domingo, 23 de outubro de 2011

A Volta


A  VOLTA
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Arminda foi entrando, como se fosse de casa. Se bem que já era considerada como tal por Dolores, que a tinha como sua irmã. Mais do que isso até, pois nem sempre irmãos e irmãs se dão bem quanto as duas.
Quase todos os dias, à tardinha, passava para ver a amiga. Eram sozinhas, cada uma no seu canto. Talvez por isso tenham se afinizado tanto.
- Posso entrar ?
Dolores estava sentada na poltrona, de braços cruzados e com a cabeça recostada no espaldar. No colo o tricô interrompido pelo cochilo. A televisão ligada fazia-lhe companhia.
- Já entrou mesmo... que me adiantaria dizer não? - brincou com a amiga.
- Tirando um cochilinho...
- É, estava mesmo. Já trabalhei muito hoje.
Arminda lembrou-se do infarto que Dolores havia sofrido, há muitos anos atrás.
- Não precisa se justificar, você tem direito. O que você não pode é se exceder, Dolores, você sabe disso. O que andou fazendo?
- As coisas da casa, mais nada. O que tem isso? Não disse o médico que eu poderia levar vida normal? E então?
- Você nunca mais sentiu nada, não é mesmo?
- Ainda bem. E já lá se vão quase dez anos.
- Tudo isso? Parece que foi ontem...
- Qual nada, dez anos e bem contados. A mim não me parece que foi ontem. Senti passar cada ano, cada mês, cada dia. Acho que só não tive outro infarto porque nunca mais tive um baque tão grande como aquele.
- Sua vida agora é calma...
- Mas com muitas saudades... Estas não me deixam nunca. Felizmente saudades doem no coração, mas não matam...
Dolores não se importava em remexer o baú, mas evitava fazê-lo, pois não acrescentaria nada à sua solidão. Embora ela mesma tivesse tocado no assunto, ele teria parado por ali, não fosse o comentário da amiga:
- Logo o Albano...
Dolores retomou o tricô e não disse nada, como se a atenção no trabalho a impedisse de falar. Para que avivar as lembranças, se elas não trariam Albano de volta? Tampouco seria comentando mais uma vez a sua história que a explicação para a atitude do companheiro viria à tona, e nem iria apagar da sua memória as secas palavras que ficaram no ar, incompreensíveis e inexplicáveis para quem havia usufruído da sua dedicação e do seu carinho sincero por mais de duas décadas:
- Vou correr mundo, preciso viver um pouco. Não volto nunca mais. Procure me entender, não me queira mal.
Jamais se esqueceria de como ele lhe deu as costas, sem um beijo, sem uma despedida. Saiu com a roupa do corpo como quem ia comprar o pão, fechou a porta da rua suavemente, como era de seu feitio, deixando-a em pé no meio da sala, estática.
Nem viu quando ela caiu no tapete, fulminada.
O que mais teria para ser dito? A cena, sempre viva em sua memória, passara a ser a única lembrança daquela união. Parecia repetir-se em cada crepúsculo dos últimos dez anos de sua vida. Mas já agora sem emoções, sem surpresas, sem um novo infarto. Fazia parte de sua rotina, estranha e triste rotina.
O silêncio prolongado incomodou Arminda. Sentia-se culpada pelo desconfortável hiato.
- É ruim para você, tocar no assunto...
Dolores levantou os olhos do tricô e sorriu.
- Não, Arminda... já não é ruim. Mas não me ajuda a esvaziar a cabeça dessas lembranças, não é?
A amiga sentiu-se melhor.
- Talvez se você mudasse a decoração desta sala... - correu os olhos pelo ambiente - Olhe só, são os mesmos móveis, as mesmas cortinas, o tapete... Se ao menos você mudasse os móveis de lugar... Está tudo ainda tão igual ! Isso não lhe força a reviver constantemente o passado?
- Talvez. Mas o que eu preciso mudar está aqui dentro. - tocou a fronte com o indicador - Isso eu não consigo, não adianta.
Arminda não se conteve :
- Mas por que diabos o Albano tinha que fugir daquele jeito? Eu não entendo como é possível uma pessoa que sempre demonstrou tanto amor, respeito, dedicação, da manhã para a tarde mudar tão radicalmente! Era um excelente ator, o Albano ! Desculpe-me, Dolores, cada um de nós sabe o que faz da vida. Mas eu não estaria até hoje remoendo lembranças desse jeito. Ele não merece isso!
Era a primeira vez que Arminda desabafava daquela maneira. Sempre respeitara os sentimentos da amiga pelo companheiro.
Dolores não se importou.
- Por que você o julga? Ele deve ter tido as suas razões.
- Está bem, Dolores. Ele teve as suas razões, não importa. Mas você fez questão de morrer para o mundo, passando os dias em frente a essa televisão !
- A televisão distrai... Mas eu não passo os dias aqui sentada, você sabe disso. Tenho os meus afazeres, só venho para cá à tardinha.
- Justamente na hora em que ele se foi, para nunca mais voltar. Você não quer que as lembranças a deixem. Continue assim. Cedo, cedo, vai conseguir que ele volte.
Arminda maltratava a amiga com sua ironia. Arrependeu-se, mas já era tarde. Mudou o assunto.
- Vou até a cozinha passar um café para nós, tá? - disse, passando a mão carinhosamente pelos cabelos de Dolores. Não ia adiantar mesmo. Pelo menos havia desabafado. Não se conformava em vê-la presa a lembranças tão amargas. Como que para botar uma pedra sobre o assunto apanhou o controle remoto da tevê e correu os canais, à procura de algo interessante que distraísse a amiga.
- Boa idéia. Faz mais fraquinho porque quero tomar puro. - Dolores levantou os olhos acompanhando a busca de Arminda - Deixe nessa estação mesmo. Quero ver o que vai passar depois dos anúncios.
- Estação, Dolores?... Anúncios?... Você está ficando até desatualizada, sabe? Agora é canal, emissora, comerciais...
Dolores riu.
- É, estou velha mesmo. Ainda sou do tempo das estações de rádio... Vá fazer logo esse café e deixe aí mesmo nesse... canal, por favor.
Arminda foi para a cozinha. Dolores tomou das agulhas e lentamente voltou a tricotar. Acabaram-se os “anúncios”, entrou um filme. Já ia pelo meio, mas isso não a incomodou. A telinha era apenas uma companheira.

