segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

AS CORUJAS

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Dizem que quando se guardam boas lembranças de um lugar, não se deve voltar lá, depois de muito tempo passado. Nada mais verdadeiro. Certamente as decepções chegarão junto com a gente, porque tudo estará mudado. Para quem vai, nunca para melhor, porque o que nos ficou na retina, e que nos foi tão caro, com certeza não existirá mais. A não ser que...


Guapimirim não era o que é hoje. Pensando bem, ainda não é quase nada, mas virou cidade, tirou o Dedo de Deus de Teresópolis, ganhou um, talvez dois supermercados, e algumas ruas com calçamento. Progresso inexorável, desfigurou a Guapi das locomotivas de cremalheira, da Caneca Fina, do Pico das Corujas, das terras de noruega, - terras de noroeste, para os menos letrados - férteis para os bananais que subiam as encostas ensolaradas. A Guapi dos meus quinze anos.


O sítio era a menina dos olhos de meu pai. A gente o chamava de Sítio das Corujas, porque fazia divisa, lá em cima, com o Pico das Corujas.


Oito alqueires mineiros, quase tudo de mata fechada; menos de meio bastava para ele, suas duas mil roseiras, seus sonhos de exportação. Fez questão de fazer uma casinha de pau-a-pique, coberta de sapê, só e mais nada, porque não queria macular o local com uma construção de alvenaria. É bem verdade que não tinha nem como construir uma casa, dessas com letra maiúscula, mas, ainda que tivesse, não a faria.


Mas a casinha era uma delícia. Três cômodos, só depois vieram o banheiro e a cozinha, no aumento. Era assim que a chamávamos: a casinha, e depois o aumento. Logo ele trouxe, de uma das oito nascentes, água límpida em um encanamento de embaúba, que a despejava em cima de uma pedra, bem do lado da casinha. Dali ela escorria para um riozinho que passava perto. O seu murmúrio constante, no silêncio da noite, puxava o sono quando a gente ia dormir.
Depois, construiu um munho – moinho, para os menos letrados – meio distante da casa, botou lá uma mó enorme, que não sei de onde veio, e que, se fez fubá umas duas vezes, foi muito. Tudo ele fazia, ou ao menos tentava. Ele mesmo; não mandava ninguém fazer. Levou uma fiação do munho até a casa, comprou um dinamozinho usado, movido a água, e, coitado, depois de tudo só conseguiu amornar o filamento de uma lâmpada. Mas não se importou. Acho que ele gostava mesmo era dos lampiões de querosene.


 Ninguém queria ir, nos fins de semana? Ele ia sozinho. De ônibus até a Leopoldina, depois a maria-fumaça, e por fim, uma hora em lombo de burro, que este, Alcides levava até a estação, passando pela subida íngreme do Espinhaço. E na volta pro Rio, não tinha pejo: pleno domingo à noite, atravessava a praça, que regurgitava com os footings da garotada, de botas até os joelhos, chapéu, e um enorme cacho de bananas nas costas. Essa imagem está guardada para sempre.
Quase sempre eu ia com ele. Compartilhava de suas idéias, de seu entusiasmo contagiante, embora contido, que ele não era muito de extravasar emoções. Na verdade, não o ajudava em nada, em seus afazeres. Apenas passeava. Mas ele não se importava, pois dava a impressão de querer fazer tudo sozinho.
Curtiu a compra de um caminhãozinho Ford 29, que nunca se concretizou. Não era caro, mas não havia dinheiro. Não se abalou. Não pode, não pode, e pronto. Nunca o vi reclamar. Mais tarde, inscreveu-se para adquirir um jipe zerinho, através de financiamento do governo. Quando o jipe chegou, ele já tinha ido para o outro lado. 

Gostava de vê-lo conversar com o Dorico, na soleira da casinha. Levava a sério as conversas do capiau, dava palpites, resolvia questões. Ali ele não era o doutor, embora ninguém conseguisse tratá-lo sem cerimônia. Transformava-se em autêntico roceiro, pegava na enxada debaixo de um sol escaldante, por puro prazer.

Um dia, bem me lembro - ele estava mesmo assim, de papo com o amigo, na soleira da porta, quando chegou por lá um senhor já bem idoso, anunciando-se por palmas, que não havia porteiras nem cercas, e o trânsito era livre para qualquer um. Eu estava por ali, fazendo não sei o que, dentro de casa. Bem mais velho que meu pai, este senhor vinha a pé, caminhando devagar, examinando tudo minuciosamente. Dorico despediu-se com pressa, em respeito à visita que não conhecia.
Meu pai perguntou-me:
- Veio de onde, esse homem? Você o viu chegar?
- Eu não. Nem reparei.
- com cara de quem vai perguntar se o sítio está a venda – disse, deixando a enxada de lado e apoiando-se no umbral, numa posição muito sua.


