segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Vida e Morte


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28.9.2011

      Eu não tenho medo da morte. Não digo isso para fazer gênero. Não tenho mesmo.
          Nunca me incomodei por ficar velho. Acabei ficando, numa boa. Quando a gente fica velho (“a gente” não; eu. Muita gente pensa diferente de mim), começa a refletir um pouco mais seriamente sobre a hora de ir embora. É claro que muitos nem se dão ao trabalho de pensar, continuam vivendo como se ainda tivessem vinte anos de idade. Uns, vivendo com responsabilidade, outros sem nenhuma.
No grupo dos que não pensam muito no assunto, uns consideram a morte tragicamente, vivendo um drama íntimo de “como será”, tentando adivinhar o futuro. Sofrem. Outros, morrem de medo, por não saberem o que tem do outro lado. Sofrem. Outros, ainda, não têm nem medo, dizem que são materialistas, morreu, acabou. Dizem que não sofrem.
          Eu, não continuo vivendo como se tivesse vinte anos; afinal, tenho quase oitenta e sou consciente da minha idade. Penso na morte tanto quanto penso na vida. Não “vou vivendo”, simplesmente; sei, por exemplo, que depois de certa idade é irreal fazer planos de longo prazo, ou mesmo médio; não é lógico alimentar expectativas. Planos, só para amanhã ou depois. Refreio minhas vontades, sei que muitas coisas já não me pertencem mais, mas isso não me incomoda. É assim, e pronto.
          Não vivo pelos cantos em lamúrias, mas em reflexões. Penso, sim, que dentro das hipóteses normais, devo ter mais uns dez anos de vida – se não for antes, nunca se sabe. É pouco? É muito? Depende do ponto de vista.
          Se resolvesse levar a vida como se tivesse vinte anos, dez anos seriam pouco. Muito pouco. Onde eu estava há dez anos? Puxa, foi ontem... E aí começa: “Não posso fazer mais nada, é sentar e esperar...”, etc.
Mas, se sou consciente da minha idade, vou pensar: “Puxa, vivi bastante! Que bela idade, 80 anos! Não quero fazer mais nada, é sentar e curtir...”. Como é diferente, não posso de não quero...
            Já os workaholics – é assim que se escreve? – estes, estão começando projetos novos aos oitenta, “não sei ficar parado”, não sabem fazer mais nada, são insensíveis aos que os rodeiam. Às vezes esses projetos dão certo, pela sua ótica. Mas estes são do grupo que não pensa no assunto morte. Não estão certos nem errados – são diferentes de mim, apenas. 

   E me pego pensando como eu encarava a vida, aos vinte, aos trinta, aos quarenta, etc, etc. E vejo que a encarei numa sucessão normal de reflexões, felizmente em pleno acordo com todas as minhas idades.
Aos dez anos? Não me lembro, mas com certeza pensei: “Não vou pensar em trabalho tão cedo. Meu pai me sustenta”. Repeti esse pensamento ao vinte, e felizmente até aquela idade não precisei do trabalho para me sustentar. Naquela época era diferente de hoje, éramos paparicados pela família, o importante era nos formarmos em alguma coisa. E quando tinha trinta anos, saído da faculdade: “Vou dar duro, trabalhar noite e dia, mas aos quarenta quero parar de trabalhar por obrigação. Daí pra frente só por prazer”  ...pois sim.
          Aos quarenta, dando duro pra me sustentar, pensei: “Cheguei ao meio dessa existência. Que fiz até aqui? Apenas comecei a construir minha vida. Mas... ainda há muito tempo...” (Trabalhei por obrigação, embora feliz por ter trabalho, quase até os sessenta... Só não continuei porque foi o trabalho que acabou, e não a minha disposição...).
          Cinquenta anos: “Tudo bem, tenho minha renda, dá pra viver, o que eu quero mais? Tudo bem...” - pensei, sem tristeza, sem nenhuma mágoa, sem nenhum pensamento de que “poderia ter feito mais e não fiz”. Não, mesmo. Não poderia, não quis, sei lá. Não construi nenhum império, não fiz nenhum pé de meia, ficando com um vago pensamento de que um pé de meia (ainda que um lado só) teria sido bom. Será?  A vida não é trabalho e dinheiro. Construímos, eu e ela, uma família maravilhosa, foi muito mais do que isso.
          E aos sessenta parei de trabalhar oficialmente. Ainda tentei pegar uns biscates, por fora do oficialmente, mas não deu certo. Ou eu não me esforcei? Sei lá...
A verdade é que nunca fui angustiado por trabalho.

