quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

O ANJINHO SORRIDENTE


O ANJINHO SORRIDENTE
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Março - 2007





Essa história se passou há muito tempo, em Ressaquinha. Perto de Barbacena.
Dorico era um caboclo esperto. Não dava ponto sem nó. Mas não fazia mal a ninguém. Conhecia todo mundo na cidade, e todo mundo gostava dele, e tinha fama de que ninguém o passava pra trás. Mas era temente a Deus, por isso que, o que o Vigário falava, pra ele era lei. Era a palavra de Deus.
Igual a ele só o próprio Vigário, com todo o respeito. Aquele também não deixava que ninguém o fizesse de bobo, não.
Um dia, chegou na cidade um pintor. Ninguém nunca o tinha visto. Chegou, foi procurando logo o padre, porque tinha que pagar uma promessa. Por ter recebido uma graça, ele prometeu que ia pintar o teto da igreja, igual àque-as capelas romanas. Tinha procurado Ressaquinha porque a igreja era de N.S. da Ajuda, e ele, além de ser devoto dela, bem que estava precisando de uma ajuda. Os negócios de pintura não iam muito bem.
Pensando bem, não ia ter muito trabalho, não. A igreja era pequena, o teto era pequeninho, e ele ia cumprir com facilidade a promessa. Ia pintar a N.S. da Ajuda, toda rodeada de anjinhos, aqueles anjinhos cacheados que têm umas asinhas saindo do pescoço. O padre ficou todo satisfeito.
Prometeu, e assim fez. Levantou os andaimes, e todo dia subia lá, deitava de costas nas tabuas e ficava pintando o teto. Demorou bem umas três semanas.
Nas missas de domingo o padre só falava na inauguração do teto novo da igreja. Era uma expectativa só.
Até que chegou o dia.
Naquele domingo, a cidade toda estava lá, pra ver a pintura do homem. Dorico também, não podia perder a festa.
Foi aquela beleza. Ninguém prestou atenção na missa. Era o padre rezando e todo mundo com a cabeça espichada pro alto olhando a pintura. Realmente ficou muito bonito, o teto, o camarada era bom, mesmo. Estava lá a santa, imponente, com os olhos revirados pro alto, em cima de uma nuvenzinha branca, o céu azul, as mãos postas, aquele monte de anjinhos em volta dela, uma beleza.
Foi uma festa.
E o pintor, o que queria mesmo, conseguiu: pegou o bar do Juca, o restaurante do Miguel e mais um outro lá, pra pintar pelas paredes aquelas paisagens que a gente conhece. Depois sumiu. Ganhou o dinheirinho que tinha que ganhar por ali e foi embora. Vai ver que pra pagar outra “promessa”...
Mas o teto da igreja ficou lá. Aquela boniztea... Dorico estava entusiasmado. Nunca tinha visto uma pintura tão bonita. Toda vez que ia na igreja ficava prestando atenção no teto, fuxicando, olhando os detalhes, olhando o rosto de Nossa Senhora, olhando as caras dos anjinhos, um por um...
Então, num domingo que ele estava lá distraído da missa, olhando pro teto, ele viu, bem num cantinho, que um dos anjinhos estava sorrindo. Disse baixinho, quase só pensando:
- Uai, por que é que esse pintor pintou aquele anjinho sorrindo? Se todos os outros tão com aquela cara de piedade, os olhos revirados como quem tá adorando a santa? Por que é que esse tá sorrindo?
Esperou a missa acabar e foi falar com o Vigário, na porta da igreja:
- Bença, padre Alonso.
- Deus te abençoe, meu filho. Quê que cê manda?
- Seu padre... por que é que tem um dos anjinhos que tá sorrindo?
- Sorrindo?...
- É, padre. Sorrindo. Aquele lá do cantinho.
- Vamos lá, vamos lá. Quero ver. Me mos-tra isso.
Entraram, os dois, na igreja. Dorico mostrou o anjinho pro padre.
E o padre:
- Qual é?
- Aquele, padre. Lá no canto...
- Mas aquele anjinho num tá sorrindo nada...
- Como que num tá sorrindo, se eu tô vendo ele sorrir? Se eu tô vendo o risinho na boca dele?
- Meu filho, meu filho! Eu acho que é só você que tá vendo esse anjinho sorrir. E isso é um bom sinal, viu? É um bom sinal!
- Só eu que tô vendo? O senhor não tá vendo aquele anjinho sorrindo?
- Meu filho, pra mim ele tá igual aos outros. Mas, olhe, fique tranquilo que é mesmo um bom sinal. Não conta isso pra ninguém, não, que pode atrapalhar... Vamos ver... Vamos esperar pra ver o que acontece...
Dorico saiu dali cismando com aquela história. Desde esse dia, nas missas, de vez em quando, ele olhava pro anjinho, estava lá ele sorrindo.
-Mas só eu que tô vendo? Não tô entendendo isso. 
E ia embora pra casa, de boca fechada, matutando no assunto.
Um dia, encontrou com o padre, na farmácia. O padre puxou-o pelo braço:
- Dorico, vem cá no canto. Quero te falar um negócio. Eu sonhei com aquele anjinho, Dorico! E no meu sonho ele tava sorrindo! - fez uma pausa, sério - Igual que você disse! Aquilo é um anjo enviado de Deus! - Outra pausa, ele mais sério ainda - Sabe o que é que ele me disse?
- O que, padre?
- Disse que quem consegue ver ele sorrindo, tá prestes a alcançar uma graça. E me disse mais: que se você todo mês der uma contri-buição pras obras sociais da igreja, você vai ter indulgência de todas as coisas mal feitas que você fez...
-Mas, seu padre, quê que eu fiz de mal feito, seu padre?
- Ah, Dorico, a gente sabe, esses negócios seus que você faz aí de vez em quando nem todo mundo pode ficar sabendo, né? A gente sabe disso, Dorico... Aproveita essa oportunidade... Dez mirréis, Dorico! Dez mirréis por mês, isso daí num é nada... Quem sabe?
- Dez miurréis, padre? Dez miurréis é dinheiro, em?
- Mas você vai ter indulgência plena! De tudo o que você fez, imagina só!
