sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

EU, PACKARD




Direitos autorais reservados
Eu,
PACKARD

09.11.09



Quando Dr. Bernardo viu minha foto, na propaganda do jornal, não pensou duas vezes: mandou me buscar. E a foto nem era minha, era de um irmão meu. Porque eu era especial. Era não; sou. Tenho quatro portas, três bancos, e sou conversível, com uma charmosa capota branca.  Uma combinação rara na época.
Então, fiz uma longa viagem de navio. Quando cheguei, mal passei pelo representante. Dr. Bernardo já estava lá me esperando. E depois de pequenas formalidades, já saiu me dirigindo, direto para casa. Alberto também já me esperava. Iria ser meu condutor durante muitos e muitos anos.
Nasci em Detroit, Michigan, em 1937. Eu e meus milhares de irmãos. Deram-me o nome de Packard. Mas eu não fiquei em Detroit muito tempo. Dois meses depois já estava no Brasil, de onde não saí mais. Durante quarenta anos fui o xodó dos Siqueira Bastos, que até hoje se arrependem por terem um dia me posto para escanteio.
Agora estou aqui, felizmente muito bem tratado, mas depois de comer o pão que o diabo amassou. Que alma caridosa – e milionária – a que me retirou do monturo e fez-me belo outra vez ! Belo e luzidio, sim, mas... aposentado, inútil. Ah, meus tempos de viagens, festas, doidices dos jovens ! Que saudades !
Por isso, resolvi que, se eu pudesse escrever, escreveria isto que vocês estão lendo em meu pensamento. Casos e mais casos, dos quais participei intensamente, uns tristes, outros alegres, enfim, uma loucura. Comigo, felizmente, nunca aconteceu nada de mais grave. Um arranhão aqui, um amassadinho ali, tudo perfeitamente consertável... Por enquanto deixe-me apresentar minha “família”.
Dr. Bernardo e D. Sara não se descuidavam do lazer, nem deles nem das três crianças, Pedro, Paulo e Arlete. Quase da mesma idade, os três. Diferença mínima. Contrariando a idéia de que irmãos estão sempre brigando, esses se davam tão bem que nunca aborreciam D. Sara, embora fossem levados e arteiros. Pelo menos, enquanto pequenos...
Fazíamos muitos passeios, nos fins de semana e nas férias. Eram piqueniques, viagens a Teresópolis ou Petrópolis, naquelas estradinhas terríveis (imagine, em mil novecentos e trinta e poucos...), mas ninguém reclamava. Eu, aqui, aguentava os trancos sem chiar. Éramos de boa cepa, e não como esses bichinhos de hoje, que correm muito, voam nas estradas e até nas ruas, mas que um buraquinho à toa leva a suspensão embora...
A vida era boa. Dinheiro farto, que garantia tanques cheios, boas férias e retorno alegre. Como aquele dia em que fui requisitado para levar os meninos para uma festa. Meninos, não... já bem taludinhos, isto sim. Naquela idade em que acham que podem fazer de tudo, que são donos da verdade e do mundo. Eles já tinham em torno de quinze anos, por aí.
E lá fui eu, pelas mãos de Alberto, que a toda hora era obrigado a ouvir “súplicas” dos dois rapazotes, para que os deixasse dirigir. Principalmente de Paulo, o mais novo e mais afoito. A ouvir, e a negar. Imagine um daqueles dois frangotes pondo as mãos em meu volante. Se mal alcançavam os pedais... Só Arlete não se aventurava nem a pedir. Naquele tempo as mulheres não “piavam”...
De nossa casa, ainda passamos por mais duas residências, onde pegamos os outros coleguinhas. Seus pais tinham inteira confiança no Dr. Bernardo e na D. Sara, pois deixavam-nos sair sem outra companhia que não a do Alberto. Também, meu motorista era quase da família. Aonde íamos, estacionava-me e entrava junto com os meninos onde eles fossem. Era um cão de guarda. Mas as coisas eram bem diferentes, não havia todos esses perigos que existem hoje, onde meus irmãos têm que ser blindados, com vidros escuros e sem nenhum charme. Como devem sofrer, com todas aquelas chapas pesadas, aqueles vidros à prova de balas, rodando trancados e gelados por dentro!
O fato é que, naquele dia, lá fomos nós. Não imaginávamos o que nos esperava. Ou melhor, o que me esperava...
