segunda-feira, 25 de julho de 2011

FRIDA




Eu estava viajando do Rio para Curitiba. Sozinho. Viagem tranquila. Estrada vazia, céu azul, boa temperatura. Clima ideal e condições perfeitas, para quem gosta de dirigir. Havia dormido em S. Paulo, estava, portanto, descansado para continuar a viagem.
Ia pensando na minha vida. Era sem maiores preocupações além das costumeiras, que todos nós temos. O bom emprego e um salário bastante razoável proporcionavam-me tranquilidade e segurança. Não tinha maiores ambições, dava conta do meu recado.
Uma vez por ano, férias. Era a minha rotina.
Pelo menos desta vez eu não sairia sozinho; teria companhia, pois havia sido convidado para passar uns dias com um casal amigo. Nós nos revezávamos. Ou eles vinham ao Rio, ou eu os visitava em Curitiba. A nossa amizade era sólida, desde que nos conhecemos em uma excursão turística, há alguns anos. Eles eram então apenas namorados, e no fim da viagem eu já estava convidado para ser padrinho do casamento, tamanha a afinidade que nos uniu. Ainda não tinham filhos, não por não quererem, mas por ainda não terem sido brindados com a gravidez.
- Quando eu engravidar, Felipe engravida junto, de tanta vontade... - Fernanda brincava. 
Mas por enquanto, na viagem, eu estava só. Aliás, eu não estava, eu era só, e isso fazia toda a diferença. De que adiantava o dia tão bonito, a viagem tranquila, o clima perfeito?... Eu trocaria tudo por uma companhia, por alguém que dividisse comigo alegrias e tristezas. Na viagem, no dia a dia, enfim, sempre... Por isso ia pensando na vida. Atento à estrada, mas distraído nos pensamentos.
Então comecei a ter uma curiosa sensação, a de não estar mais sozinho, de haver mais alguém no carro. “O que consegue criar uma mente dispersa...” - pensei, e comecei a alimentar a ilusão. “Quem eu preferiria estivesse aqui comigo?... Um a loura? Uma morena? Qual das duas?... Ou as duas?...” Então, criei as duas na minha cabeça. Gordinha, magrinha, bonita ou não tanto, como seria a minha acompanhante?
Mas, para minha surpresa, o que me veio na mente foi a imagem de uma... menininha. Foi tão inesperada a sugestão, que exclamei, em voz alta :
- Uma menina?
Ato contínuo, num impulso, olhei pelo retrovisor para o banco traseiro. Lógico, não havia ninguém. Ri de mim mesmo, pela ingênua conferida. Se eu apenas brincava, entre louras e morenas, por que tão de repente vinha-me à idéia a lembrança de uma menina? “Coisa curiosa... Nem estava pensando em nenhuma criança...” - pensei.
Viagem afora, a sensação continuou, cada vez  mais forte. Ela estava sentada bem no meio do banco traseiro, teria talvez uns seis anos, lourinha de cabelos cacheados como um anjo barroco. Usava um vestido branco com pequeninas flores azuis. E ria, um riso moleque de quem estava se divertindo com a situação. Nítida, na minha mente.
Relutei em dar outra conferida pelo retrovisor. Dirigia de olhos pregados na estrada, com receio de olhar para trás, como quem evita ser apanhado fazendo uma bobagem. Mas ela ria da minha indecisão, e parecia-me até ouvir o seu risinho infantil. Aquilo foi mexendo comigo. Parei, então, no acostamento, mas continuei olhando para a frente, já com a improvável certeza de ser real a minha acompanhante.
Disfarcei, como se estivesse sendo observado e olhei para trás, pelo retrovisor, fingindo para mim mesmo que queria ver algo mais longe, lá fora, na estrada. O banco continuava vazio. Tive coragem, então, de olhar diretamente para onde ela estaria sentada. Ninguém, claro.
Ainda fiquei parado um bom tempo, com as duas mãos no volante, pensando não sei em que. Depois, sem pressa, dei a partida no motor, engrenei a primeira e saí, devagar. Mas logo adiante entrei num posto de abastecimento, para - sei lá - lavar o rosto, tomar um café, talvez deixar por ali a menina e novamente enfrentar a estrada.
Foi o que fiz. Por algum tempo ainda viajei... sozinho. Mas daí a pouco lá estava ela novamente, no mesmo lugar. Não me assustei mais, tampouco olhei o retrovisor. Resolvi conversar com ela.
- Oi...
E ela, sorrindo :
- Oi...
- Como é o seu nome?
- Frida. E o seu?
- O meu? Maurício. Está gostando do passeio?
- Eu não estou passeando...
- Não? Então por que entrou no meu carro? Eu estou passeando...
- Eu queria uma caroninha... Maurício... E lhe conhecer, também...
Gostei da intimidade.
- Queria me conhecer? Mas, por que?
- Quantas perguntas... Não é sempre a criança, que faz um monte de perguntas?
- É, mas também não é sempre que as crianças de repente vão entrando assim, no carro da gente...
- Se você quiser, eu vou embora...
- Não! Por favor... Gostei muito de você... Só que você apareceu de um jeito que não é muito comum, e eu não sei se está certo eu levá-la para longe de seus pais.
- Eu ainda não tenho pais...
- Você ainda não tem pais? Como é isso?
- Não sei... Ainda não achei eles. Acho que ninguém me quer.
- Não, claro que não é isso... Quem não iria querer uma menina tão linda? Eu mesmo gostaria muito que você fosse minha filha.
