domingo, 14 de novembro de 2010

QUARTO DE BONECA


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 Sótãos são sempre misteriosos... Ainda que nada guardem, mesmo que em seu bojo exista apenas uma eficiente caixa d’água, além do madeirame recoberto de telhas, um sótão sempre sugere algo mágico, inexplorado...
O da casa de Maria José não escapava desta regra. Mas este era um sótão diferente. Pequenino, bastante exíguo, nada era guardado lá em cima, mais por falta de espaço do que por necessidade, que esta sempre há. Diferente, porque embora não passasse de um desvão, tinha até uma janela. O arquiteto, fiel ao estilo normando da casa, havia projetado o telhado com inclinação suficiente para acúmulo de neve... muito embora nunca se tivesse tido notícia de uma nevasca em Bicas... Sem trocadilho. Bicas, Minas Gerais... Então, para compor a fachada colocou uma janela na pequena pirâmide incrustada no meio das telhas, como se fosse um quarto de boneca.
Maria José tinha seis anos, a idade das fantasias irrefreáveis. Idade em que a criança ainda vive em dois mundos paralelos.
- Mãe...
- Sim, filha?
- Sabe o quartinho de boneca? - ela o batizara assim e o resto da família acabou adotando a designação.
- Tem uma...
- Não me peça novamente para subir lá, minha fi-lha. Eu já lhe disse: não há nada lá em cima, nem quarto é. Poeira sim, há e muita.
- Não é nada disso, mamãe. Sabe o que é? Tem uma boneca lá na janela. Ela riu pra mim e me deu adeus.
- Até isso, Zezé? É tanta assim a vontade de subir naquele sótão? Você não sabe o calor que faz debaixo daquelas telhas...
- O que é sótão?
- Querida, volte a brincar com as suas bonecas. Daqui a pouco o papai chega para almoçar e não tem nada pronto.
Maria José saiu. Não ficou triste. Para ela, uma boneca lhe acenando do sótão era uma coisa normal. Provavelmente seria ali a sua casa.
Mas ela não podia ir visitá-la porque era muito quente e empoeirada. Encerrou o assunto e voltou às comidinhas.
Num outro dia, durante o jantar, os pais conversavam e obviamente Maria José não tinha o menor interesse na conversa dos dois, até que ouviu a palavra “sótão” dita pelo seu pai. Automaticamente ligou as anteninhas.
- Vou aproveitar o sábado e dar uma limpeza no sótão. Há anos ninguém sobe lá e de vez em quando é preciso dar uma olhada nas instalações e ver o estado em que estão as telhas.
- Posso ajudar você, pai?
O olhar vivo e interessado despertou curiosidade no pai, pelo oferecimento tão espontâneo. A mãe interveio:
- Noutro dia ela me disse que havia uma amiguinha dela dando tchau pela janela.
- Amiguinha não! Tinha era uma boneca, mãe! Vê! Eu nem conheço ela... Era uma bo-ne-ca!
- Uma bonequinha! Mas que beleza! - o casal trocou olhares compreensivos - Vamos fazer um trato, Zezé. Quando eu subir lá eu trago essa boneca para você, tá?
“Trazer pra mim?”- pensou ela - “Mas eu quero é ir lá fazer uma visita, é conhecer a casa dela...”
Continuou, pensativa, a tomar a sua sopinha.

No sábado seguinte, a limpeza foi feita. Exausto, o pai já vinha descendo pela escada apoiada no alçapão, com todos os apetrechos de limpeza. Desde que ele subira que Maria José estava plantada bem embaixo, na expectativa.
- Zezé, acho que a bonequinha saiu. Não encontrei ninguém lá em cima. Mas eu dei uma boa limpeza, isso eu garanto.
“Ela deve ter saído mesmo”- a imaginação de Maria José alçou vôo - “Com certeza foi fazer compras. Que idéia essa do papai, ir entrando assim na casa dos outros! Ainda mais pra fazer limpeza... Ela convidou foi a mim e não a ele...”
E voltou às brincadeiras, no jardim defronte a casa.
Estava às voltas com um desfile de modas, quando ouviu um “psiu” vindo do sótão.
Era a boneca. Grande, bonita, de olhos muito redondos e enormes cílios, cabelos louros caindo em tranças pelos ombros. Com sinais, chamava-a para a sua “casa”.
“Ela já chegou... acho que agora eu posso ir lá, porque a casa deve estar toda arrumadinha. Papai limpou tudo...”
Ato contínuo, correu pela casa a dentro e subiu as escadas. No fundo do corredor viu que o pai esquecera o alçapão aberto e a escada encostada na parede. Zezé não hesitou. Subiu e enfiou a cabecinha na escuridão. Seus olhos, acostumados à claridade, de início nada viram. Mas aos poucos foram se adaptando à penumbra silenciosa do sótão.
Então, um largo sorriso iluminou o seu rosto.
Era o quarto de boneca mais lindo que havia conhecido! Todo rosa e branco, cheio de coraçõezinhos e laços de fita, pendentes, como adorno! Tinha uma caminha dourada, a penteadeira, o armário, a mesa e as cadeiras, tudo pequenininho, muito menor que ela...
Perto da janela, a boneca lhe sorria. Seus cabelos pareciam feitos de espigas de trigo trançadas, e o vestidinho curto e quadriculado ia muito bem com as meias listradas.
- Como vai, Zezé?
- Puxa, que casa bonita você tem!
- É, eu cuido muito bem dela. Você não cuida do seu quarto também?
Zezé encabulou. Lembrou das arrumações sempre reclamadas pela mamãe e nunca feitas, e não soube mentir, frente àquela boneca de pano.
- Mais ou menos... Mas o meu quarto também é muito bonito, a mamãe sempre arruma ele.
- A mamãe, não é? Você tem que ajudar a ela, Zezé.
- Mas eu ajudo... Como é seu nome?
Era evidente a pressa em começar outro assunto. Arrumar o quarto nunca estava nos seus planos.
- Meu nome? É Emília.
- Emília... Que nome bonito! Eu quero ser sua amiga.
O sorriso de Maria José tinha a espontaneidade das crianças, honesto e verdadeiro. A boneca olhou longamente para a menina, que não conseguiu captar a ternura quase humana daquele olhar.
- Você vai ser sim, Zezé. Muito, muito minha amiga...
A menina sorriu.
A boneca continuava olhando-a, com muita ternura, enquanto Zezé, distraída, examinava os pormenores daquele quarto encantado.
- Mamãe e papai sabem que você mora aqui?
- Acho que não, porque eles nunca vem aqui em casa.
- Mas papai veio hoje de manhã aqui. Acho que ele não viu você. Sabe o que é que eu acho? Gente grande não entende nada de bonecas.
- E não entende mesmo...
Ficaram as duas fitando-se e rindo.
Foi Emília quem falou primeiro.
- Zezé...
- Que é?
- Você quer ser minha mãe?
Os olhinhos de Maria José brilharam. Um sorriso de alegria, misto com indisfarçável descrédito, a fez perguntar:
-Agora? Vamos brincar? Só quero se for para sempre!
- Nada é para sempre, Zezé. Hoje você é minha mãe, amanhã vou ser a sua, depois você de novo... Tá?
- Mas primeiro eu, tá?
A boneca ficou radiante com a proposta. Quem ali seria a mãe, quem seria a filha?
- Maria José!
- Ih, mamãe está chamando! Emília, eu tenho que ir embora!
Escorregou, rápida, pelo alçapão. Mas antes de ir enfiou de novo a cabecinha na abertura do teto e disse:
- Sabe? Não adianta eu falar com ninguém sobre a sua casa. Gente grande não vê mesmo...
- É... não fale não. Fica sendo um segredo só nosso, tá?
- Tá, tchau!