Dorico pensou, pensou, e resolveu acertar com o padre. Valia a pena. Ele nunca ia desconfiar da palavra de um anjo enviado de Deus.
Dali pra frente, todo mês lá ia lá o Dorico procurar o padre e pingar dez mil réis na mão dele. E o padre enfiava logo no bolso, aquele ali o sacristão, que cuidava das contas da igreja, não via não.
E o anjinho, sorrindo...
Um dia, apareceu na cidade, de volta, o pintor. Quem sabe se podia ter algum outro trabalhinho pra ele, algum outro restaurante para ele pintar as paredes...
Quando Dorico encontrou com ele na rua, lembrou da história dos anjinhos. Não que ele desconfiasse, mas...
- Oi, como é que vai o senhor? Quanto tempo...
- É, tô aqui vendo se arranjo mais algum servicinho, mas tá difícil...
Então Dorico falou:
- Me diz uma coisa: o senhor pintou lá no teto da igreja, aqueles anjinho tudo igual? Tudo igualzinho?
- Pintei... Todos eles com aquela carinha, aquelas asinhas saindo do pescoço, tudo igual, do jeito que eu vi numa gravura...
- Aquele anjinho lá do canto, aquele bem no cantinho... É igual aos outros?
Ele disse:
- Ah, não, agora que eu tô lembrando. Tem um anjinho lá no canto, que eu pintei ele sorrindo...
Dorico olhou pra ele, sério.
- Cê pintou o anjinho sorrindo?!
- Pintei. Não sei por que, mas padre Alonso me pediu que pintasse o anjinho sorrindo...
Dorico esfriou. Aquele safado daquele padre estava passando ele pra trás... Mas ele ia saber dar o troco direitinho... Virou pro pintor, despedindo-se dele, e falou:
- Trabalho de primeira, viu? Ficou tudo muito bonito! Meus parabéns!
- Ah, muito obrigado...
Quando o homem se afastou, ele foi correndo procurar o padre.
- Bom dia, padre Alonso. Bença...
- Bom dia, Dorico. Abençoado. Tudo bem?
- Tudo bem, padre Alonso. Mas olhe: tá difícil dar aqueles dez miurréis por mês. Tá muito difícil... Quem sabe, eu tava aqui pensando... quem sabe em vez dos dez miurréis por mês eu possa lhe dar, assim, todo mês, assim, eu... eu lhe dou uma galinha? Aí já é uma despesa que o senhor não faz, pra comer, e... esse dinheirinho da despesa o senhor já bota nas obras sociais da igreja... Por que, ó, puxar dez miurréis todo mês pra dar tá difícil pra mim, não tô conseguindo não, seu padre...
O padre olhou pro Dorico, pensou bem, e disse pra ele mesmo:
“Bom, antes uma galinha por mês do que ficar sem os dez mirréis. É quase a mesma coisa, ta bom.”
E disse pro Dorico:
- Tá bom, Dorico.Vamos fazer isso.
- E a indulgência, padre?
- A indulgência continua a mesma. Cê me dá uma galinha por mês, pronto.
E assim foi. Todo mês estava lá o Dorico com uma galinha debaixo do braço. Um mês era uma branca, no outro uma galinha vermelha, uma galinha d'Angola... Cada mês uma galinha diferente. Tudo bem.
Mas um dia, a Ambrosina, que era a cozinheira do padre, chamou o padre Alonso e falou:
- Padre Alonso, tá acontecendo um negócio muito esquisito. O senhor sabe, eu cozinho pro senhor há quanto tempo. O senhor come seus franguinhos aí, eu que faço, eu que vou lá no galinheiro, eu mato os franguinhos... Eu conheço aquelas galinhas todas, conheço as que nascem, as que morrem, conheço todas elas. E tá acontecendo um negócio muito esquisito.
- Ora, Ambrosina, que é que pode tá acontecendo de esquisito com as galinhas, no galinheiro? Que é que pode ser?
- Não sei, padre Alonso. Mas acontece que todo mês que eu vou lá, pra catar uma bichinha pra fazer pro senhor, eu dou falta de uma galinha.
- Dá falta da galinha?
- É, seu padre. Dou falta dela, por mais que procure. Mas o pior o senhor não sabe. Que daí um, dois dias ela aparece de volta. A mesma galinha. Como é que pode isso, seu padre?
O padre, que não era besta nem nada, viu logo qual era o plano do Dorico, pra se livrar de dar o dinheiro. Pegava a galinha dele, de noite, no escuro, e no dia seguinte entregava a mesma galinha pro padre, em pagamento da indulgência.
Ele pensou igualzinho ao outro: "Aquele safado do Dorico tá me passando pra trás... Mas... eu não tenho como, como é que eu vou desmascarar ele? Vou dizer que ele tá me roubando galinha? Não posso... Ele vai mostrar o anjinho que ri pra todo mundo... Acho melhor eu ficar sem só essa penitência e dar o caso por encerrado..."
Procurou o Dorico, e disse:
- Vem cá, Dorico... Sonhei com o anjo, outra vez!
- Sonhou, padre? É mesmo? E o que é que houve, dessa vez?
- Cê sabe qual foi o recado que ele mandou? Que a sua indulgência já tá paga! Cê não precisa pagar mais nada, não precisa me dar galinha nenhuma, não precisa me dar dez mirréis, já tá tudo pago! Fica o dito pelo não dito... E você se livrou dos pecado daquelas coisas lá que você fazia...
Dórico deu um sorriso maroto:
- Que é isso, padre, eu nunca fiz nada... Mas... se o anjo disse que já tá pago, eu só tenho que agradecer a Deus Nosso Senhor, e fico feliz de saber que eu pude contribuir pras obras da igreja.
- Pois é, Dorico, então tá bom assim.
Mas acontece que ainda durante muito tempo continuou a sumir galinha do galinheiro. Era uma por mês, certinho como um relógio. Mas agora elas não voltavam, não. Iam pra outro galinheiro... Enquanto Dorico não repôs todos os “dez mirréis” que tinha dado pro padre, não parou de sumir galinha...
E o padre, calado... Chamou a Ambrosina e disse:
- Ambrosina, ó, acho que tem uma raposa por aí que tá pegando as galinha de noite, e eu não vou ficar de vigia não. Deixa isso pra lá, daqui a pouco ela vai embora pra outro sítio, e a gente se livra dela...
Daqueles dias em diante o padre passou a respeitar mais o Dorico...