- Você?...
- Claro, porque não?
- Ia ser muito engraçado...
- Que é que tem? Eu seria um pai muito bom, garanto. Por que ia ser engraçado?
Ela deu uma sonora gargalhada.
- Só se você me adotasse... Mas aí eu não ia ter mãe.
Não entendi. Parei de falar. Afinal, eu estava falando sozinho. As respostas de Frida vinham diretas na minha mente, eu nada ouvia. A sensação de sua presença continuava tão forte que eu não me dava conta de que ela... não existia. Eu me perguntava, e me respondia? Seria isso? Por que estaria acontecendo tão insólito diálogo? Afinal, até fazia sentido a “nossa” conversa, parecia caminhar para um fim definido.
Então, mais uma vez senti suas palavras em minha mente, respondendo minha muda pergunta:
- Mas eu existo... - ela pareceu responder-me, magoada com os meus pensamentos.
- Frida... Eu sei que você existe... - tentei consertar - mas eu não a vejo...
- Quantas coisas que a gente não vê, mas sabe que existe... Você vê o amor? - ela já não parecia mais tão criança - No entanto, as pessoas quando se amam acabam vendo o amor, umas nas outras...
- É, você tem razão. Mas eu gostaria muito de vê-la, pois, se estamos conversando...
- Você já sabe como eu sou...
- Eu sei. Logo que você entrou no meu carro fiquei sabendo como você era. Uma linda menina, lourinha, de olhos muito azuis e muito sorridente... Mas eu queria ver você.
- Então por que não tenta? Feche os olhos, fique com eles fechadinhos bastante tempo e pensando em mim. Quando não tiver mais nada na sua cabeça, só eu, tente me ver. Quem sabe? Mas, ó: não feche os olhos agora, antes pare o carro...
Frida ainda brincava. Convenceu-me de que era real. Fiz o que mandou. Quando abri os olhos, lá estava ela, sentadinha no banco de trás, rindo para mim.
- Viu? É só querer, que a gente consegue tudo...
Ela era linda. Estendi a mão, acariciei seus cabelos e segurei sua mãozinha.
- Venha, sente-se aqui ao meu lado. Crianças têm que ir no banco de trás, mas só eu a estou vendo... então não faz mal...
- Pronto, vamos embora. Estou doida pra chegar em Curitiba. Acho que desta vez vou acertar.
- Vai acertar o quê?
- Será que você ainda não entendeu nada? Você não está indo para a casa de Felipe e Fernanda?
- Estou.
- E então?
Novamente ela estava com aquele sorriso maroto.
- Não me diga que você quis essa carona para ir conhecer seus pais...
- Se eles me quiserem... Eu já sei como eles são. Eles é que ainda não sabem que eu existo. Eu queria era viajar com você. Assim você não ia sozinho.
- Meu Deus, Frida! Claro que vão querer você! E eu é que serei o transmissor da novidade?
- Não, tio! Você vai ficar caladinho. Eu é que tenho que fazer com que eles me escutem, direitinho como fiz com você. Eles vão sonhar comigo, vão conversar comigo... Se eles me quiserem, tenho a certeza de que vão acabar até me chamando de Frida. Você gosta do meu nome?
- E você ainda duvida que eles lhe queiram? Eles pensam num filhinho dia e noite!
- Eles pensam em ter um filho qualquer... mas têm que pensar em mim, sabe como é? - e repetiu : Você gosta do meu nome?
- É muito bonito. Foi você quem escolheu?
- Foi...
Calamo-nos, - se é que posso usar esse termo - ambos estávamos um tanto ansiosos, com razão. Acho até que Frida, mais do que eu, pela expectativa de ser ou não aceita. Aliás, sem nenhum fundamento, se eu bem conhecia Felipe e Fernanda.
Fizemos longa pausa. Depois de, com certeza, ler meus pensamentos, ela se manifestou:
- Um dia, alguma outra criança vai ter uma outra conversa com você, parecida com essa que eu tive. É só arranjar uma pessoa para “dividir alegrias e tristezas”, como você mesmo imaginou.
- Cheguei a pensar em você...
- Não... Ia ser engraçado... - ela tornou a repetir, rindo -  Só se eles não me quiserem. Aí você me adota...
- Mas por que ia ser engraçado, se você fosse minha filha? E por que eu a adotaria, em vez de tê-la, com alguém com quem eu me casasse?
- Já pensou? Um preto com filha branca?...
Para ela, tudo era engraçado...
 Ao entrar em Curitiba, avisei a Felipe que já estava por perto de sua casa. Quando cheguei, o casal já estava no portão, abraçado, aguardando-me. Pareciam radiantes, muito mais do que poderia lhes proporcionar a minha chegada.
- Maurício, que alegria revê-lo! Fernanda estava ansiosa pela sua chegada, ela tem muito boas notícias! Fez boa viagem? O dia esteve muito bom para viajar, mas você deve estar cansado. Vamos entrando...
- Nem um pouco. Fiz ótima viagem! Muito melhor do que vocês possam imaginar. Vim quase todo o tempo conversando com uma “carona” muito agradável.
Olhei disfarçadamente em volta. É claro que ela devia estar por ali...
- Mas, Fernanda, que boas notícias são estas?
- Você nem imagina, Maurício! Depois de tanto tempo, “estamos” grávidos! Soubemos hoje, que coincidência, no dia da sua chegada! Tenho certeza que vai ser uma menina. Já escolhemos até o seu nome...
Sorri:
- Frida?...

Nenhum comentário:

Postar um comentário