domingo, 31 de julho de 2011

CINE PATHÉ


CINE  PATHÉ



Não que a reunião estivesse desagradável; não estava. Mas aquela alegria, embora sadia, não me contagiava, pois eu estava sozinho de amizades e intimidades. Cumpria apenas um dever social com a minha presença; se não me era penoso estar ali, também nada me acrescentava de agradável, pois meu temperamento introvertido não me permitia expansões sociais.
Todos os aposentos da casa estavam franqueados aos convidados, que se espalhavam por eles em pequenos grupos. Eu os passava em revista, um por um, à procura de um recanto menos festivo que acolhesse a minha momentânea solidão, quando reconheci, em uma pequena sala, entre quatro ou cinco pessoas que conversavam moderadamente, um velho conhecido com quem tinha bastante afinidade. Ele também me viu e fez sinal para que eu me aproximasse, convidando-me a participar da conversa, nestes termos:
- Eis aqui quem tem uma boa história para nós.
Surpreso, retruquei:
- Como assim? Que história eu poderia ter que interessasse a vocês? - perguntei, sentindo a minha timidez ameaçada, ao mesmo tempo em que me incorporava ao grupo.
- A do Cinema Pathé. - voltou a falar o amigo, relembrando antiga confidência que eu lhe havia feito - Nosso assunto é justamente esse, os casos que não se explicam...
Pronto: ele me havia apanhado de surpresa e minha escusa não seria um gesto delicado. Nunca havia comentado com mais ninguém além dele sobre o caso, pois seria levado em conta de um relato de ficção, apenas. E não me agradava a idéia de narrá-lo assim, de supetão, no meio de uma festa, a "velhos amigos" aos quais fora apresentado naquele instante, porque a narrativa pediria o uso constante da primeira pessoa, o que não me agradava muito. Além do mais, não havia provas - seria acreditar em mim ou não. Cheguei a ponderar tudo isso, mas os meus novos companheiros de conversa não abriram mão, atiçados pela curiosidade provocada pelo outro.
Formavam um grupo heterogêneo, composto de auto-apresentados durante a festa, agora unidos pela expectativa em torno da minha narrativa. Movido pelo descompromisso que me conferiria a sua dissolução no fim da festa, resolvi narrar o caso que havia confiado ao meu colega, que, médico como eu, interessava-se também por esses assuntos, e cuja irreverência agora me forçava a fazê-lo.
E assim, tomei a palavra.
- Eu havia tido um dia estafante no consultório, e resolvi entrar em um cinema antes de ir para casa. O filme era ameno e a penumbra facilitaria o meu relaxa-mento.
Entrei no salão já com a sessão iniciada, mostrando os jornais e trailers costumeiros. Recostei a cabeça para acostumar-me à escuridão, e desviei os olhos da tela, pois não me interessavam muito aqueles prólogos do programa.
Examinava os caprichosos relevos do teto, enquanto pensava no obsoletismo em que caíram os jornais da tela, provocado pelos atuais meios de comunicação, que nos põem a par das notícias no mesmo instante em que elas acontecem. Lembrei-me então da época da segunda guerra mundial, quando o cinema era o único meio de transmissão de imagens, as quais tinham o importante papel de confirmar as notícias ouvidas dias antes pelo rádio...
Absorto por estes pensamentos, nem percebi que o filme havia começado. Endireitei-me na poltrona e resolvi prestar atenção na tela, embora estivesse precisando era de descanso.
Mas a cena, em preto e branco - o que já estranhei - se passava na Cinelândia, mais exatamente em frente ao Cine Pathé. Não entendi. Era um filme estrangeiro, o que eu iria ver. Haveria alguma cena que se passava no Rio? Eu achava que não, mas ali estava a Cinelândia, sem dúvida. A ambientação do filme eram os anos 20, pois os trajes das pessoas, os automóveis, o próprio local pareciam ser daquela época. A ausência das cores tornava a fita ainda mais real. Nem a época, nem o Rio de Janeiro eram cenários para o filme que estava anunciado nos cartazes. Mesmo assim, eu aguardava o desenrolar daquele inusitado início, quando, já agora acostumado à escuridão, baixei casualmente os olhos para a platéia.
Para surpresa minha, não vi ninguém. Olhei para a frente, para os lados, para trás. Eu estava sozinho.
Pensei: “Impossível. É um filme premiado. Mesmo que não fosse, não me lembro de ter ouvido falar que alguém tenha assistido a uma sessão de cinema sozinho!”
Na tela, a Cinelândia e o Cine Pathé, “de saudosa lembrança”, como diriam os mais chegados à nostalgia.
Levantei-me e resolvi averiguar por que eu seria o único espectador, e que filme era aquele, afinal. Mas lá fora tudo estava normal. Cruzei com outras pessoas, que iam entrando na sala de projeção. Olhei disfarçadamente para o recipiente onde o porteiro jogava os bilhetes recolhidos. Estava bastante cheio. Onde estava aquela gente? Tive vontade de perguntar alguma coisa a alguém, procurar o gerente, mas seria ridículo. Perguntar o quê, afinal?...