De longe, já se anunciou por palavras:
- Ô de casa! Bom dia, com licença?
- Tem toda... Vamos chegando...
Eu cheguei até a porta, para vê-lo melhor. Ele estava ofegante, talvez de cansaço por chegar até ali caminhando; afinal havia uma boa subida da entrada do sítio até a nossa casa.
 Mas, não, não era cansaço. Dava a impressão de estar... emocionado, puxando o ar do fundo dos pulmões, não sei porque, talvez apenas por estar ali, me pareceu. Meu pai também sentiu que havia algo diferente, mas não deu a perceber.
- Vamos sentar um pouco – disse, já puxando um banquinho – e sair do sol. Está muito quente, você parece cansado.
Ele sentou-se.
- Obrigado, mas... não é cansaço. É... emoção, por estar por aqui novamente...
Eu estava certo.
- Emoção?...
- Sim... – fez uma pausa, sem nos fitar, e puxou novamente a respiração lá do fundo - Conheço isso aqui há mais de sessenta anos, e nunca imaginei poder voltar um dia...
E girando a cabeça, examinando tudo em volta:
- Quase nada mudou...
Aguçava a nossa curiosidade.
- Você foi dono desse sítio? Estou aqui apenas há três anos. Por certo não foi de você que o adquiri...
- Não, não... – e, com evidente precisão de mudar de assunto - Posso entrar na casa?
- Claro, seja bem vindo.
Meu pai não era desses que dizem “não reparem, é casa de pobre, etc, etc”; aquela casa era o seu palácio, se era boa pra ele, era boa pra qualquer um.

 - Vamos sentar aqui dentro, é muito fresco, graças ao sapê. O calor não passa...
- É, eu sei... E ali, é a cozinha? O banheiro?
Era incomum o interesse do desconhecido pela casa e pelo aumento. Andou por toda ela, o que na verdade não demorou nem um minuto, pelo tamanho exíguo dos aposentos. Depois, saiu pela parte de trás, deteve-se examinando o roseiral, deu a volta, parou na bica d’água, foi até o riacho... e nós dois atrás, sem entender direito o que queria o homem.
Ele parecia medir as palavras, dava-nos a impressão de que não queria falar mais do que os monossílabos que nos dirigia. Mas, por que?
- Meu nome é João Alberto – disse, sem que perguntássemos.
- Muito prazer. Eu sou Francisco, e esse é meu filho, Maurício.
Quando meu pai apresentou-me a ele, seus olhos marejaram, e ele baixou a cabeça.
- Você está bem?
- Sim, estou... É que a emoção traiu-me, de vez...
- Mas... por que? Alguma coisa que eu falei?
Sua voz estava travada. Ele realmente não queria falar. Sentiu que precisava inventar algo que nos convencesse. Por fim, falou:
- Perdi meu filho, aqui, há muito tempo. Quando vi esse rapazinho...
Era evidente a mentira, ele não sabia mentir. Mas respeitamos o seu segredo.
- Senhor... seria pedir muito deixar-me andar pelo seu sitio, sozinho? Há tantas coisas que eu gostaria de lembrar...
- Não, claro que não... Fique à vontade...
Meu pai, disfarçando, começou a raspar o chão com a enxada. Repetiu:
- Fique à vontade.
O homem, depois de um ‘obrigado’, saiu em direção ao munho, caminhando lentamente, até ser encoberto por uma curva da trilha.
- Que homem estranho... – disse meu pai. – Quem será? De onde veio essa figura?
- Olha, pai, ele deixou a máquina fotográfica em cima da mesa. Não vamos nos esquecer de entregá-la.
E ali ficamos, respeitando o passeio solitário do desconhecido, aguardando que, na volta, ao menos nos dissesse mais alguma coisa.
Mas... ele não voltou. Horas depois, procuramos por todo o sítio, Alcides ajudando, mas não vimos nenhum sinal do misterioso personagem. Ainda ficamos em guarda, lampiões acesos, por toda a noite. Nada. Não havia outra saída, o sítio era muito íngreme, terminava lá em cima no pico das Corujas. O homem evaporara-se.
Isso foi em mil novecentos e... quarenta e nove, se não me engano. Um mistério de sessenta e um anos, que dura até hoje.


Eu estava agora há pouco sentado em minha poltrona, folheando nostalgicamente o velho álbum de fotografias do sítio. Fotos em preto e branco, um tanto mal tiradas, culpa dos fotógrafos e da antiga máquina de fole do meu pai, levaram-me facilmente ao Sítio das Corujas. Lá estava a velha estação de Guapi, a rua principal, depois as primeiras fotos só do terreno, ainda sem a casinha de sapê... enfim, naquele momento mágico voltei lá, com meu pai, minha mãe, meus irmãos, presenciei a tosca construção de pau-a-pique, passeei por aquelas matas... Cada foto, cada página do álbum que eu virava, era uma lembrança, uma recordação que não se apagará nunca... Demorei-me em cada uma delas, lembrando-me até dos momentos em que foram tiradas...


