terça-feira, 4 de janeiro de 2011

O VALE DAS ESTÁTUAS

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     Eu era caixeiro-viajante. Nasci em mil oitocentos e oitenta e três, e a virada do século já me pegou no lombo do meu burrico, numa trilha no meio da mata fechada...
Trabalhei duro, por muito tempo. Tenho hoje quase sessenta anos, pelo menos quarenta deles muito bem vividos. Mas eu era um bom viajante... porque depois da minha última viagem, já não sou quase nada... Restou-me apenas uma história para contar, que agora divido com vocês. Muitos poderão não acreditar, mas eu estou aqui, firme, para dar o testemunho.
Minha área de trabalho era espinhosa, difícil, ainda mais que já se passaram uns bons anos desde que tudo aconteceu, e de lá para cá muita coisa mudou. Mas o Vale das Estátuas - fui eu quem o batizou assim - está lá no mesmo lugar, embora eu mesmo, se pudesse voltar, por certo não conseguiria achá-lo.
Imaginem o norte de Mato Grosso e Goiás, sul do Amazonas e Pará, há mais de quarenta anos atrás. Em 1913! Aquela zona que une os quatro estados, se hoje tem bons caminhos para carroças - e até mesmo charretes de luxo - tinha que ser percorrida em lombo de burro, tarefa que demandava de dois a três meses para ser cumprida por mim, que ia anotando pedidos e entregando encomendas pelas pequenas povoações por onde passava. Não eram cidades, apenas aglomerados de pouco mais de duzentos habitantes, que se irmanavam na dura tarefa de sobreviver, afastados de tudo e de todos, onde eu era a única ponte que os unia precariamente ao resto da civilização.

Eis a história da minha última viagem:
Já lá se vão alguns anos... Eu havia almoçado em A... e dirigia-me a B..., montado em meu animal - minha loja, meu escritório, minha casa e... meu amigo, porque com ele conversava todo o tempo, para amenizar um pouco a solidão.
Ia pensando nos meus negócios, quando resolvi tomar um atalho por dentro da mata. Chegaria a B... antes do anoitecer, a tempo de um banho frio e um bom papo com o pessoal amigo.
Não fui feliz, entretanto. Apesar de conhecer aquelas paragens como a palma da minha mão, e pensando seguir o que me parecia uma trilha de arrastar madeira, das que eu bem conhecia, embrenhei-me no mato - selva, melhor dizendo, pois a cinquenta metros afastado do caminho nada mais se via além da espessa vegetação. Tentei retornar, mas o mato envolveu-me como se estivesse vivo. E vi-me, de repente, com toda a minha experiência de mateiro e andante solitário, rodeado por aquele verde aterrador, onde nem a luz do sol conseguia penetrar.

  Mas ainda não me sentia perdido. Acostumado a me orientar de todas as maneiras imagináveis, é evidente que eu tinha uma bússola. Embora não visse o céu, sabia que era dia ainda e que o tempo estava firme. A bicharada estava quieta e também essa não me amedontrava, pois parecia conhecê-los um a um, e eles a mim. Estava tranquilo, embora aborrecido por ver meus planos alterados sem necessidade.
Continuei em frente, orientando-me como podia. Porém escoavam-se as horas e não estava fácil como eu pensava encontrar de novo o meu rumo. A bússola era de precisão, mais eu sabia que bastava a diferença de um ou dois graus para me desviar para outras paragens. A selva era quase impenetrável. Nenhum vestígio de civilização, e - curioso - tampouco de vida. Eu não ouvia os pássaros e nem os pequeninos bichos que tantas vezes corriam em frente à minha montaria. Tinha que me aviar, pois via a tarde avançar e dali a algumas horas seria noite. Então, aí sim, eu estaria perdido.
Estranhei o silêncio, que era absoluto. O mato tem mil ruídos, de dia ou à noite, e eu não conseguia ouvir nada, embora apurasse a audição. Nenhum som. Nem mesmo o murmúrio das águas de algum riacho. Parei, desci do animal e mantive-me imóvel. Exceto o resfolegar do jegue e o farfalhar das folhas, agitadas por leve brisa, nada mais se ouvia. Eu já estava andando pela floresta por mais de três horas. O calor úmido, abafado, começava a me causar mal estar.
