quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

BOITE-SHOW

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Quando a campainha da porta soou Maurício levantou os olhos da “Revista do Fluminense”. Quem seria? A noite estava chuvosa e quente, convidando ao repouso. Ele estava sozinho, preso em casa por uma forte gripe. Portanto, fosse quem fosse, seria bem vindo para uma boa conversa. Levantou-se da poltrona, com a lentidão que seu estado febril lhe permitia e foi atender a porta.
Era o Murilo.
- Posso entrar?
- Olá, Murilo! Vamos entrando... Que bom você ter se lembrado de seu amigo!
- Soube que você está adoentado. O que é? Não me parece tão mal assim.
- Não é nada, apenas uma gripe. Só que ela me pegou de jeito, por isso estou aqui de molho, por recomendação médica.
- É o melhor que você faz. Ainda mais com essa noite chuvosa...
Murilo entrou. No meio da sala antigo baú, aberto, tinha espalhado à sua volta o heterogêneo conteúdo. Eram fotos, revistas, pequenos objetos, papéis em quantidade. Enfim, a velharia típica que recheia velhos baús.
- Mas o que é isto? Altas arrumações?
- Você não queira saber... Eu estava aqui numa verdadeira sessão nostalgia. Aproveitei o descanso forçado para revirar este baú. Murilo, aqui há coisas guardadas há trinta anos! Se você me perguntar para que, nem eu mesmo sei. Mas, sabe? Trinta anos depois estas coisas começam a ficar curiosas.
- Um baú de trinta anos! Você era bem novo, não?
- Tinha meus vinte anos. Estou com cinquenta e três... Trinta e três anos, para ser mais preciso.
Murilo cruzou os braços e correu os olhos por tudo aquilo espalhado pelo chão. Não era uma caixa muito grande e as reminiscências iam ainda a meio, mas a desarrumação, esta já era total.
- E eu posso saber o que guardou para o futuro um jovem de vinte anos?
Maurício sorriu. Quantas coisas havia guardado! Abaixou-se e do meio daquela papelada apanhou um caderno. “Hora H”. Bastava a capa - dois estudantes chegando à escola e apontando para um enorme relógio por trás do prédio - para reiniciar o processo nostálgico interrompido. Estendeu-o ao amigo :
- Veja, Murilo. Poesias. Você sabia que já fui poeta?
- É, você tinha uns dotes literários. Mas poeta mesmo, é um pouco demais...
Enquanto ele folheava o caderno, interessado nos dotes do amigo, Maurício apanhou novamente o boletim do clube.
-Quando você chegou eu estava querendo me lembrar por que diabos eu teria guardado esta revista.
Murilo trocou o caderno pela revista.
- É um exemplar da “Revista do Fluminense”. Janeiro de 52. Circulava apenas entre os sócios com a programação social do mês, além de outros assuntos. Devo tê-la guardado pelo mesmo motivo que guardei todos esses objetos: para nada.
- Bem me lembro dela. Talvez esteja aqui o motivo, veja: está sublinhado o dia 19, um sábado - e houve uma “boite-show” nesse dia.
- Não tinha reparado. Deixe ver.
Murilo devolveu-lhe a revista.
- Realmente. Lembra ? Naquela época havia uma festa dessas por mês, e sempre aos sábados.
- Curioso.
- Por que curioso? Até hoje os sábados são dias preferidos para festas.
- Não, não é isso, Maurício. O que achei curioso é que hoje também é sábado, e também 19 de janeiro. Trinta e três anos depois, os dias da semana coincidem.
Maurício não deu muita importância à coincidência.
- É verdade. Mas ouça o que diz o programa social: “Dia 19: ‘Boite-show’, com início às 21 horas e término à 1 hora. Atração principal: Charles Trenet, o criador de ‘La Mer’ com Ferreira Filho e sua orquestra. Traje: Passeio Completo”.
- Charles Trenet! Como fez sucesso, lembra-se? Acho que ainda canta...
- Nada, já deve ter morrido. E Ferreira Filho? Era o titular dos salões do Fluminense. Uma beleza de conjunto, com a marca do bom gosto...
Maurício interrompeu bruscamente o seu comentário.
- Murilo!
- O que foi?
