quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

ESTER


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E S T E R

Março – 2007

Há muitos e muitos anos quase nada acontece em Raposo, e assim será ainda por longo tempo... Talvez por isso Ester tenha se encantado tanto por essa pequena e simpática cidade. Por isso, e por tudo pelo que passou por lá.
Quando esteve em Raposo pela primeira vez tinha apenas sete anos, levada por seus pais, que foram em busca das águas benfazejas. Desde então, quase todos os anos repetiam-se as férias na cidadezinha. Fez tão boas amizades, que quando a família chegava para as temporadas, ela logo se juntava às crianças para as brincadeiras, e mal aparecia no hotel. Desapareciam as diferenças sociais na simples, ingênua e sadia vida local. Não havia problemas. Além do que, Genaro estava sempre disponível, e muitas vezes deixava seu posto de gerente para trazer a menina de volta ao hotel, procurando-a de casa em casa...
Ela jamais esqueceria esta etapa de sua vida. Como, de resto, tudo mais...

E Ester cresceu, e com ela aquela meninada amiga. Cresceu, mas jamais abandonou Raposo. Tomou-se de amores pela cidade, por suas necessidades, seus problemas, seus velhinhos e suas crianças. Já não ia por lá apenas nas férias. Com o tempo, ficou sem mãos a medir no auxílio àquela pobre gente, que a considerava uma santa de carne e osso. Quando chegava, vinha com o carro abarrotado. Era um agasalho, um reforço nas despensas quase vazias, ou uma palavra amiga.
Não era aguardada apenas pelo que trazia, mas por quem era. Distribuía, acima de tudo, amor. Por isso era tão querida. Seus aniversários eram sempre comemorados junto àquela gente, que retribuía com carinho e dedicação o que recebiam. A sua data era sempre festejada não no hotel, mas na casa humilde de um dos seus assistidos, que faziam questão de se revezarem no acontecimento.
Ester era feliz.  


