranqüilos,  com movimentos lentos, o que conferia ao ambiente uma gostosa atmosfera de paz. Os raros clientes também não se queixavam. Dava a impressão de que quanto mais demorasse o atendimento, melhor seria, mais tempo todos ficariam abrigados da canícula que derretia as pessoas lá fora.
- Confira, por favor.
Eu estava tão distraído que nem vi o dinheiro, já à minha disposição em cima do balcão. Ainda brinquei com a moça :
- Obrigado. Ainda bem que os assaltantes ainda não descobriram a nossa agência...
Enquanto contava o dinheiro, veio-me à idéia escrever mais uma das minhas histórias. A cena, uma agência bancária de bairro, calma e tranquila, como aquela. Um cliente, poeta bissexto, subitamente visitado pela inspiração, resolve sentar-se em uma das poltronas para por no papel mais um poema, aproveitando a tranquilidade do local. Enquanto escreve, de vez em quando percorre com os olhos o ambiente, aereamente mirando o infinito, em busca de uma ou outra rima que teima em não aparecer.
Mas o que ele nem desconfia é que de repente passa a ser vigiado... Estava sendo confundido com um possível planejador criminoso, em atitude suspeita, talvez tomando notas e fazendo croquis para futuro assalto (só mesmo em histórias...), que retornaria posteriormente com seus asseclas e suas armas.
 O astuto vigilante alerta a gerência e o quiproquó rapidamente se espalha pelos funcionários. De repente o clima da pacata agência fica tenso e carregado, onde apenas o poeta continua, tranquilo, dando asas à sua imaginação...
Pensei, então: por que não escrever a história ali mesmo? Estava sentado confortavelmente. Havia tempo, o frango poderia esperar um pouco. E havia o enredo, que era o principal. Não hesitei. Tirei do bolso o pequeno bloco de notas que sempre levo comigo e acomodei-me. Na verdade não seria nada demais se eu colocasse um pouco da minha própria história na vida real.
Comecei a transpor a aventura do poeta para o papel tão empolgado, que o texto vinha-me aos borbotões. Rapidamente enchi algumas folhas do pequeno bloco. Mas, a certa altura, dei-me conta de que... não tinha pensado em um final para a história. Reli-a, uma, duas vezes. De nada adiantou. Era uma boa idéia, mas... e depois ? Todos, na narrativa, já estavam atacados de sinistrose da violência, menos o poeta. E o fecho da trama não vinha, estava difícil.
Foi nesse instante que vi o segurança aproximar-se.
- Com licença, o gerente quer falar um instante com o senhor.
- Comigo ?
Fui ter com ele, perguntando-me o que poderia querer comigo, pois apesar de ir sempre àquela agência, eu nem o conhecia.
O que eu nunca poderia imaginar é que a minha história estivesse ganhando corpo...
Visivelmente nervoso, o rapaz dirigiu-se a mim:
- O que o senhor deseja ?
O guarda, ao seu lado, mantinha discretamente a mão no coldre. Quem menos entendia o que estava se passando era eu, que pude perceber que era alvo de olhares pouco discretos dos funcionários.
- Eu ? Nada. Aproveito apenas um pouco do ar condicionado.
- Mas o senhor tomava notas, enquanto examinava toda a agência.
Comecei a entender. A minha história estava se repetindo - ao vivo. A imaginação do segurança, talvez mais fértil que a minha, deu vida às minhas mal traçadas linhas... Resolvi então levar avante aquelas suspeitas, provocando um diálogo subjetivo e inquietante. Quem sabe não estaria ali o final que procurava?
Fingi um sorriso meio amarelo.
- Sim...Notas particulares...
- Poderia mostrá-las ?
- Sim, poderia. Mas não quero. Você duvida da minha palavra, e isso não é bom. São apontamentos que só a mim interessam e não lhe dizem respeito. Além disso, aquelas poltronas não estão ali para enfeite, creio eu. Eu estava apenas sentado em uma delas, para fugir um pouco do calor de lá de fora.