O caminho tornara-se íngreme e escarpado, descendo sempre. O animal começou a sentir dificuldades no trajeto. Bastante pesado, devido à carga que levava, vez por outra se desequilibrava, resvalando perigosa-mente. Eu já o havia aliviado do meu peso e ia puxando-o pelo cabresto, escolhendo o melhor caminho.
Porém uma falha do terreno, encoberta pela folhagem abundante, fê-lo perder o equilíbrio de vez. E rolamos, eu e ele, pelo despenhadeiro, aos trancos e barrancos, pois tentando salvá-lo emaranhei-me na corda do cabresto e acabei sendo arrastado pelo bicho, enquanto meu escritório e minha mercadoria iam sendo espalhados irremediavelmente pelo terreno íngreme. Dezenas de metros abaixo estancamos, no fim da linha. Eu, milagrosamente salvo; meu fiel companheiro de tantas viagens, morto.
Estonteado, refazendo-me da queda, apesar de sentir todos os ossos moídos, constatei estar sem um arranhão. Segui o trajeto da minha queda morro acima com o olhar, e não consegui sequer ver o local de onde despencara. Afastei logo qualquer possibilidade de recuperar meus bens. O terreno era muito hostil. Sentado no chão, com os cotovelos apoiados nos joelhos e o rosto escondido entre as mãos, sozinho dentro daquele inexplicável silêncio, permaneci por um bom tempo refazendo-me do susto, das dores e do inusitado da situação. Quando finalmente baixei as mãos, deparei com uma paisagem bastante diferente da que eu havia deixado lá em cima.
O terreno era relativamente plano, escasseava a mata e os restos de sol da tarde já conseguiam atingir o chão. O silêncio, entretanto, continuava. Não havia vivalma naquela terra.
Entretanto, embora a sensação de solidão e abandono fosse muito forte, aquele sítio dava a impressão de já ter tido trato algum dia. E eu não estava errado, como ia constatar logo depois. Levantei-me e comecei a caminhar - dolorido e cansado, escaldado pelo calor e morto de sede - por entre os arbustos, que cada vez mais rareavam, quando tropecei em uma pequena pedra, um tanto estranha. Branca como mármore, bastante alongada e com uma das extremidades meio arredondada, chamou-me a atenção. Apanhei-a, para examiná-la melhor. Era parte de uma escultura, uma mão cerrada, quebrada na altura do punho, e com um anel de ouro, como sendo uma aliança, incrustado no anular. Perguntei-me onde estaria o resto daquela estátua, perdida não sei por que naquelas paragens. Logo fervilhou-me a mente, com a lembrança do lendário Eldorado, das guerreiras amazonas ou de alguma outra dessas civilizações perdidas das quais de vez em quando se tem notícia.
Alguma coisa eu havia descoberto, sem dúvida. A escultura era algo incomum. Em tamanho natural, mostrava os detalhes anatômicos com incrível perfeição. As veias, os poros e as dobras da pele eram realmente trabalho de um hábil artista. A aliança, perfeitamente encaixada no dedo. Havia calos nas mãos! Uma obra co-mo eu nunca vira. Como teria parado ali? Onde estaria o restante daquela estátua? Recolhi a peça, maravilhado, sem imaginar quantas outras surpresas me esperavam.
Logo adiante, com efeito, deparei com outra escultura. Desta vez, completa. Era um menino, deitado sobre o braço esquerdo, fazendo as mãos de travesseiro, em posição de sono tranquilo. Perfeito em tudo, como no achado anterior. Certamente eram obras do mesmo exímio artista.
Mas não era só. Havia mais, muito mais. Adiante uma moça, mais além um jovem. Todos em posições relaxadas, recostados ou deitados. E completamente nus. Na preocupação de deixar gravados todos os detalhes do corpo humano, o autor daquelas obras não se preocupou em modelar nos corpos nenhuma espécie de vestimenta. A perfeição era tanta que chegava a incomodar. Tinha-se a impressão de que seres humanos haviam sido transformados em alvo mármore. Uma perfeita estatuária em plena selva! Obras maravilhosas, espalhadas pelo terreno a pouca distância umas das outras, todas da mesma rara beleza. Corpos libertados de suas vestes, mostrando o completo domínio do artista ao perenizar sua anatomia.
