segunda-feira, 20 de junho de 2011

DEPRESSÃO


 

Hoje é quatorze de dezembro. 2004. Daqui a dois dias, completo meus bem vividos setenta e dois anos. Se digo bem vividos, não será porque andei nadando em dinheiro, tampouco porque tive algum tipo de projeção social ou profissional. Não; na verdade, fui um ilustre desconhecido, felizmente.
 Vivi bem, muito bem (até - digamos - um a-no atrás), porque tenho mulher, filhos e netos adoráveis, minha vida era de paz e harmonia, exceto por períodos curtos e normais de chuvas e trovoadas, e de um jeito ou de outro, sempre tive meus momentos de felicidade.
Mas, de um ano para cá, não sei o que me fez mudar de rumo. Tenho vivido em completa apatia, não me interesso por nada, não tenho vontade nem de chorar nem de rir, não consigo conversar com ninguém, não, não, não... Minha vida tornou-se uma sucessão de nãos...
Lembro-me que tudo começou há um ano, no dia do meu aniversário. Eu estava só, e comecei a questionar-me sobre meus setenta e um anos... o que tinha feito, o que não tinha... e acabei questionando-me demais, pintando minha vida com tintas muito escuras, talvez sem razão, mas indo muito fundo, no poço, de onde até hoje não consegui sair...
E, curioso... Parece-me que para compensar essa total ausência de humor, começaram a acontecer fatos estranhíssimos comigo, e, embora eu esteja sentindo-me desse jeito, confesso que, apesar de insólitos, esses fatos eram muito agradáveis.
Nunca os comentei com ninguém. Mas a-gora resolvi pô-los no papel, porque já posso torná-los públicos. Tudo já se esclareceu.
A coisa acontecia assim: de vez em quando eu me via, súbito, retornar a uma data do meu passado. Retornar com o corpo, mas não com a mente. Uma data qualquer, se não importante, pelo menos de um dia em que alguma coisa ficou marcada em minha vida. Coisa boa. Quando sentia acontecer isso, examinava-me, ou num espelho, se o tivesse à mão, ou simplesmente tocava-me. Fisicamente, estava mudado. Retornava àquele dia, vivia aquelas horas como se estivesse naquele tempo. Mas a mente, esta era a de hoje. Nenhum dos protagonistas que dividiam comigo a cena - ou as cenas, do passado e de hoje - percebia algo diferente. 
Continuávamos conversando como se tudo estivesse acontecendo normalmente. Eu conseguia manipular os fatos, tudo o que acontecia dali para adiante, mas sem modificar o futuro, pois obviamente já o conhecia. Não tentava mudá-lo. Não que eu não quisesse. Não podia. Sabia das coisas que dariam certo, como daquelas que sairiam erradas, mas, as vezes que tentava mudá-las, voltava subitamente ao meu entediado presente. Percebia não ter esse controle. As pessoas com quem eu “contracenava” não percebiam nem minha entrada nem a saída de cena, pois se aquilo tudo já havia acontecido, sem nunca havermos comentado... Tanto não percebiam que eu, hoje, não me lembro de haver notado nada diferente nas ocasiões em que vivi os insólitos traslados. Não sei como ficava a coisa, depois que tudo retornava ao normal.
Exemplos? Tenho muitos. Um dia, dirigia o meu carro, quando toda a cena mudou - continuava dirigindo, porém não mais o Verona, mas o meu velho Chevrolet l936, e na via Dutra, a caminho do Hotel Vila Forte. Estávamos em 1962, e Paulina e as duas crianças viajavam comigo. Foi a primeira vez que aconteceu.
Olhei para ela, moça, para meus filhos, duas crianças, depois para mim, pelo retrovisor, e vi-me um jovem de 30 anos. Ora, eu tinha 71 anos e estava naquele carro com a minha mente de 71 anos, mas... num corpo jovem. Curioso - não tive necessidade de questionar-me sobre o que seria aquilo. Não que achasse a cena normal; sabia que não era. Simplesmente não senti necessidade.
Como tirei muitas fotos naquele passeio, poderia, se quisesse, saber até o dia exato em que se deu a cena. O mês, lembro-me bem - julho. Julho de 1962. Quarenta e dois anos atrás.