 De olhos baixos, com atenção nas agulhas, de vez em quando levantava-os, a ver como ia o filme. Em certo momento, uma cena lhe chamou a atenção. A câmera, numa tomada do alto, mostrava uma rua tranqüila de subúrbio, com casas baixas em ambos os lados, todas com seus jardins bem cuidados e muretas baixas isolando-as da calçada. Poucas pessoas se movimentavam na cena, andando de um para outro lado.
Era um cenário comum, de um filme comum. Mas Dolores percebeu que havia algo familiar naquela cena. Aos poucos a câmera foi baixando até o nível da rua, num recurso de filmagem para humanizar mais a tomada. Ela via agora mais de perto, em seus detalhes, as casas, as árvores copadas, as grades de ferro sobre os muros. Achou a rua muito parecida com a sua. Mas o filme era estrangeiro, tinha até legendas. Como poderiam estar ali a cerca de madeira, os jardins e a pequena varanda?
O filme mostrava agora uma casa, em particular.
Era muita coincidência. Era a sua rua, a sua casa, a varandinha florida.
- Arminda, vem cá um instante...
- Já vou, a água está começando a ferver...
A câmera passeava tranquilamente pela sua casa, pelo seu quintal, até girar lentamente, fixando-se em um homem que vinha caminhando ao longe, na calçada.
- Arminda...
Aos poucos o homem se aproximava, em passadas lentas, como que examinando por onde andava. Trajava uma roupa de vaqueiro e um chapéu de abas largas que lhe escondia a fisionomia. Uma bolsa de couro com franjas lhe pendia a tiracolo.
- O que é, Dolores? Tem que ser agora?
- É o filme... Estranho, esse filme...
Arminda chegou na porta da cozinha, de onde via o televisor um tanto de lado.
- Estranho, por que? É um filme comum, acho até que eu já vi. Espere que já vou levar o café.
Dolores apertava, nervosa, as agulhas nas mãos. O homem estava cada vez mais perto da casa. Agora era focalizado pelas costas, a casa ao longe.
- Esse andar... eu conheço esse andar... Não estou entendendo...
O homem parou em frente ao portão, hesitante. Em frente ao seu portão. De cabeça baixa, apoiou ambas as mãos na cerca de madeira.
- A minha casa... Como eles filmaram esta cena?... Arminda...
Mas Arminda não ouviu. A voz de Dolores não era mais do que um sussurro, querendo chamar a amiga, mas ao mesmo tempo com medo de tê-la como testemunha. Seria uma alucinação, com certeza.
Neste instante, na parte inferior da telinha apareceu o nome do filme : “A Volta - Parte Final”.
Dolores leu, outra vez sem entender. Estava atônita. O homem agora abria o ferrolho do pequeno portão de madeira e entrava no jardim, encaminhando-se para a porta da casa. Ela acompanhava cada passo seu, procurando entrever a fisionomia do viajante, que as tomadas de cena escondiam propositadamente, em “suspense” cinematográfico estudado. Assustada, sem saber ao certo com que, se com o filme ou com ela própria, sentia nas têmporas as batidas do coração.
A cena mostrava, em “close”, a mão do personagem, apenas a mão, tomando toda a tela e dirigindo lentamente o indicador para a campainha da porta.
Para a sua campainha, para a sua porta.
Então, no mesmo momento em que aquela mão que lhe parecia tão conhecida apertava o pequeno botão, a campainha soou.
- Deixe que eu atendo! - Arminda gritou da cozinha. Mas Dolores deu um salto da poltrona e correu para a porta, escancarando-a de uma só vez.
Era o seu querido Albano. Olhando-a, com um sorriso nos lábios, dez anos mais velho, como no filme - de roupas de vaqueiro, chapéu de abas largas e uma bolsa de couro pendente do ombro - como no filme...
- Albano ! Você voltou !...
Dolores abriu os braços, aguardando que seu amado a enlaçasse. Não lhe importava por onde ele havia andado, o que teria feito em todos aqueles anos. Ele estava ali, na sua frente.
Mas faltaram-lhe as forças. Dobraram-se os joelhos e ela desfaleceu. O visitante, num gesto rápido não a deixou cair. Ajoelhou-se, tomando-a nos braços. Pousou sua cabeça sobre a perna, delicadamente, no momento em que Arminda assomava à porta, em pânico.
De olhos fechados, inerte, Dolores sorria.
- Dolores! Meu Deus, o que houve, Dolores? O que houve, meu senhor?
O homem, assustado, ainda não havia se refeito da surpresa.
- Eu não sei, minha senhora... Ela abriu os braços, chamou-me de... Albano, eu creio... e caiu... Eu não me chamo Albano, eu só vim aqui para...
Dolores já não estava mais ali. Partira, e partira feliz. Albano havia voltado para ela. Para onde ela tivesse ido já não mais carregaria as tristes lembranças que durante tanto tempo a acompanharam.
Lá dentro, na sala, a televisão mostrava a última cena do filme, por trás do “The End” estampado na tela: o vaqueiro, ajoelhado, abraçava a sua amada, caída em seus braços.
Também ele voltara tarde demais...









       




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