E ainda aconteceu mais uma coisa engraçada.
Um dia, o Dorico viu o Doca falando com o padre, na porta da farmácia. Trocaram meia dúzia de palavras, o Doca meteu a mão no bolso, tirou alguma coisa e deu pro padre. Ele olhou prum lado, olhou pro outro, e enfiou a coisa no bolso da batina.
E Dorico:
- Eta ferro... Acho que o Doca também viu a risada do anjo...
Esperou o padre se afastar e chamou o Doca.
- Oi, Doca, tudo bem?
- Tudo bem, Dorico. Como vai?
- Tudo bem... Vem cá, me diz uma coisa: que tal cê achou aquela pintura lá do teto da igreja?
- Ah, mas é muito bonita, né? Gostei muito!
- E me diz outra coisa: você viu, lá no cantinho, um daqueles anjinho sorrindo?
Doca olhou pra ele desconfiado, e falou, baixando a voz, como se alguém estivesse na escuta:
- Cê também viu, Dorico? Ó, a gente tem que fazer segredo daquilo!
- Eu vi. Cê tá pagando a sua indulgência, não tá? Dez miurréis? Todo mês. dez miurréis?
- Tô. Como é que cê sabe?
- Porque eu paguei a minha também. Ó, qué um conselho? Propõe pro padre, em vez dos dez miurréis, dar uma galinha, todo mês. Garanto que ele vai ficar muito satisfeito, e você inda vai sair ganhando.
- Uma galinha, Dorico? E o padre vai aceitar isso? E eu vou sair ganhando, por que?
- Vai por mim... Porque com certeza ele ainda vai lhe dizer que a sua indulgência já tá paga. Pode estar certo que ele vai dizer isso... Vai por mim, Doca... Cê sabe que eu não dou ponto sem nó...




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