Não me alterei. Disse para Paulina: “Essas férias vão ser muito boas. Vamos ficar uma semana no hotel e vai dar tudo certo.” “Como você sabe?” “Não sei. Mas vai ser um ótimo passeio.” Para ela, eu estava prevendo o futuro, como uma brincadeira apenas. Somente aduziu: “Que bom”. Comecei então, a querer contar a ela o que aconteceria no hotel. Quando tentei pô-la a par do nosso futuro, no mesmo instante vi-me, outra vez, ao volante do Verona. E a coisa ficou por aí.
De outra vez, passei do Verona para o Opala em que viajamos para o sul. Agora estávamos, na viagem, apenas eu e Paulina. Já não me assustei com o insólito traslado. Novamente conferi minha estampa no retrovisor. Lá estava eu, nos meus 46 anos de idade. Mas... desta vez eu sabia que o carro ia quebrar, quando faltassem mais ou menos uns cem quilometros para chegarmos a Curitiba; que eu iria tomar providências erradas para consertá-lo e somente após essa tentativa frustrada, teríamos uma carona até nosso destino, de onde, então, voltaria para rebocá-lo, no dia seguinte.
Deixei correr a coisa, pois, apesar dos fatos, como eu sabia que tudo daria certo, não me foi penoso relembrar. Foi até divertido. É claro que o carro quebrou e ficamos tentando a carona. Paulina começou a ficar assustada, pois a tarde findava e já iria escurecer. Para acalmá-la, eu lhe disse: “Não se preocupe, que vem um Fusca aí que vai nos dar carona”. Mal acabei de falar, voltei ao volante do Verona...
Mas os insólitos episódios não se apresentavam em ordem cronológica. Depois destes dois que narrei, e mais outros que bem guardo na memória, vi-me, recentemente, transportado de um apartamento no hotel, em São Lourenço, onde estávamos hospedados, para a casa que nos serviu de abrigo, em Teresópolis, em nossa... noite de núpcias. Voltava a 1958. Mais uma vez, tudo o que iria acontecer eu já sabia nos menores detalhes. Mas desta vez não tentei predizer o futuro, pois sabia que, se o fizesse, retornaria ao presente. Tive o prazer de viver uma segunda lua de mel, especial...
Quando aconteciam essas coisas, eu não fazia a menor idéia como ficava a cena no presente, no caso, no apartamento do hotel em S. Lourenço, pois, momentaneamente, pelo menos, eu não estaria lá.
Porém, depois de usufruir novamente daqueles momentos inesquecíveis, insinuei contar à Paulina algo que sabia iria acontecer. Como sempre, foi o suficiente para que retornasse, em um átimo de segundo, aos meus quase 72 anos - pois isso aconteceu há poucos meses atrás - para São Lourenço.
Ficava dando tratos à bola sob o porquê desses maravilhosos e desconcertantes flashes. Não fazia força nenhuma para descobrir a sua origem ou a sua patologia, se é que a havia. Era como se eu tivesse a galinha dos ovos de ouro. Não deveria pesquisar muito, ou iria perdê-la. A sensação de tomar parte, pela segunda vez, em acontecimentos que eu já conhecia era incrivelmente agradável. E tais fatos ajudavam-me a suportar o meu estado depressivo, pois mostravam-me momentos felizes e alegres da minha vida.
Mas noutro dia a coisa foi diferente. Eu havia ido ao velório de um amigo. Na hora do sepultamento, quando todos se encaminhavam para o jazigo, acompanhando a urna fúnebre, parei em uma sepultura, pois pensei ver um nome conhecido gravado no mármore. Então, aconteceu novamente.
A cena mudou para um outro túmulo, inteiramente diferente daquele que eu estava olhando, e havia uma coroa sobre ele. Olhei para onde devia estar seguindo o acompanhamento do carreto fúnebre e não vi ninguém. Antes, era meio-dia de um sol causticante. Agora, estava em um entardecer e com o tempo carregado. Nuvens negras apontavam um temporal iminente. Aquela cena não era do meu passado, pois, se fosse, obviamente eu me lembraria dela. Pela primeira vez, mostravam-me algo que eu ainda não havia presenciado. Examinei-me. Eu não estava mais moço, como em todas as outras vezes. Minhas mãos enrugadas não mentiam. Ou eu estava no tempo presente, ou no meu futuro.
