sexta-feira, 15 de julho de 2011

A MINHA PARTIDA


Lembro-me bem de como tudo aconteceu. Na verdade, nunca poderia esquecer.
Eu estava sozinho em casa. Sentado, na sala, bem no meio do espaçoso sofá, de olhos fechados, braços estendidos para os lados, mãos espalmadas sobre as almofadas. Imóvel, tentava relaxar os músculos, a ver se conseguia dissipar, ou ao menos minorar a terrível dor de cabeça que aos poucos me consumia. Não usufruía nem do silêncio nem da paz reinante na casa. Minhas dores de cabeça eram frequentes, mas nunca com tanta intensidade. Tinha a sensação de que uma torquês esmagava-me as têmporas, enquanto sentia forte pressão na nuca.
Já me havia medicado. Pacientemente aguardava sentir o efeito do analgésico, mas o tempo se escoava e o mal estar recrudescia. Não sabia mais onde buscar forças para resistir àquele suplício.
Foi quando tudo começou.
Eu vi - ou melhor, senti - aproximando-se, pelo meu lado esquerdo, oposto à janela, que estava com as cortinas cerradas, mergulhando o ambiente em suave penumbra, eu vi - dizia - uma moça. Uma diáfana, etérea figura. Alta, loura, de cabelos lisos e bem curtos, que sorria para mim.
Não andava; deslizava. Não sei mesmo se tocava o chão, pois suas alvas vestes lhe escondiam os pés. Mas não me surpreenderia se a percebesse flutuando no ar, tal era a sua leveza e quase transparência.
Ajoelhou-se ao meu lado e cruzou as mãos sobre minhas pernas, sem deixar de me fitar um só instante. Meus olhos permaneciam fechados, mas eu sabia que ela estava ali, eu a via.
Era linda. Suavemente ergueu a mão direita e encostou-a na minha fronte. Depois, correu a mão sobre meus cabelos e pousou-a na minha nuca. Assim ficou por breve tempo. Minhas dores e todo o meu mal estar desapareceram por completo.
Então ela levantou-se lentamente. Tive a impressão de que ia sentar-se em meu colo... Mas, ao invés disso, aquela vaporosa figura começou, não sei como, pois tenho dificuldade de expressar-me nesta narrativa, a... fundir-se comigo, seus braços tomando o mesmo espaço que os meus, suas pernas mesclando-se com as minhas, seu tórax arfando compassadamente comigo. Nossas mentes eram, agora, uma só.
Sentia que não poderia falar, ainda que quisesse, mas que de alguma forma poderíamos nos comunicar. Júbilo indescritível tomou conta de mim. Eu não necessitava de explicações. Apenas havia alguém em meu corpo, além de mim. Compartilhava a minha carne e o meu sangue, que me serviam de veículo, com outro ser, que eu sabia estar ali para me ajudar. Em que, não sabia. Mas entreguei-me, por inteiro.
Cruzavam-se nossas mentes, unas agora. E, sem palavras, ela comunicava-me que 'precisávamos ir'. Para onde? Não me opus, e creio que também não conseguiria me opor, se quisesse.
São pobres as palavras para descrever o que aconteceu, então. Olhávamo-nos, sorríamos, entendíamo-nos. Éramos um só. 'Vamos ?' - ela transmitiu-me com candura. Mudamente aquiesci. E levantamo-nos, deixando o meu corpo vazio, sentado no meio do sofá da sala.
Enquanto nos afastávamos - deslizando, realmente, agora eu sabia - fomos lentamente separando-nos, um do outro. Braços e pernas, tóraxes e mentes eram novamente de seres distintos. Agora, porém, ambos etéreos, ambos quintessenciados. Ela tomou-me a mão. Ato contínuo, olhamos para trás. Lá estava a minha roupa de carne, que por tantos anos havia me servido. Os braços estendidos para os lados, as mãos espalmadas nas almofadas. Mas agora, a cabeça pendia levemente para o lado.
Não sei se o caminho que percorremos foi longo ou curto. Não sei mesmo se houve um caminho. Não me lembro. Nada vi.
Chegamos, enfim, a algum lugar. Eu não sabia onde estávamos, embora pudesse imaginar o que estava acontecendo comigo. Mas, nada perguntei. Não sei se por receio da resposta que ouviria, ou se porque me agradasse a incerteza da situação.
Era um lugar muito bonito, e havia muita gente. Andavam em todas as direções, conversavam, sorriam. Talvez a beleza estivesse mais na atmosfera do que na paisagem.
Eu podia distinguir, por intuição, entre as pessoas, os que já pertenciam àquele lugar, daqueles que ali haviam chegado, como eu, trazidos por alguém. Éramos todos nós, agora, semelhantes. Pertencíamos a um mesmo mundo e podíamos por isso, entendermo-nos sem barreiras.
Minha moça loira estava bem perto de mim, conversava com alguém. Talvez dando conta de sua recente missão. Eu, observador, aguardava.
Era um forasteiro, perscrutando o ambiente. Tinha a impressão de que todos algum dia e em algum lugar haviam também deixado o seu corpo denso, como eu o havia feito.
Eu não tinha noção do tempo. Não saberia há quantas horas ou há quantos dias já estava naquele lugar. Nem mesmo se haveria horas ou dias a serem contados. Eu era levado de um para outro aposento, parecia-me que de alguma forma muito sutil medicavam-me.
Fizeram-me saber que após um período de adaptação e de compreensão plena, eu teria também a oportunidade e a vontade de ajudar, ao invés de ser ajudado.
Ajudar... então eu não voltaria mais?