   Mas vamos parar de falar de trabalho. Essas minhas reflexões não são para falar de trabalho, embora seja dele que a gente viva. São para falar de vida e morte, de como encarar esta última, agora que está quase acabando a primeira. De como encarar o tempo vivido e o tempo que falta.
          “Eu não penso nisso, eu, hein? Vou vivendo, quando chegar a hora vou ver como é que é...” Estas nunca serão palavras minhas. Penso, sim, mas como já disse: numa boa, sem angústias. Gosto de fazer reflexões sobre o tema. Estão fazendo uma obra enorme, nas ruas, na cidade. Metrô mirabolante, etc. “Será que vou vê-la pronta?”. É o meu pensamento. Copa de dezesseis. Não dou a menor bola pra futebol, mas... “estarei aqui?”. São coisas que obviamente eu não pensava quando tinha meus 50 anos. E até me divirto, intimamente, com esses pensamentos. Não estou nesse barco sozinho, um dia todo mundo morre, mesmo... Até a rainha da Inglaterra...
          Noutro dia estava passando pelo aterro do Flamengo, de ônibus, e pensei: “Preciso vir aqui mais vezes, curtir mais essa maravilha. Tenho pouco tempo...” Quem me lê, há de pensar: “Esse cara deve sofrer muito, sempre de olho no tempo que falta...” Negativo. Mas não sofro mesmo! É tranquilo para mim, só penso que não posso deixar passar o tempo à toa.
          Vi na TV uma senhora japonesa que pensa igual a mim. Ela foi autorizada a voltar para casa, se desejasse, numa das cidades atingidas pelo vazamento radioativo. Mas alertaram-na que a médio prazo ainda havia o risco de contrair um câncer, embora a radiação já estivesse bem menor. Ela perguntou “qual é esse prazo?” “uns quinze anos”. Ela deu de ombros: “Estou com 74, daqui a quinze anos, terei 89. Está muito bom. Vou curtir a minha casa...”. Como quem diz: “Até lá, já estou no lucro.” É isso, é aproveitar o tempo que resta, encarar de frente, sem dramas, mas tampouco sem ser irresponsável.

    Eu não tenho medo da morte, repito. Mas não gostaria de ir embora tão cedo. Não falo isso pra fazer gênero. Não tenho mesmo, embora saiba que não vou pra nenhum paraíso. Já imagino como seja o paraíso, vivi nos anos 50. Vou apenas aguentar as consequências, vou colher o que plantei. Mas vou consciente, isso é uma grande coisa. Evidentemente não gostaria de sofrer, quando chegar a hora.
          Mas isso não é novidade, ninguém gostaria. Não gostaria também que fosse uma morte repentina, fulminante, e sim, depois de uns seis meses de molho, esvaindo-me aos poucos, mas dando pouco trabalho a quem se encarregar de cuidar de mim. Nesses seis meses, ouvir bastante música, manter minha consciência de que, embora esteja indo, que eu mereça ir embora sem ver ninguém perto de mim chorando pelos cantos. Mesmo porque ninguém é insubstituível, e pouco tempo depois, que sobrem de mim apenas boas lembranças, lembranças sem saudades do tipo “que falta ele me faz...”. Isso não seria amor, seria egoísmo.
    Mas o que adianta pensar “não gostaria que fosse assim, ou assado”? Vai ser do jeito que precisar ser...



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