Mas... aquele ano foi diferente. Ester não apareceu, no seu aniversário. Deixou que todos esquecessem as comemorações e só apareceu em Raposo um mês depois. Não foi em seu carro, como sempre. Tampouco reservou o apartamento a que estava acostumada. “Tanto faz...” - pensou - “Qualquer um há de servir...”.
Chegou de ônibus. Sozinha. Fugindo dos velhinhos e das crianças. Desta vez queria ver os seus cinquenta anos passarem em branco, não queria dividir alegrias. Na verdade, não havia alegrias a dividir. Que seus amigos nem soubessem de sua estada na cidade. Estava triste, abatida. Porque sabia que talvez fosse a sua última visita a Raposo.
Havia descoberto um câncer. Um câncer no pulmão, herança de mais de vinte anos de um cigarro que não conseguia abandonar.
Genaro estranhou o seu comportamento. Mas a discrição que o seu cargo exigia impôs-lhe o silêncio. Quando lhe entregou a chave do apartamento, avisou que teria que aguardar um pouco antes de tomar os aposentos, pois a camareira ainda o estava arrumando.
- A senhora não avisou que vinha, d. Ester... Desta vez a senhora nos fez uma surpresa. O seu apartamento ainda não está pronto...
- Não tem importância, Genaro. Já não vão chamar para o almoço? Eu aguardo, ali na varanda. É tão agradável...
Agradeceu, esboçando um sorriso. Alcançou a varanda, procurou um canto onde seria difícil ser vista e logo acendeu um cigarro. Fingia distrair-se com as espirais de fumaça. Não era mais aquela Ester alegre e jovial que todos conheciam. O olhar perdido na brasa que ardia entre seus dedos patenteava a sua tristeza.
Demorou-se olhando em volta aquele local tão conhecido. Embora o hotel tivesse passado por uma boa reforma, há poucos anos atrás, e estivesse mais bonito e confortável, isso não era novidade, pois ela já conhecia as novas instalações. Tinha saudade das antigas, do grande espelho da portaria, onde mal conseguia se ver, lá de baixo dos seus sete anos... Conhecia também todos os funcionários: uns tinham mais de trinta anos de casa.
Estava distraída rememorando os “velhos tempos”, que sequer percebeu quando uma senhora sentou-se ao seu lado. Sorrindo, logo se fez simpática.
- Posso sentar-me aqui?
- Por favor, será um prazer.
- Está esperando o almoço? Eles aqui tocam um sino para a chamada, não é?
- É... é uma boa maneira de alcançar quem estiver mais distante... Você também está aguardando?
- Não, eu nem estou hospedada. Mas adoro esta varanda... Pelo que vi, você está chegando agora. Foi boa a viagem?
- Muito boa. Mas, apesar disso, mal posso esperar o almoço para subir para o apartamento. Estou muito cansada....
- Da viagem?
- Sim... e não.
- Sim e não? Por que? Veio de longe, com certeza...
- Não, nem tanto. Foram poucas horas de ônibus...
- Mas está cansada...
- É porque tenho um pouco de dificuldade em respirar.
A senhora olhou-a, compreensiva.
 - É, eu sei.
Ester estranhou suas palavras.
- Como, sabe? A senhora notou?
Ela não teve meias-palavras:
- Sei, e por isso estou aqui. Você tem um câncer...
Ester assustou-se. Quem era aquela senhora, que sabia sobre seu mal? Se ninguém em Raposo tinha ainda conhecimento...
- Quem lhe falou sobre minha doença?
Ela não respondeu. Agora séria, desviou-se da pergunta:
- E você também sabe porque está com câncer.
Ester ficou curiosa. Aquela mulher estava inexplicavelmente muito bem informada sobre ela. Resolveu não questionar, ela mesma acabaria por se explicar.
- Sei. É o cigarro. Não consigo deixá-lo.
Ela olhou para o cigarro aceso na mão de Ester.
- A cura está nas suas mãos.
- Cura?... Não adianta. Eu estou desenganada. O câncer já tomou os dois pulmões e há suspeita de metástases.
Ela repetiu:
- A cura ou a morte. Está nas suas mãos.
A conversa estava começando a incomodar Ester.
- Quem é a senhora?
- Alguém que quer e pode lhe ajudar.
- Ninguém pode me ajudar. Não há médico, nem remédios, nem... simpatias que curem este câncer.
- Não estou falando de médicos, nem de remédios ou simpatias. Estou falando de tempo. O tempo poderá lhe curar, se você acreditar nele.
- Minha senhora, não sei quem a senhora é, e não quero ser indelicada, mas não sei porque insiste tanto. Ao menos respeite o meu sofrimento. O tempo vai me destruir, não vai me ajudar.
As palavras ríspidas de Ester não intimidaram a mulher, que não se alterou:
- Depende de você. Se você acreditar, o tempo poderá lhe ajudar. Procure me dar crédito. Pense: por que eu estaria aqui, dizendo-lhe estas coisas? Por que será que eu vim falar-lhe que o tempo pode ajudar... Por que? Não seria um tanto estranho?
E, depois de uma pausa:
- Ester... Há uma brecha no tempo que pode lhe ajudar.
Ester reparou que também não lhe havia dito o seu nome.
- Uma brecha?
- Sim, uma brecha.
Ela sugava nervosamente o cigarro. Resolveu levar aquela estranha conversa até o fim.
- Uma brecha no tempo... Eu não sei do que a senhora está falando. Mas, admito ter sido estranho, realmente muito estranho, a senhora ter aparecido aqui, do nada, com informações sobre mim não sei conseguidas onde, intrometendo-se na minha vida, e dizendo que veio para me ajudar... Quem é a senhora, afinal?
Sentiu que mais uma vez foi um tanto rude. E mais uma vez a enigmática mulher pareceu não se importar com a rudeza das suas palavras.
- Pois é. Então, por que não acredita em mim? Que você não acredite que o tempo poderá lhe curar; mas por que não confia em mim? Cumpro minha obrigação, vindo aqui, mas faço isso com amor. Não há nada a perder, não estou lhe exigindo nada...
Ester estava confusa. Ela estaria cumprindo uma obrigação? Não havia lógica em nada do que dizia. Mesmo desnorteada, alguma coisa a fazia aceitar as palavras da estranha. Afinal, qualquer apelo à cura não poderia simplesmente ser descartado. Se não era uma simpatia...
- Acredite em mim, acredite no tempo.
- A senhora manda-me acreditar no tempo. Já disse, o tempo há de me destruir, isto sim. É uma questão de meses...
- Há dois tipos de tempo...
- Como?
- Um é contado pelos ponteiros do relógio, que giram, giram em torno de si mesmos sem chegar a lugar nenhum, avançando para o desconhecido. O outro, este olha para trás, para o que já se foi...
Ester completou, com sarcasmo:
- ...e não volta mais...
Fez-se o silêncio. Depois a senhora levantou-se, sorriu, beijou-lhe carinhosamente a testa e mais uma vez repetiu, enfatizando:
- Acredite no tempo, que você vai ser ajudada. Sua bagagem é muito grande, Ester, você fez por merecer... Você vai compreender...
E saiu. Ester ainda a viu, caminhando lentamente, até desaparecer na esquina da praça.
- D. Ester, o sino está tocando...
Genaro vinha avisar-lhe sobre o almoço. Ela falou, entre dentes:
- Acredite no tempo! Ora, o que o tempo poderia fazer, bem sei... Que crescessem os meus tumores, que aumentassem as dores, a agonia, dificultando ainda mais a minha respiração... Não... O tempo não poderia fazer nada!
Mas... era um impossível fio de esperança...
- O que disse, d. Ester?
- Ahn? Ora, nada, nada... Genaro... Quem era aquela senhora que estava aqui comigo, quando você chegou?
- Senhora, d. Ester?
Ester esperou a resposta em vão. Sentiu que ela não viria.
- Não, não, nada. Esquece.
Levantou-se, então, e procurou a portaria do hotel, e foi seguida por Genaro. Almoçaria e depois subiria para descansar um pouco. Toda aquela conversa havia lhe causado muito desconforto.