Voltei para a minha poltrona, já me imaginando vítima de algum mal passageiro, devido ao stress pelo dia pesado que tive, mas sem me convencer muito do meu diagnóstico, e maldizendo-me por certamente ter perdido o lugar.
Porém, quando novamente mergulhei na penumbra nada havia se alterado. Eu estava novamente sozinho na sala de projeção, era o único que via aquelas cenas da Cinelândia, com os carros passando em frente ao cinema - como antigamente - e as pessoas andando pela calçada. Por que estaria acontecendo aquilo? Eu vira outras pessoas entrando no cinema. Onde estavam elas?
Tinha meus olhos pregados na tela. Maquinalmente atravessei o corredor, entrei em qualquer fila e sentei-me. Tinha receio de interromper aquela “alucinação”, que haveria de ter um fim. Percebi também que o silêncio era absoluto. Tanto no salão como na tela, a ausência de sons chegava a incomodar. Nem a máquina de projeção emitia qualquer som. Tampouco os ruídos da rua eram ouvidos.
Na tela, a cena por fim começada a mudar. Algo como se o cineasta usasse uma lente “zoom”. A imagem, fixada na fachada do cinema, começou a aproximar-se até a câmera focalizar apenas a porta de saída, que enchia agora toda a tela. Voltou a cena a ficar parada.
De repente alguém aparece saindo do cinema. Um rapaz bem trajado, no rigor da moda... da época. Deixou a penumbra e mostrou-se à claridade noturna da calçada. Via agora nitidamente a sua fisionomia.
Era eu.
Sem sombra de dúvida, identifiquei-me com clareza. Não tanto pelos traços fisionômicos, bastante escondidos debaixo de um basto bigode, sob um chapéu coco e dentro de um impecável terno preto, colarinho duro e gravata bem aprumada. Mas não havia dúvida, era eu quem estava ali..
O homem parou na porta do cinema e ficou por algum tempo observando o movimento da rua. Depois, com gestos medidos, acendeu um enorme charuto e chegou ao meio-fio, aguardando que o guarda interrompesse o fluxo de veículos para atravessar a rua em direção ao jardim.
Eu suava em abundância. Olhei de soslaio para a platéia, com medo do que iria constatar. Continuava sozinho. Voltei ao “meu” filme no momento em que o guarda fechava o sinal para que o rapaz atravessasse.
Porém, mal havia ele alcançado a metade da travessia, surgiu repentinamente um automóvel, em velocidade que me pareceu bastante acelerada para a época, e desobedecendo o sinal fechado avançou sobre o rapaz, atropelando-o com violência e lançando-o a certa distância. O acidente foi muito real. Positivamente, não era um filme. Lembro-me que vi seus sapatos serem arrancados dos pés, com o impacto, e que batia com a cabeça no chão, com a queda.
A “minha” morte havia sido instantânea. Formou-se o tumulto, e em segundos o corpo estava cercado de curiosos. O automóvel parou adiante e seu imprudente motorista juntou-se à multidão. Ainda me lembro bem da sua fisionomia, um tanto fria. Olhou o corpo estendido no asfalto e senti que disse, entre dentes: “Dane-se. O que foi feito, está feito”. E, na confusão reinante, partiu em disparada...
- Mas tudo isso você viu com toda essa riqueza de detalhes?
Era um dos meus ouvintes que interrompia a minha narrativa. A história devia estar prendendo mesmo a atenção de todos, pois nem os ruídos da festa que se desenrolava à nossa volta atrapalhavam o interessado acompanhamento.
- Sim, era tudo tão nítido que jamais esquecerei aquela cena.
- E depois? - pediu-me uma moça, sentada no braço da poltrona ao meu lado - Continue...
- Bem, após aquela cena fiquei petrificado. Na fachada, ressaltava o anúncio luminoso: “Cine Pathé”. Embaixo dele, continuava o tumulto. Novamente pareceu-me estar sendo usada a lente “zoom”. A câmera agora se elevava, afastando-se do local e mostrando uma panorâmica de toda a área, desde o luminoso da fachada até a Praça Paris, onde pude distinguir ainda o carro assassino, que demandava a Praia do Flamengo, em célere disparada. Enquanto via aquelas cenas, senti que era eu próprio e não a câmera que estava subindo, subindo, ampliando espantosamente o meu campo de visão, embora as trevas da noite e a ausência de cores no “filme” nivelassem toda a paisagem em tons de cinza.
Lembro-me que foi só nesta hora que, assustado, na platéia, falei, e falei alto: “Mas que será isso?!”
Foi então que subitamente ouvi alguém perguntar, do meu lado:
- O senhor está se sentindo bem?
Eram os primeiros sons que ouvia, cortando de vez aquele pesadelo que começava a me atormentar. Olhei para o lado. Era uma moça que se preocupava comigo, e com justa razão, porque eu estava desfigurado, suando por todos os poros e desencostado da poltrona, quase em pé. Vi também que o salão estava bastante cheio. Claro que aquelas pessoas tinham estado ali todo o tempo.