Tão maravilhado estava com as esculturas, que apesar do calor e da sede que me torturava não percebi que atravessara claro e límpido regato, o primeiro curso d’água que via em muitas horas.
Continuei a caminhada. Os altos e grossos troncos das árvores da selva, como disse, davam lugar aos arbustos e à vegetação rasteira de uma enorme planície. Livrando-me dos galhos que tolhiam a passagem, deparei, de repente, ainda um tanto distante, com os fundos de um grande casarão, majestoso, com seu porão em arcos e circundado de varandões no piso superior. Era uma típica construção setecentista, autêntica casa de fazenda da primeira época do Brasil-colônia. Infelizmente, carcomida pelo abandono. Eu estava entrando por trás da propriedade, pelo imenso pátio de serviço. 


 Que teria havido para que seu dono - presumi – tivesse permitido que sua fazenda e sua arte ficassem entregues a tanto abandono? Como eu nunca havia ouvido falar daquele sítio, nas minhas andanças? Não poderia estar tão longe dos meus roteiros de viajante. Todos esses lugares, parecendo abandonados, são geralmente legendários, às vezes temidos e sempre respeitados. Eu conhecia-os todos, exceto aquele. Já há tantos anos viajando por aquelas paragens e jamais havia ouvido uma só menção àquele lugar, imponente ruína que guardava maravilhosas esculturas e talvez intrigantes mistérios.
Aproximei-me sem medo. Afinal, o silêncio era sepulcral e nada indicava existir ali qualquer forma de vida, o que, aliás, vinha me intrigando. Já agora bem perto, percebi que era total o abandono. Somente as espessas paredes de cantaria não haviam cedido aos rigores do tempo. Desabara o telhado e restos de portas e janelas pendiam de uma ou outra dobradiça ainda renitente.
Mas as estátuas, estas povoavam todo aquele ambiente fantástico. A sempre presente posição de relaxa-mento mostrava que talvez o artista tivesse se deixado contaminar pela calmaria e pelo silêncio reinante. Cães e gatos e outros animais foram também perenizados. Em todos, a mesma perfeição, a arte e a técnica combinando-se magistralmente.
 Passaram-se as horas. Foi-se o sol e aos poucos o lusco-fusco do entardecer deu lugar à noite de lua nova, um tanto assustadora em seu negrume imerso em silêncio. Já nada mais se via. Eu não tinha sequer um fósforo que me libertasse da escuridão. Tateando, procurei um desvão na arcada do porão e aconcheguei-me como pude. Por certo não dormiria. Estava muito excitado para entregar-me ao sono, ansioso para a volta da claridade e a continuação da minha exploração.
Mas dormi, embalado pelo cansaço. Quando acordei o sol já ia alto. O calor não diminuíra, e a sede e a fome fustigavam-me. Lembrei-me então do riacho que havia visto na entrada da fazenda. Voltei lá, aproveitando o trajeto para melhor reexaminar as obras de arte. Enquanto saciava a sede no regato, atentei para um fato: embora sem qualquer panejamento sobre os corpos, as estátuas pareciam representar figuras de épocas diversas. Diferentes tipos de penteados mostravam a preocupação do artista em situar as figuras distantes, umas das outras, no tempo. Dos complicados arranjos nos cabelos femininos, característicos de séculos passados, aos cortes mais simples predominantes em nossa época. Das posturas severas e cerimoniosas, mesmo nas posições de descanso de algumas peças, ao descontraído relaxamento de outras, típicos de nossos dias, tudo sugeria a intenção do artista de gravar diferentes momentos da história.
No porão da casa, que era o local mais atingido pelos estragos provocados pelo passar dos anos encontrei uma peça diferente, aliás a única que destoava de tão harmoniosa quanto estranha coleção. Representava um homem, com terrível máscara de horror estampada na face, semideitado e segurando com as duas mãos a perna direita, como se torturado por insuportável dor. A escultura, entretanto, não mostrava qualquer ferimento.