Eu me fingia extremamente ofendido. Blefava, mas não mentia. Às vezes nem é necessário mentir para se propagar uma idéia falsa. Os ouvidos alheios encarregam-se de adulterá-las. Continuei, falando em voz baixa e sorrindo, simulando para a assustada platéia de funcionários uma conversa aparentemente suspeita.
- Sou cliente deste banco talvez há mais tempo do que você tenha de idade. O número da minha conta é 1113. Não quer confirmar ?
Um funcionário que estava mais perto afastou-se sorrateiramente e retornou pouco depois com meu dossiê na mão, que depositou na mesa do seu chefe.
Eu exultava. Respondia as perguntas que me eram feitas com evasivas e fingida arrogância, sem nenhuma vontade de esclarecer a minha visita ao banco. Não era acintoso, no entanto. A tensão era aumentada pelo medo contagiante, pois já pressupunham até que eu não estivesse sozinho. Eu havia criado um clima insuportável, em cima de suspeitas sem nenhum conteúdo, se bem examinadas. O segurança procurava em torno os meus possíveis cúmplices e os funcionários começavam a participar da cena em silêncio com o cuidado, nem sempre conseguindo, de não transmitir aos poucos clientes a sua inquietação.
Em dado momento, vi que entrava mais um cliente, um velho conhecido meu, vizinho de rua, talvez como eu à cata apenas de uma temperatura mais amena, sem suspeitar que o ambiente já fervia, apesar do forte ar condicionado. Aliás, não era só o ar que estava condicionado. Estavam todos, isso sim, na absurda idéia do assalto que eu deveria estar planejando. Acenei para ele, que se aproximou, alheio, evidentemente, a tudo o que se passava. Brincou, ao me ver conversando com o gerente:
- Então, cadê o empréstimo ?
Respondi-lhe no mesmo tom, sorrindo :
- Ainda não... - E olhando para o gerente - Está difícil...
O que aconteceu, então, quase fez com que me arrepender de ter começado aquela brincadeira. O meu vizinho, enquanto se aproximava um pouco mais, enfiou a mão no bolso interno do paletó, como para tirar algo, e disse:
- Pode deixar. Eu lhe ajudo, com o meu “prestí-gio”...
Quase não pôde terminar a frase. O guarda voou-lhe em cima, derrubando-o no chão, descarregando todo o seu susto no pobre homem - o meu cúmplice. Depois, já empunhando sua arma, mantinha-a apontada para ele.
Levantei-me de um salto para acudir o meu amigo. Mas o apavorado segurança assustou-se com o meu gesto rápido, e voltando a arma em minha direção, puxou o gatilho.
A bala atingiu-me de raspão, mas estourou o pobre do frango, que morreu pela segunda vez, tingindo-me espetacularmente de vermelho com o ingrediente do que seria um saboroso molho pardo. Eu parecia estar esvaindo-me em sangue, diante de todos. Meu amigo levantou-se, exibindo nervosamente ao gerente, de braço estendido, a caneta que havia tirado do bolso... Este, estava mudo de susto. O guarda, tremendo como uma vara verde, ainda segurava perigosamente a sua arma. Todo o banco estava mergulhado em um silêncio sepulcral, e ainda ecoava no ar o estalo seco do estampido.
- Me dá essa arma, seu cretino ! 
O homem da lei estendeu-me o revólver com os olhos fixos em meu ferimento, que havia tingido toda a roupa de vermelho. Em seguida, estatelou-se a meus pés. Ninguém deu atenção ao seu desfalecimento. Todos olhavam para mim, a estrela da festa.
Consegui disfarçar a dor do meu arranhão, transformado, graças ao frango defunto, em grave ferimento que ninguém conseguia localizar, e assumi heroicamente a situação. Ninguém mais se lembrava do assalto.
Sisudo, com ares de vítima grave, encarei o atordoado bancário :
- Ainda quer ver aquelas notas ?
Ele abaixou a cabeça, abanando-a numa derrotada negativa.
Eu estava feliz. Que final havia conseguido para a minha história !
Tirei então um lenço do bolso, limpei o rosto e os braços em gestos lentos e estudados, e encaminhei-me para a saída, teatralmente amparado pelo meu cúmplice, deixando no ar a frase definitiva :
- Era apenas um poema...

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