O mundo estava em guerra, a famigerada guerra mundial. Mas aqui no Brasil ela felizmente resumiu-se aos terríveis ataques aos nossos navios, ao envio de soldados à Itália e ao “esforço de guerra”, onde se fazia, entre outras coisas, treinos de blecaute para prevenir possíveis bombardeios. E foi um desses blecautes que nos pegou no meio da festa. Soou a sirene, as luzes foram todas apagadas, breu absoluto. Foi aí que eu sofri.
O breu não era assim tão absoluto, pois era noite de lua crescente. E disso se aproveitaram os dois rapazes para sair sorrateiramente da festa, atrás de mim. Tremi nas bases quando os vi, pois sabia de suas intenções. E não deu outra. Com a chave na ignição, que naquele tempo ninguém se preocupava com essas coisas, fui presa fácil de Paulo. Pedro ainda hesitava, mas era incentivado pelo caçula. Alberto estava na festa, de olho na Arlete, confiante que os meninos eram comportados. Pois juntaram-se a eles os três colegas de festa, enfiaram-se em mim, e, não sei como, Paulo deu a partida, confiando na luz da lua.
Não andaram nem quinhentos metros. Saíram ziguezagueando e bateram, de leve, felizmente, mas... num carro do exército, que fazia a ronda no blecaute... Eu não sofri quase nada, que naquela época éramos feitos com chapas de macho. Só um amassado no paralama, que mais tarde foi logo consertado.
Depois de um pedido de desculpas do Dr. Bernardo, o major que comandava a viatura aliviou o castigo, com uma grave advertência por se tratar de situação de guerra. Mas não era nada tão exigente como seria hoje em dia. Eu sei que quem levou a pior mesmo, fui eu.
De outra vez, novamente fui eu quem saiu perdendo. Combinaram um piquenique. Como disse, eu sou conversível, e não estava muito calor, por isso baixaram a minha capota. E lá fomos nós, a família toda e mais aqueles amiguinhos, que estavam sempre com a gente. Chegamos, arrumaram o convescote, eu parado bem perto, o Alberto ali também, quando de repente caiu uma chuva repentina, daquelas de verão, e a minha cobertura enguiçou. Mas quem enguiçou mesmo foi o Alberto e o Dr. Bernardo, que não souberam manejá-la. E encharquei-me todo. Alias, todo mundo ficou encharcado, porque não tinha por perto nenhum outro abrigo.
Eu sei que voltaram todos pra casa morrendo de rir, numa farra danada, e as roupas, os meus bancos de casimira, tudo molhado. E lá fui eu novamente pra oficina, pra passar por uma limpeza geral. Foi mais uma amenidade...
Histórias é que não faltam... Algumas bem desagradáveis, como por exemplo quando me puseram aqueles terríveis tubos na traseira. Era a guerra, não havia gasolina, e eu precisava rodar. O gasogênio quase acabou com meus, digamos, pulmões. Mesmo assim, de 41 a 45, pouco rodei. Acender aquelas caldeiras era um inferno, e eu, de rabo quente, tossia, tossia, mas não podia nem reclamar. Depois, com o fim do conflito, novamente deram-me de beber a boa gasolina.
E os corsos? Que carnavais tive! Capota arriada, mais de vinte pessoas em cima de mim, pela avenida, e eu nem nada...
Naquela época, imaginem, já havia vândalos. Por causa de uma discussão boba entre os rapazes, uma vez aproveitaram que eu estava estacionado num lugar ermo e rasgaram toda a minha capota. Desta vez saí ganhando. Logo puseram-me uma nova, e branca, um luxo na época. Fiquei ainda mais bonito, com meu nariz empinado. Eu era azul marinho, rodas de banda branca, aquela banda largona de antigamente. De capota branca, então...
A família pegou um amor tão grande por mim, que nunca pensou em me trocar por modelo mais novo. Dinheiro para isso não faltava. Consideravam-me como um membro da família, mas felizmente nunca tiveram o mau gosto de colocar em mim um nome “carinhoso”. Sempre fui tratado pelo meu nome de batismo: Packard.
Talvez um dos meus dias mais marcantes foi quando levei Arlete ao altar. Ela estava linda! A capota branca, arriada, era uma novidade, um charme. O pai, orgulhoso, deu-lhe a mão para que descesse, e entraram na igreja ao som da marcha nupcial. Com pena, resignei-me a ficar do lado de fora, e a participar da cerimônia somente depois, na saída. Mas, valeu a pena recebê-la de volta, agora com aquele que seria seu companheiro por toda a vida. Fiquei cheio de arroz.