Pus-me a imaginar por que aquela peça fugia tanto dos padrões adotados que vira até então, sem sucesso.
Resolvi tentar seguir viagem. Voltaria mais tarde, em caravana, pois não faltariam aventureiros para tal façanha. Por enquanto, dava-me por satisfeito. Não sei porque nem por um instante pensei em comercializar aquela arte, contrariando os meus impulsos de vendedor inato.
Comi alguns frutos silvestres, enchi meu cantil, prevendo a canícula que se prenunciava, e passei a explorar o terreno em volta, deliberando tomar sentido contrário ao que eu chegara, uma vez que seria quase impossível escalar a escarpa por onde tinha caído.
Parti. Mas havia dado poucos passos quando descobri, no meio da vegetação, o que me pareceu um caminho pavimentado, largo, que começava na direção do casarão. Seria ali, por certo, a entrada da fazenda, e não onde eu tinha imaginado.
Mas as surpresas ainda estavam a meio. Mais adiante deparei com outra estátua, com os mesmos esgares de pavor daquela que vi no porão. Esta, porém, tinha os olhos fixos nas mãos espalmadas. Outra, mais além, parecia contorcer-se no chão. Encolhida, em posição fetal, segurando os pés, os dentes horrivelmente trincados.
“Que estranho artista!”, pensei. As recentes descobertas começavam a provocar em mim um certo desconforto, que eu teimava em não perceber, e que já me fazia agora fugir daquelas pétreas figuras, a princípio tão descansadas no seu sono e agora tão angustiadas em sua dor.
Meio dia. Continuava seguindo a estreita estrada pavimentada, agora em uma clareira quase sem vegetação. De repente o caminho desapareceu em meio ao que me pareceu ter sido um desmoronamento da íngreme escarpa que o ladeava. A única saída estava bloqueada pela terra despencada do alto. Ao longe a floresta impenetrável, em um plano mais alto que circundava toda a fazenda, parecia indicar que aquelas terras situavam-se em uma impossível cratera vulcânica. O lugar era quase inacessível, e fora por mim descoberto casualmente, e depois de um belo tombo. Talvez por isso nunca ninguém houvesse comentado nada a respeito.
De repente, outra figura. Esta, de uma mulher assustadoramente sofrida como todas as outras, mas transmitindo-me resignação em sua dor, como que aguardando, serena, sua morte. Sua fisionomia, magistralmente esculpida, lembrava-me uma moça que cnheci, há muitos anos, em A... Fui tomado por um misto de admiração e pavor pelo enigmático artista. Foi a última obra que vi.
Apressei o passo. Estava de novo dentro da mata espessa. Teria que procurar um local de menos difícil acesso que me permitisse escalar o paredão que me livraria daquele vale de tão estranhas estátuas. Continuava a ausência de vida de qualquer espécie, e o solo seco mostrava ser o regato onde me abasteci, a única fonte das redondezas. Lembrei-me do cantil e sorvi um pequeno gole, apesar da sede. Afinal não sabia por quanto tempo precisaria racionar tão precioso líquido.
Por fim surgiu um sítio que me facilitaria a subida. Minhas pernas doíam muito, pareciam inchadas. Havia caminhado toda a manhã, comendo apenas um ou outro fruto que recolhia no caminho e quase sem beber do cantil. Sentia-me fraco, doíam-me também as mãos, pois vinha abrindo caminho no mato sem um facão ou qual-quer outra ferramenta.
Calculei que quase uma centena de metros ainda me separavam do topo. Reuni minhas forças e comecei a subida.
Muitas vezes rolei abaixo, outras tantas recomecei. Caía e machucava-me, mas as quedas davam-me forças para conquistar cada metro do paredão. As dores aumentavam, sentia as mãos quase sem movimento. Horas depois, mais morto do que vivo, cheguei ao topo. Escurecia, outra vez. Pela segunda noite dormiria ao re-lento. Agora, no entanto com menos tranquilidade, pois  curiosamente, comecei a ouvir novamente os ruídos da mata, que me eram tão familiares. Se me sentia alegre, por ver que novamente a vida regurgitava em torno de mim, preocupava-me a possível presença de bichos maiores, que poderiam não ser tão amigos...