Busquei que me tirassem daquela dúvida, mas os pensamentos não tinham segredos. E veio-me a resposta. Sim, eu voltaria um dia. Mas antes que esse dia chegasse, eu teria ainda muito o que aprender.
Tive um pequeno sobressalto. Senti meu coração pulsar com mais força e um tanto mais acelerado. Meu Deus, eu queria voltar logo. Minha mulher, meus filhos, como estariam? Eu precisava voltar antes que dessem por minha falta, precisava novamente vestir a minha 'roupa'... Como poderia fazê-lo?
Meus novos amigos se entreolharam, tolerantes e pacientes. Por certo eu ainda não havia compreendido inteiramente os acontecimentos. Voltaram a confabular, por isso. Mas seus pensamentos, sua ‘linguagem’, ainda não me eram acessíveis.
Por isso, a minha solícita guia veio informar-me que eu poderia retornar. Se era o que eu queria... Ela me acompanharia. Achei curioso que minha vontade prevalecesse tão facilmente.
Então, naquela mesma hora, demo-nos novamente as mãos. Despedi-me de meus novos companheiros, que me sorriam, compreensivos, enquanto nós dois iniciávamos a viagem de volta.
Vi-me novamente em minha sala, em frente ao sofá, prestes a retomar o meu corpo. Procederia da mesma forma como procedeu a minha etérea amiga. Mas não seríamos, agora, dois seres amalgamados em um só. Eu teria apenas que reintegrar-me em minha vestimenta de carne, e... acordar.
A sala continuava mergulhava na penumbra. Já eram as primeiras sombras da noite que se avizinhava, e a casa parecia vazia. Eu estava confuso, e o que vi ainda mais me atordoou.
Não era meu, aquele corpo que repousava no sofá da sala. Agucei a visão, no meio das sombras cada vez mais espessas. Era a minha mulher que ali estava, minha querida companheira de tantos e tantos anos, para os braços de quem eu estaria voltando.
Meu Deus, só agora começava realmente a compreender... Eu havia deixado ali um vaso inerte, um veículo gasto pelo tempo, frio e imprestável, já há quanto tempo? Era impossível voltar...
Voltar... para onde?
Lentamente, medindo cada um dos meus movimentos, com receio sem saber ao certo de que, ajoelhei-me aos pés de minha companheira. Toquei-a com carinho, afaguei-lhe os cabelos. Ela fitava o vazio, com os olhos úmidos que não deixavam cair as lágrimas. Olhos de quem estava muito, muito só.
Ela não me identificou a presença.
De pé, minha etérea amiga observava a cena, com a tranquilidade de quem estava ciente do desfecho, mas deixando-me em liberdade para exercer a minha escolha. Voltei a cabeça e procurei seus olhos, a pergunta muda no ar :
Por que, meu Deus?
Se houve resposta, não cheguei a captar.
Novamente procurei a minha parceira de tantas lutas, que continuava fitando o infinito. Eu estava angustiado, queria falar com ela, dizer-lhe que não estava só, que eu estava ao seu lado... Mas nossos mundos eram agora muito diferentes...
Foi então que me veio a idéia de levá-la comigo. Como eu mesmo havia sido levado, por que não? Ficaríamos juntos, naquele lugar maravilhoso, talvez para sempre! Sorri de alegria, agradecendo-me a boa lembrança. Mas, se naquele momento eu tivesse olhado para trás, teria visto o apreensivo olhar de minha amiga...
Fibra por fibra, aos poucos fundi-me com minha companheira, como antes havia acontecido comigo. Éramos também nós dois tornando-nos um só. Eu podia agora penetrar em seus pensamentos, e senti que ela começava a registrar minha presença, sem consciência de que eu estava, na verdade, bem mais perto do que poderia imaginar.
Captei, então, toda a sua dor pela minha perda, toda a tristeza de sua solidão. Sentindo-me tão perto, suas lembranças avivaram-se. E eram muito mais nobres os seus pensamentos do que as egoístas soluções que eu havia aventado para que ficássemos juntos. Todo o seu altruísmo, que eu bem conhecia, aflorou naquele momento em que, silenciosamente, ela dava asas aos seus planos de continuidade à obra que havíamos começado juntos, que era de fazer sorrir aqueles de quem a vida exigia sacrifícios...
Um leve sorriso misturou-se às lágrimas contidas e ela murmurou baixinho, como me procurando para que eu ouvisse as suas palavras :
-Não se preocupe, meu amor, onde você estiver... Eu não vou deixar que se apague essa chama...
Percebi, acabrunhado, a extensão de meu egoísmo, querendo-a só para mim, buscando interromper uma caminhada onde ainda havia muito a fazer...
E ela, propondo-se a continuar sozinha na lida, em nome de nós dois...
Respeitoso, desfiz os laços que nos uniam e afastei-me. Admirei-a longamente, sem que ela percebesse a minha sutil presença. Pousei minhas mãos sobre as suas e beijei-lhe a face. Era o adeus... ou o até breve, quem saberia? Mas pelo menos sabia, agora, que jamais caberia a mim decidir.
Voltei-me para a minha amiga, que aguardava paciente o meu colóquio. Seu olhar era de aprovação e de orgulho pelo seu tutelado. Demo-nos as mãos, e novamente iniciamos a viagem.
Desta vez, sem volta.



         
               

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