Mas nem todas as histórias que vivi foram amenas. Já fui cúmplice, é claro que involuntário, de uma verdadeira tragédia familiar.
Os meninos cresceram, eram homens agora, embora homens sem nenhuma experiência de vida, verdes ainda, um pouco mimados pelo dinheiro farto. Do Pedro nada posso dizer, era centrado, ciente de seus deveres e muito correto. Mas Paulo, coitado... enveredou por caminhos obscuros, desde cedo. Já com 15, 16 anos começou a mostrar quem seria. Foi ele quem incentivou a me levarem, naquela noite do blecaute, foi ele quem me dirigiu e causou o acidente. Seria apenas uma travessura de adolescente, mas não parou por ali. Logo aprendeu a fumar, e do fumo passou à bebida. Pedro estava sempre ao seu lado, não para tomar parte de suas loucuras, mas como seu anjo de guarda. Até que ele respeitava o irmão. Mas a sua má índole era mais forte.
Viciou-se facilmente, e aos vinte anos já levava vida desregrada, o dinheiro farto ajudando-o nos seus interesses menores. Dr. Bernardo fez tudo para que se tratasse, colocou-o nas melhores clínicas, mas ele parecia não querer ser tratado. Nunca aceitou que fosse um doente, e dizia a frase que todos os viciados repetem: “Paro quando quiser”. Nunca parou.
Um dia nós o encontramos, eu e Alberto, caído na sarjeta, depois de três dias desaparecido de casa. Estava em estado lastimável. Roupas sujas, barba crescida, mal conseguia falar. Nós o levamos para casa, e de lá direto para o hospital. Essa foi a primeira de uma série de internações.
Por isso, apesar da sua juventude, o seu corpo não aguentou tanta violência. Não viveu muito, depois daquele dia. Tinha vinte e cinco anos. E eu, que tantas alegrias tinha proporcionado a eles, agora participava da tristeza que se abateu sobre a família.
Mas... não foi só isso. Se a vida é feita de bons e maus momentos, os maus não podem ficar esquecidos.  
Um dia Dr. Bernardo saiu comigo, dirigindo-me. Não era costume dele. Alberto estava de folga. Ele e D. Sara haviam brigado, e uma briga séria, o que era raro. Tomou o rumo do campo, rodando devagar, pensando na vida. Falava muito, e alto, fazia declarações de amor a D. Sara, prometendo-se que nunca mais teriam uma discussão, que a vida era tão boa, etc, etc... Mas estava muito nervoso, o coração descompassado, as mãos frias apertando o volante. Eu fiquei preocupado, mas que podia fazer? Apenas obedecer ao seu comando. De repente, senti-me desviando para a direita, saindo da estrada, até que dei um encontrão num barranco e parei. O D. Bernardo tinha sofrido um infarto. Imaginem a minha angústia, sem nada poder fazer, naquela estrada deserta. Meu Deus, por que ele foi parar tão longe?
Não sei quanto tempo ficamos naquele ermo, até quando passou um outro carro. Só sei que o socorro foi rápido, e meu dono sobreviveu. Mas nunca mais foi o mesmo. Era triste vê-lo, passeando comigo, no banco de trás e não mais ao lado de Alberto, quando ia rindo e brincando. D. Sara, ao seu lado, procurava contornar a situação, tentando animá-lo. Mas ele não a ouvia. De olhos esgazeados, fitava o horizonte, sempre com uma lágrima escapando sem controle. Parecia entender, quando ela começou a se julgar culpada pelo que aconteceu, por causa da discussão que tiveram. Como eu queria poder repetir-lhe as palavras que ouvi naquele último passeio que fizemos!
Sofria tanto quanto ele, no meu silêncio.
Logo depois, já em 1955 – eu tinha 18 anos – creio que para espairecer um pouco, D.Sara e Pedro levaram Dr.Bernardo para passar uma temporada na Europa, numa viagem de navio. Mais tarde Arlete e o marido juntaram-se a eles. Eu fiquei sozinho, na garagem, e com o tempo cobri-me de poeira, porque ninguém ia por lá. Havia uma recomendação para que os outros empregados não tocassem em mim, pois tinham medo que alguma coisa viesse a acontecer comigo. Eles gostavam realmente de mim.
Quando voltaram, trataram-me como um membro da família... Um belo banho fez-me voltar ao meu esplendor.