Uma espécie de alívio trazido pelos sons envolveu-me o cansaço, estranho alívio no meio de tantas dores, que aumentavam com o passar das horas. Deixei-me adormecer assim mesmo, confiando que não seria molestado e na esperança de que na manhã seguinte as dores nas pernas e nos braços houvessem desaparecido.
Acordei, entretanto, como quem acorda de um pesadelo. Melhor dizendo, como quem ainda está nele,
pois as dores cruciantes haviam recrudescido, tomando conta de meus pés e de minhas mãos. Era quase impossível mover-me.
Ainda povoavam-me a mente todas aquelas esculturas. Imaginei estar tomando a mesma posição de descanso em que elas foram esculpidas. A lembrança impressionou-me tanto que me levantei, de um salto.
Foi então que constatei, horrorizado, que, se mal podia movimentar-me, era porque meus pés e minhas mãos estavam petrificados, transformados em massas de pedra idênticas às que vira na antiga fazenda! Cada uma das minhas extremidades parecia-me pesar cem quilos! Os braços e os ombros pendiam, vergados, sob o peso das mãos, enquanto eu me sentia preso ao chão por blocos de alva e rígida pedra calcária!
Não sei como narrar o pavor que se apoderou de mim. Lembrei-me das estátuas que vi durante a minha fuga, transmitindo a mesma angústia que eu começava a sentir.
Olhando para minhas mãos, para aquelas esculturas anatomicamente perfeitas, repetia as mesmas palavras, à exaustão, tentando convencer a mim mesmo com o que eu queria que fosse uma verdade: “Houve um escultor... Eu sei que houve... Isso não está acontecendo...” E repetia, em voz alta, dezenas e dezenas de vezes a mesma frase: “Um escultor... Um escultor... Tem que ter havido...”
Mas os blocos de mármore não eram estátuas... não eram obras maravilhosas de nenhum talentoso artista...
Ninguém os esculpira...
Todos os seres vivos que tiveram a infelicidade de atravessar aqueles sítios haviam sido transformados em pedras frias, inertes... Homens, animais, pássaros, insetos... enfim, todas as formas de vida daquele lúgubre vale, através de muitos séculos, estavam agora mudas para sempre, em terrível testemunho de inexplicável tragédia.
E eu seria mais um condenado à execução.
Talvez nem mais acordasse, como tantos outros que vi naquele lugar macabro, surpreendidos por tamanha desgraça em inocente repouso...
Mas eu não me entregaria. Resoluto, movi-me, mesmo debaixo de intensa dor. Estava resolvido a não me deixar abater, e as incríveis e desconhecidas reservas de força que tem o ser humano vieram à tona. Levantei-me e pus-me a caminhar. Cada passo custava-me eternos minutos, preciosas horas eram despendidas em poucos metros. Arrastava pés e mãos no solo, tentando erguer toneladas em cada movimento. Delirava. Febre e pavor. Numa das muitas quedas, minha mão esquerda desprendeu-se do braço, como uma pedra solta que rola pelo chão. Deixei escapar terrível urro de angústia - pois não era possível haver dor maior do que a que já sentia.
Ainda lembrei-me do meu primeiro achado, aquela mão portando um anel... Alguém já havia passado pelo mesmo terror pelo qual eu estava passando.
Como era possível sentir alívio, quando me vi despojado do peso daquela mão petrificada, que agora jazia no solo? Mas foi o que senti. É incrível como a desgraça pode ser vista de ângulos tão diferentes...
Não sei por quanto tempo vaguei, e tampouco vi quando me encontraram. Estava dementado, soube depois, extremamente longe de A... e de B..., arrastando pela terra os restos de meu corpo, balbuciando palavras sem nexo, sem mãos e sem pés, impulsionado pela firme idéia de não me deixar sucumbir.