Olhei o túmulo, em frente ao qual eu parei. Não havia inscrição nenhuma, tampouco algum enfeite. Era apenas um bloco de alvenaria, caiado, encimado por uma laje de concreto, e sobre ela uma coroa, como já disse. Nela, uma faixa preta com letras douradas: “Maurício, saudades de como você era”. Nem quem havia remetido a coroa identificou-se.
Pensei, numa reação natural: “Deve ser outro Maurício...” Mas por que seria outro e não eu? O que, ou quem, estaria querendo mostrar-me o túmulo de outro Maurício, se aqueles episódios insólitos estavam acontecendo comigo? Estava acostumado a vivenciar o meu passado. Mas, o futuro...
Para que dia, e que ano, eu havia sido remetido? Tomei cuidado, então, de não pensar em nada que pudesse me devolver ao meu tempo, como sempre acontecia. Não sairia dali enquanto não soubesse quando teria acontecido aquela cena.
- Senhor... Por favor, já vamos fechar. É melhor que se apresse, vem muita água por aí.
Era um funcionário do cemitério, que me interpelava. Estava tão absorto em meus pensamentos, que cheguei a levar um pequeno susto.
- Ah, sim, obrigado. Já vou sair. Por favor... diga-me, que dia é hoje?
- Dezesseis de dezembro. - E, indicando a lápide, com o beiço - Coitado...
- Por que “coitado”?... Dezesseis de dezembro... de que ano?
- Dois mil e três. O senhor está na dúvida por que?
- Dois mil e três?? Não, nada... É que eu... não sei se é o Maurício que conheço.
Foi a melhor desculpa que consegui imaginar. O funcionário pareceu satisfeito com a resposta, mas eu não. Como, dois mil e três? Então não era do meu futuro, a cena? Eu tinha certeza de nunca tê-la vivenciado no passado, como fiz em todas as outras vezes que me acontecia “viajar” no tempo.
Ele completou, olhando desconsolado para a tumba:
- Ninguém veio para o velório.
- Ninguém?
- Nem no velório, nem no sepultamento. Chegou de manhã, e de tarde já estava aí, ó.
- E quem mandou esta coroa?
- Não sei. Talvez alguém que se importava com ele. - E, após uma pausa : - O senhor vem comigo?
- Vou já. Só mais um instante.
Eu sabia que se me afastasse dali a cena se diluiria. Dezesseis de dezembro... meu aniversário... Mas, do ano passado? Poxa, eu me lembraria dessa cena!
Olhei para trás. O homem já ia um pouco distante. Eu tinha que pôr aquilo em pratos limpos. Arriscando voltar ao meu presente, chamei-o.
- Senhor, por favor volte aqui!
O funcionário virou-se, sorriu e caminhou em minha direção.
- Eu sabia que o senhor ia me chamar...
- Por que?
- Porque seu nome é Maurício e o nome que está escrito na coroa é Maurício.
- E daí? Não somos os dois únicos Maurícios por aqui. Quem é você?  É funcionário do cemitério?
Ele mantinha um discreto sorriso nos lábios. Não me respondeu.
- Não há dois Maurícios.
- Claro, esse pobre coitado morreu e está enterrado.
- Está mesmo. Foi uma pena. Era o verdadeiro, e morreu... Morreu para a mulher, para os filhos, para os amigos, para o mundo... no dia do aniversário...
- O verdadeiro?
- É, e o que ficou já há um ano anda por aí, perambulando, sem rumo, uma sombra do outro...
- Quem é você? Como sabe destas coisas? Eu não morri!
Eu já estava meio assustado. Mas, mais uma vez ele não me respondeu.
- Sabe? Quem está enterrado aí pode até ressuscitar... É só querer...
Ele deixou a frase no ar e tornou a se afastar.
- Olhe que vem chuva aí...
Fui atrás dele. Precisava esclarecer de uma vez por todas aquele diálogo, embora já desconfiasse quem eram os dois Maurícios.
Mas... não dei dois passos, e, como das outras vezes, vi-me novamente acompanhando o meu amigo à sua última morada, debaixo de um causticante sol de meio-dia.
Só então percebi que aquela cena havia sido mostrada a mim, sim, porém com outras tintas, no meu aniversário, há exatamente um ano. E que durante um ano aqueles maravilhosos flashes tentavam acordar-me para a vida, a verdadeira vida que morreu comigo, há um ano atrás.
Era só ressuscitar.

                                                                          




Um comentário:

  1. Que história bacana, muito boa mesmo! Sei bem qual era o destino daquela viagem de Opala pra Bibibaba, ou melhor, Curitiba.

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