E assim ia a vida...
Mais tarde, bem mais tarde, meus donos já bem velhinhos, Arlete e Pedro casados, com filhos, cada um com sua casa, seu carro novinho, veio o dilema: que fazer comigo?
Se o D.Bernardo estivesse de posse de suas faculdades, jamais iria deixar que fizessem o que fizeram. De repente acharam que eu estava muito velho e resolveram vender-me. Velho nada! Eu era antigo, isto sim. Mas, perfeito! Foi uma injustiça. Não precisavam vender-me, aquela mansão tinha lugar de sobra para me deixarem num canto, ainda que esquecido. Acho que estavam já acostumados com a minha velhice, e o apelo, na mídia, dos meus novos irmãos foi maior. Não perceberam que eu começava a ter outro valor: o da antiguidade...
Não gosto nem de pensar naquela época. Venderam-me, por qualquer dinheiro, para um infeliz que, por causa dos três bancos que tenho, usou-me como lotação! Que humilhação! E tanto fui explorado, que então fiquei realmente velho, feio, tossindo e rateando, a capota começando a rasgar-se... até que um dia fui abandonado como imprestável num monturo, quase como ferro velho. Quieto, num canto, nem mais andava. Meu coração travou, nem se movia mais. Meu corpo, corroído lentamente por esse câncer que é a ferrugem. Não chorei, porque Packards não choram, mas nunca me esqueci dos dias de glória na família Siqueira Bastos. Como nunca me esqueci, também, das tristezas que compartilhei com eles.
Mas... nada é para sempre.
Uma bela manhã, eu estava olhando para a rua – pois me puseram ao lado da casa, no quintal, ao re-lento, mas de frente para a calçada - quando um senhor que passava me viu. Parou, e ficou me examinando detidamente. Depois sorriu. Conseguiu ver a minha aristocracia, debaixo daquela horrível camada de pó. Logo adivinhei-lhe as intenções, e se pudesse teria sorrido também. Ato contínuo, bateu palmas, esperando que alguém viesse atendê-lo.
Para encurtar a história: hoje estou aqui nesse galpão, outra vez novinho em folha, os cromados reluzindo, a casimira do estofamento cheirando a nova, a capota branquinha... ao lado de duas dezenas de irmãos de quatro rodas, todos como saídos de Detroit na véspera...
Novinhos, mas, como disse, inúteis... Mas, que fazer? Antes isso do que a chuva no lombo, naquele depósito de sucata... Sentia-me inútil, mas feliz.
Uma vez levaram-nos para fazer parte de uma exposição. Uma beleza! Todos antigos como nós, cada qual mais lindo que o outro, eu todo imponente com aquele nariz empinado que me deram em Detroit.
Então, entre os visitantes, vejo um rosto conhecido. Era Pedro. Um senhor, agora, de cabeça branca... Como estava parecido com Dr. Bernardo!
Ah, se eu pudesse buzinar!
Mas ele me reconheceu, como não? Eu era um dos únicos que havia vindo para o Rio de Janeiro, senão o único! Mostrou-me para Júlia, para o Pedrinho, já um homem feito, com seus trinta anos. Examinaram-me por dentro, mexeram no volante, nas maçanetas das portas, uma farra! “É ele, tenho certeza!”... Até que alguém viesse pedir-lhes, delicadamente, para que não tocassem nas peças expostas.
Eu havia virado uma peça.
Pedro tentou comprar-me de volta, por qualquer preço. Mas não conseguiu. “Esse é único, meu senhor. Não tem preço...” – disse-lhe o homem. E ele respondeu: “Pois é... Mais do que o senhor, eu bem sei disso... Mas agora é tarde...”
Naquele dia senti meus dois faróis molharem-se. Seriam lágrimas?...

Um comentário:

  1. Adorei as ilustrações de todos! Esse texto, Packard, assim como os outros, tá muito bom!!! Parabéns!

    ResponderExcluir