Recuperei a consciência e a razão no hospital de C..., para onde fui levado. O médico, obviamente não acreditava em nada do que lhe contei, ainda debaixo de forte e incontrolável emoção, preferindo creditar a minha história ao estado de demência em que me encontrava. Mas não sabia como explicar as mutilações que eu havia sofrido.
Num canto da enfermaria, sobre uma cadeira estavam os meus pertences: apenas o embornal e o cantil. As roupas, em frangalhos, haviam sido queimadas pelos funcionários do hospital.
O mistério não me satisfazia. Apesar do horror que todas aquelas lembranças me infundiam procurei reconstituir, passo a passo, a minha incrível experiência, na tentativa de solucionar a tragédia que se abatera sobre mim. Que haveria naquele vale, que vinha provocando tão terríveis mutações em todos os seres vivos que o atravessassem, e desde épocas remotas? Por certo a fazenda algum dia havia sido próspera, como atestavam as ruínas de suas instalações. Que tamanha desgraça se havia abatido sobre aquelas plagas? Eu não conseguia sequer pensar em algo que fosse, ao menos, plausível. Entretanto ali estava eu, único sobrevivente, sem pés e sem mãos. E eu era real.
Aos poucos, algumas idéias começaram a fazer sentido, ao menos para mim. Veio-me à mente o regato de águas cristalinas, única fonte que parecia suprir toda a região, um vale como que “afundado” no meio do planalto tão conhecido de minhas andanças. A água, de aparência tão límpida, poderia ter sido, de alguma for-ma, contaminada? Mas por qual estranha e mortífera substância ?
Lembrava-me de ter bebido muito pouco, e talvez por isso o processo de calcificação houvesse estacionado, afetando-me apenas as extremidades dos membros.
E ali estava, em cima da cadeira, ao lado do meu leito, o cantil ainda quase cheio.
Não conseguia convencer o médico com a minha absurda teoria. Mas não pedia muito. Queria apenas que ele analisasse o líquido, muito embora consciente de que não havia como pesquisar nada além de coloração, cheiro característico e sabor. Os laboratórios daquela época eram pálida sombra destes dos nossos dias. Mas ele me dizia ser impossível existir algo tão poderoso capaz de produzir uma mutação daquele teor. Definitivamente ele não me daria crédito. Irritei-me, embora consciente de que ele salvara a minha vida, pensando-me as amputações: “Então beba do meu cantil !” - disse-lhe, desaforado.
Ele olhou-me muito sério, demoradamente, e imaginei receber de volta merecida descompostura. Mas, não; após demorada pausa, respondeu-me: “Você acabou de me dar uma boa sugestão. Mas não se preocupe, não vou beber desta água.” E saiu da enfermaria, às pressas, sobraçando o cantil.

Guardo até hoje as pequenas 'estátuas' das pobres cobaias que validaram a minha inusitada teoria. O doutor guarda, também, a sete chaves, o que restou da água do meu cantil, na esperança de que, algum dia, no futuro, a ciência possa explicar a composição daquele líquido assassino, e o que causou contaminação tão violenta.
Jamais consegui orientar-me o suficiente para que cientistas e curiosos pudessem retornar àquele vale, embora não me faltasse coragem para fazê-lo, porque além do tétrico riacho, que vinha sorvendo vidas e mais vidas ao longo de três séculos, nada mais havia a temer no Vale das Estátuas.
Geólogos formularam teorias, químicos os apoiaram. Mas nenhum deles devolveu-me minhas mãos e meus pés, que ficaram pelo caminho, para sempre lembrando-me a terrível ‘via crucis’ que me marcou para sempre.
Lembrei-me da moça, cuja pétrea figura julgava haver reconhecido, quando deixava as ruínas. De volta a A..., perguntei por ela a um velho conhecido meu. E ele contou-me que certo dia, há muito tempo, ela havia saído do lugarejo em direção a B..., em busca de socorro médico para um parente, e desde então a família pranteava o seu misterioso desaparecimento.
“Mas isso já foi há muito tempo... Bem uns vinte anos...” - disse-me ele.
Mas o que eram vinte anos, para aquela água asas-sina?
Antes, bem antes de mim, quando ambos éramos ainda jovens, ela havia encontrado o Vale das Estátuas...  





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