Quando entrou na portaria, o que viu foi um ambiente muito conhecido seu, mas... aquele, de vinte anos atrás. Sem as reformas que ela um dia tanto elogiara, e sim com o antigo balcão, o grande espelho na parede, o cantinho da telefonista, que lhe cumprimentava sorrindo...
Voltou-se para Genaro. Mas quem estava ali não era mais o sexagenário que a havia acompanhado, mas... o atencioso rapaz que ela bem conhecera em outros tempos. E todos os outros funcionários estavam também bem mais jovens...
Sentiu-se mal. Aquelas inusitadas visões do passado com certeza estavam sendo causadas pelo seu estado de saúde. Quase desfaleceu, e foi amparada por Genaro.
- D.Ester, a senhora está bem?
- Não, Genaro, eu... não estou nada bem.
Voltou a cabeça para o lado, e deparou com o espelho. Quando se viu, refletida, mais ainda assustou-se. Estava jovem, uma jovem de vinte e poucos anos... Seu rosto, seus cabelos... sua roupa... Tudo estava mudado.
O solicito gerente, apreensivo, procurava atende-la.
- Sente-se aqui, descanse um pouco...
- Genaro... Você é o Genaro, não?
O rapaz estranhou, mas respeitou-a, pelo mal estar que ela disse sentir.
- Sim, D. Ester. A senhora me conhece há tanto tempo...
- Pois é, Genaro... Olhe... eu vou lhe fazer uma pergunta... Não se assuste... Apenas dê-me a resposta: em que ano nós estamos?
Ela enfatizou a palavra ano.
- Mil novecentos e setenta e um, d. Ester.
E deu um sorriso, como quem não estava entendendo a razão da pergunta. Mas também não pediu explicações.
- Mil novecentos e setenta e um! 17 de janeiro?
- Sim... Meus parabéns, por mais um ano...
Ester olhou para o cigarro, na sua mão. Não era a marca a que estava usando quando chegou ao hotel. Examinava, incrédula, tudo, todos. Os outros empregados olhavam-na também, discretamente, preocupados.
Ela os conhecia a todos. Mas, de vinte anos atrás...
Então, lembrou-se das palavras da mulher: “O tempo vai lhe curar, Ester. O tempo vai lhe curar...”
Na sua mão, o cigarro ardia entre os dedos. Imaginou-se ali mesmo, há vinte anos atrás. Em que ano ela estava? Por certo, mil novecentos e noventa e um.
Ou não?...
Mas que absurdo! Relutou em pensar em uma incoerência daquelas. Ainda acreditava que as visões eram fruto de sua doença. Assim mesmo, deu curso à sua imaginação:
- Por favor, Genaro, jogue fora este cigarro.
Genaro disse, com indisfarçável satisfação:
- Pois não, D. Ester...

Uma brecha no tempo... Seria isso, então? O tempo iria curá-la...
Ester resolveu agarrar-se àquela situação inusitada como um náufrago a uma tábua de salvação.
Iria livrar-se do cigarro. Estava vinte anos mais moça. Não tinha câncer e por certo não iria tê-lo, seus pulmões ainda estavam limpos. Não iria mais envenená-los.  
Estava em mil novecentos e setenta e um...
Havia recebido uma nova chance. Tinha agora a estranha certeza de que voltaria a Raposo no dia de seu aniversário, em mil novecentos e noventa e um, aos cinquenta anos, com a saúde perfeita. E quando chegasse, Genaro não iria pedir para que esperasse um pouco, porque o seu apartamento já estaria pronto, lhe aguardando... Ela, como sempre, teria feito a reserva com bastante antecedência.
E não estaria sozinha, e sim mais uma vez comemorando o seu aniversário, rodeada de amigos...
E ainda voltaria a Raposo por muitos e muitos anos. Ainda precisariam muito dela por ali...




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