- Não,- respondi a ela - não estou nada bem. Não sei o que há comigo.
Ela convidou-me então a sair, disposta a me assistir. Com palavras de ânimo, disse que um pouco de ar puro me faria bem, talvez fosse um início de congestão. Eu sabia que não poderia ser, mas obedeci de bom grado. Não me aguentaria sozinho, de maneira nenhuma. Na sala de espera, sentamo-nos, para que eu me refizesse.. Eu respirava fundo, esforçando-me para que ninguém percebesse o estado lastimável em que me encontrava, mas pouco tempo depois já dava mostras de recuperação. Porém todas as imagens do “meu” filme ainda estavam muito nítidas e cheguei a ter vontade de narrar à minha benfeitora tudo o que acontecera, mas resolvi aguardar mais um pouco, a ver como iria acabar aquela novela.
Ainda fiquei refazendo-me algum tempo, durante o qual eu e minha acompanhante não trocamos uma só palavra. Eu, por total impossibilidade, ela por respeito ao meu estado.
Veio-me uma vaga idéia de que eu deveria evitar as imediações do Cine Pathé, que, aliás, nem mais existia, pois, em raciocínio imediatista, eu seria fatalmente atropelado mais uma vez, se desobedecesse ao “aviso”.
De repente, um estridente ruído de freios seguido de um baque surdo veio da rua. Um homem fora atropelado ali mesmo, em frente ao cinema. Voltei a cabeça ainda a ponto de vê-lo sendo arremessado à distância. Eu não estava no inexistente Cine Pathé, lógico. Era outro o cinema, mas a minha primeira reação foi fazer a ligação entre aquele acidente e o que havia acontecido comigo.
Logo depois caí na realidade. Não, não havia ligação nenhuma. Era meu dever de médico - isto sim - prestar socorro àquele homem, e não preocupar-me com as minhas “alucinações”. Ganhei a rua de um salto, e aos gritos de “sou médico!” cheguei até o local do acidente. O homem jazia de bruços, havia sangue - não muito, mas o bastante para tingir parte de sua alva cabeleira. Era já bastante idoso, o pobre coitado. Queriam movê-lo, mas não consenti. Examinei-o como pude, enquanto alguém chamava uma ambulância. Não havia lesão grave aparente, apesar da violência do choque.
Logo chegou o socorro, e ele foi removido com a técnica necessária. Declinei minha condição de médico, para acompanhá-lo até o hospital. Já na viatura lembrei-me que havia me esquecido inteiramente da minha benfeitora do cinema, a qual, aliás, jamais tornei a encontrar.
No Pronto Socorro aguardei que o ancião fosse atendido. Após alguma espera, o médico que o examinou chegou-me com notícias de que ele estava bem, lúcido, e insistindo em agradecer-me pessoalmente.
Quando entrei no quarto vi seu rosto pela primeira vez. Quase faltaram-me as forças. Ali estava, envelhecido, alquebrado pelo tempo mas sem sombra de dúvida facilmente reconhecível, o atropelador que havia tirado “minha” vida naquele inusitado espetáculo dos idos de 1920. Era ele o rapaz que fugira sem ser notado, de quem eu ainda parecia ouvir aquelas terríveis palavras:
“- Dane-se...”
Também ele pareceu reconhecer-me, pelo espanto que não conseguiu disfarçar quando me viu. Mas a sua fisionomia foi se suavizando e leve sorriso lhe veio aos lábios. E seu olhar já era calmo e tranquilo, quando me disse:
- Você está aqui...Você voltou para me perdoar, por certo! Durante toda a minha vida mal pude suportar o peso que carreguei na consciência... Mas agora estou aliviado... Obrigado... muito obrigado!
Rendeu-se, então, ao efeito dos anestésicos, fechando os olhos com um sorriso nos lábios.

Eu não sei até hoje se meus atentos ouvintes acreditaram ou não na minha história. Só sei que me ouviram, silenciosos e atenciosos, alheios à algazarra que regurgitava à nossa volta.
Exatamente como fiquei, alheio a tudo, enquanto me era exibido, o intrigante episódio no Cine Pathé, há alguns anos atrás...
Não importa. Narrei exatamente o que me aconteceu. É pena que nunca mais tenha conseguido encontrar o anjo bom que me amparou, no cinema. Ela poderia me ajudar novamente. Talvez acreditassem mais facilmente na minha história...



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