Num canto de uma página, não sei por que, uma pequena foto chamou-me mais a atenção do que as outras. Lembro-me que foi tirada por mim, em uma tarde que vinha chegando ao sítio, sozinho, vindo do Rio, e deparei com meu pai e Dorico conversando, na porta da casa.
Lembrei-me bem de quando a tirei, ainda de longe, para não ser visto e poder gravar o instantâneo. Depois que a bati, fiquei parado olhando aquela cena. Dorico gesticulava, devia estar falando alguma coisa muito importante, ao menos para ele. Meu pai dava-lhe toda a atenção, sério, balançando a cabeça, concordando, com certeza, com o que ele falava.

Foi quando eles me viram. Dorico logo encerrou o assunto e despediu-se. Passou por mim com um cumprimento, como se não me conhecesse, e se foi. Não entendi.
Aproximei-me, brincando:
- Ô de casa! Bom dia, com licença?
A resposta de meu pai confundiu-me. Embora sorrindo, mediu-me, de alto a baixo, como se eu fosse um estranho:
- Tem toda, vamos chegando...
Então um rapazola assomou à porta, em silhueta, encoberto que estava pela penumbra interior. Quando ele mostrou-se à luz, fui tomado por uma emoção tão intensa, que devo ter causado estranheza àqueles dois. O coração bateu-me descompassado, quase não consegui me controlar.
Eu estava vendo a mim mesmo, ao lado de meu pai, nos meus quinze anos. Estanquei em frente a eles, e por intermináveis segundos fiquei olhando-os, sem saber o que fazer. Examinei-me: olhei para meu corpo, para minhas mãos, minhas roupas. Aquele velho que estava chegando ao sítio, não vinha da estação de Guapi. Vinha de uma foto.
Por uns momentos, não soube o que fazer. Mas devo ter preocupado meu pai, que, estendendo-me um banquinho, disse-me:
- Vamos sentar um pouco, e sair do sol. Está muito quente, aqui. Você parece cansado. Entre...
Perguntou-me se eu havia sido dono daquele sítio... Que poderia dizer-lhe? Que sim?
Disfarcei sem respondê-lo, como pude, mas não muito bem:
- Posso entrar na casa?


Meu pai já me havia convidado, na verdade já estávamos entrando. Ninguém perguntou meu nome, mas antes que o fizessem, inventei um, à guisa de início de assunto:
- Meu nome é João Alberto...
Quando ele apresentou-me ao... João Alberto - a mim mesmo - quase desfaleci. Ele percebeu. Perguntou-me, preocupado, se me sentia bem. Novamente menti.
- Perdi meu filho, aqui... Por isso emocionei-me tanto com o lugar.
Ele não se interessou em saber como, nem o por que da minha tragédia.  Estava, e com razão, achando-me muito estranho. Interessei-me em “conhecer” a casa, que me foi franqueada. Contornei-a, saindo pela cozinha, vi o roseiral e o riacho que tanto me encantara na juventude. Fui além: pedi para dar uma volta pelo sítio, sozinho, alegando a nostalgia que tomara conta de mim. Segui pela trilha do moinho, e foi com emoção redobrada que revi a roda d’água, a enorme mó, e, lá em baixo, na saída, o pequeno dínamo que nunca funcionou...
Sentei-me na pedra que servia de mesa para o fubá, e perdi-me em pensamentos, vendo-os vagar a esmo, enquanto a água escorria riacho abaixo. Não sei quanto tempo fiquei ouvindo o murmúrio da pequena correnteza.
Então, um ruído estridente, desagradável, inteiramente inusitado e esdrúxulo para aquele local, feriu meus ouvidos.
Era o meu celular.
No mesmo instante, vi-me outra vez sentado na minha poltrona, o álbum do sítio aberto em meu colo, já com mais páginas viradas, agora mostrando uma foto da pequena cobertura de sapê que abrigava o moinho e a roda d’água. A “casa de força”, como meu pai a chamava...


Voltei as folhas do álbum, com sofreguidão. Mais atrás, lá estava, no canto de uma delas, a pequena foto que me havia abraçado. Nela, meu pai conversava com Dorico, que gesticulava muito, enquanto ele lhe dava toda a atenção, sério, quem sabe concordando com tudo o que ele dizia...



Um comentário:

  1. Mais um emocionante conto de Maurício Meyer! Muito bom, muito bom! Tocou-me em especial pois hoje mesmo, por uma dessas "coincidencias", estava revendo estas fotos do sítio que você havia me enviado. Tratava-as no Photoshop para enviar pra uma pessoa que gosta muito de fotos e coisas assim. Que coisa, hein?...

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