 -Acabei de me lembrar por que guardei esta revista!
- E por que foi?
- Nesse dia, 19 de janeiro, aconteceu um fato insólito - nunca esta palavra foi tão bem empregada - lá no clube. Por isso assinalei esta data. Lembro-me agora, aquela “boite-show” para mim foi memorável!
- Por que? Começou ou acabou algum namoro?
- Nem uma coisa, nem outra. Na verdade eu estava um tanto aborrecido por estar sem ninguém. Você me conhece. Eu nunca fui muito “entrão” com as meninas, gostava mesmo era de ter uma namoradinha certa. Lembro-me que tinha ido ao clube naquela noite apenas para assistir o Charles Trenet. Afinal, era uma atração internacional.
- Que eram raras, na época. E eu me lembro que perdi aquela “boite-show”, não sei por que motivo.
- Muito raras. Mas todos os artistas que vinham ao Brasil, ou quase todos, apresentavam-se no Fluminense. Eu não perdia nenhum daqueles shows. Estava firme, uma vez por mês, com a turma de sempre, todos nós impecáveis em nossos trajes “passeio completo”.
- Eu era um dos mais “engomados”... Mas afinal, o que houve naquela noite?
- Eu vou lhe contar:
Os três salões estavam repletos, e Ferreira Filho atacava de “Frio en el alma”. Nós, andando de um para outro lado, examinando as meninas, comentando os namoros, enfim...  as mesmas coisas de sempre.
De repente, um tipo estranho saiu do toalete. Roupas bizarras, largas e coloridas, cabelos grandes e encaracolados. Usava óculos redondos, de aro de metal, que na época me pareceram iguais aos de minha avó.
Ninguém entendeu nada. Olhamos uns para os outros, depois para ele. O rapaz parecia um pouco mais velho do que nós, talvez tivesse uns vinte e cinco anos, sei lá. Contrastava conosco em tudo, desde os nossos austeros ternos e gravatas aos cabelos impecavelmente domados por poderosas brilhantinas. Ocorreu-me que talvez fosse figurante no show. Mas não, a atração era um “chansonier”, portanto não haveria, nem antes ou depois, o clima para espetáculos de circo.
Mas o que me marcou muito foi o rapaz estar... apavorado! Literalmente apavorado, quase em estado de choque! Assustado, agia como se fosse louco, olhando para tudo e para todos. Estava a ponto de estourar.
Ficamos frente a frente. Ele fitou-me e disse, em voz baixa, enquanto me segurava pelos dois braços:
- Que brincadeira é essa?!
- Brincadeira? - eu lhe respondi, enquanto me soltava de suas mãos, que me apertavam nervosamente - Eu é que não estou entendendo. Você faz parte do show?
Eu sabia que não, mas foi a única pergunta que me veio à cabeça.
- Eu não faço parte de nenhum show! Eu sou sócio! Eu sou sócio!
Tentei puxar conversa com ele, enquanto andávamos pelo salão. Fui com ele para uma das varandas laterais, mas ele não se sentiu aliviado com o ar fresco da noite, como eu esperava. Debruçou-se no parapeito, olhando longamente para os carros que chegavam e partiam.
- Você bebeu? - arrisquei perguntar.
- Eu não bebi nada! Eu não sei de nada... Meu estomago está dando voltas...
Achei que ele ia desmaiar. De repente, levou a mão à boca e voltou correndo para o salão, em direção ao toalete. Fui atrás, mas já com dificuldade. O show já ia começar e nessa hora a movimentação para garantir um bom lugar era grande.
Nesse ponto, Murilo, que ouvia atento, interrompeu-o:
- E então? Conseguiu alcançá-lo?
- Não. Bem... na verdade, nunca mais o vi.
- Como? Nunca mais o viu?
- Eu nunca lhe contei esta história?
- Não, para mim tudo isso é novidade.
- É estranho, estávamos sempre juntos naqueles shows...
- É, mas eu perdi Charles Trenet, não lhe disse? Talvez por isso...
- Mas deixe-me continuar: Quanto tentava alcançá-lo, correndo também para o toalete, alguém da nossa turma parou-me por um instante, chamando-me para ver o show. Bastou isso para, quando cheguei ao toalete, já não mais o ver. Estava vazio. Conseguira sair sem que eu o visse. Mas havia esquecido seus óculos redondos em cima do lavatório.
Maurício voltou-se para o baú procurando alguma coisa entre os seus guardados.
- Olhe...
Eram os óculos, que estendeu para o amigo.
- Curioso - disse Murilo - São realmente parecidos com os da vovó... Mas é um modelo que está se usando por aí, novamente.
- É, a moda é assim mesmo. Vai e volta.
- E então, sobre o rapaz? Mais nada?
- Mais nada. Evaporou-se. Mas como estava assustado! Fiquei sem jamais saber por quê. Enfim, deixei o toalete, guardei os óculos no bolso e fui assistir o Charles Trenet. Afinal, não poderia perder o espetáculo.
Maurício então começou a relembrar os velhos tempos do Fluminense, enquanto brincava com o par de óculos que Murilo lhe devolvera. O assunto desviou-se, mas continuava nostálgico.
- Meu caro, aqueles shows eram realmente muito bons! Não fossem aquelas festas, nós jamais teríamos assistido Louis Armstrong, Pedro Vargas, Carlos Ramirez, Billy Eckstine... Os ídolos da época.
- Os ídolos de hoje dão shows para milhares de pés-soas de uma só vez.
- É. O que era privilégio de poucos hoje está massificado. É pena que a “galera” grita tanto que nem ouve o artista. E nem vê, de tão longe que assistem... Não fossem os telões...
- Ainda assim, vale a pena para quem nunca viu coisa melhor.
Murilo olhou o relógio, preocupado com a demora da visita. Estava ficando tarde.
- Maurício, já passa da meia-noite. Já vou indo. Como disse o seu médico, o que cura uma gripe é o repouso, não estas reminiscências até altas horas.
- Mas uma gripe se cura também com um bom papo. Fique por aqui, ainda falta meio baú...
A nostalgia continuaria, alimentada por aquele baú mágico, não fosse a chegada de Gustavo. Para uma noite de sábado, até que vinha voltando cedo.
- Olá, meu filho. Mas, já em casa a essa hora? O que houve?
- É, Gustavo. Sábado à noite não é para se estar em casa a essa hora. Deixe isso para seu pai e eu...
Gustavo entrara um tanto calado.
- Pois é, seu Murilo. Mas eu não estou legal.
- Que houve? Você não estava na discoteca? Está um pouco pálido!
- Não sei. Uma loucura.
Gustavo falava enquanto olhava alternadamente para o pai e para Murilo.
- Se eu lhes contar, vocês vão achar que estou ficando maluco.
- Ora, por que pensaríamos?
- Por que? Olhem só o que me aconteceu: Cheguei ao clube, fiquei rodando com a turma, como sempre. Tudo normal. Em certa hora, fui ao lavatório. Quando saí... vocês não vão acreditar...
- Em que?
- Eu dei de cara com uma festa - outra festa, não era a discoteca - inteira, completa, igualzinha àquelas do seu tempo, que você às vezes relembra, comentando comigo! Tudo real, pai! Falei com os rapazes, toquei neles, ouvi a orquestra tocando o maior bolero... Vi os carros, na rua, eram os da sua época de rapaz...
Olha... senti um tremendo mal estar, achei que meu estômago ia sair pela boca. Só tive tempo de correr de volta para o lavatório e me aliviar... Acalmei-me um pouco, lavei o rosto, molhei a cabeça e fiquei parado olhando-me no espelho, criando coragem para enfrentar de novo aquela loucura... Enfim, resolvi sair. Pois bem - no salão, a discoteca estava comendo solta, normalmente...
Maurício e Murilo, eles sim, agora pareciam estar em estado de choque. Imóveis, as palavras não saíam, presas na garganta. Gustavo ainda mais se impressionou com o mutismo dos dois.
- Pai, diga alguma coisa! Será que estou tão ruim assim?
Maurício não tirava os olhos do filho.
Ali estava o rapaz de roupas bizarras, largas e coloridas, cabelos grandes e encaracolados... sem os seus óculos...
Lentamente, estendeu-lhe a mão e conseguiu falar, num fio de voz:
- Olha, filho... os seus óculos... Você os esqueceu no toalete...

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