E Maria José cresceu. Cresceu romântica e sonhadora. Jamais esqueceu aquela criação de sua mente, aquele fantástico sótão que um dia se transformou (eu juro!) em um maravilhoso quarto de boneca.
Voltava lá, mesmo depois de crescida. Era ela então que mantinha o sótão limpo e bem cuidado, embora nem chegasse aos pés do “quarto da Emília”.
Um dia, para surpresa sua, identificou num livro infantil de sua irmãzinha, a sua Emília! Correu a dizer a todos que já conhecia há muito tempo aquela boneca, embora não soubesse que o livro era novo; e que já conversara com ela muitas e muitas vezes. A maneira preocupada como a olharam, quando disse aquilo, fez com que ela compreendesse logo que seria bom continuar considerando aquele assunto somente seu... e de Emília.
Ainda por muitos anos bateram longos papos, as duas, lá no sótão. Só que agora era diferente, era uma conversa sem sons, sem palavras, era um mudo diálogo entre dois seres que permutavam pensamentos e cuja afinidade crescia com o silêncio. Selaram os antigos pactos de maternidade, ainda não muito bem assimilados por Maria José, que no entanto continuava dando asas à imaginação, nas mágicas tardes que passava no quarto de boneca.
Numa dessas vezes, Emília perguntou:
- Está de pé o nosso trato?
- De você ser minha filha? Claro! Só que não sei como vai poder ser isso.
- Calma... Eu também não sei. Mas sei de outra coisa: vai ser por pouco tempo.
Maria José assustou-se :
- Por pouco tempo? Por que? Por quanto tempo?
- Só enquanto eu for sua bonequinha. Depois, vou precisar ir embora, e então mais tarde, muito mais tarde, a gente se encontra de novo.
- Mas por que? Por que tem que ser assim?
Não havia resquício de tristeza na pergunta, apenas curiosidade.
- Isso, nem eu sei. Mas um dia a gente irá saber. Quando a gente menos esperar...
Maria José aceitou o trato. O sótão era mágico, envolvia-a inteiramente. Tinha a certeza de que nada do que acontecia ali poderia estar errado. E depois, havia ainda a promessa do reencontro.

- Maria José! Será que você vai ficar aí em cima até a hora de ir para a igreja? Você precisa se vestir, minha filha!
E Maria José casou. Nunca mais foi ao sótão, embora curtisse muito aquelas lembranças, mesmo que nunca houvesse chegado a compreendê-las muito bem.
Logo nasceu-lhe uma filha, uma linda menina que recebeu o nome de... Emília, lógico. E ela só chamava Emília de “minha boneca”. Mais tarde chegou mesmo a contar para Emília toda a história do sótão, as suas conversas com a boneca e as combinações que fizera. Emília achava aquilo tudo muito “careta”. E riam juntas. “Lá vem a mamãe com as histórias do sótão”, dizia para as visitas, sempre que Maria José começava a contar suas aventuras infantis.

Mas chegou o dia em que a Emília cresceu, deixou de ser a sua bonequinha. Chegara a hora de partir, de voar mais alto, de continuar o seu caminho. Iria retomar o aprendizado, liberta dos obstáculos que conseguira transpor. Partiria ainda mais pura do que quando chegara, de tão cedo que iria, e por certo dentro em breve estaria de volta. Quem sabe haveria mesmo uma troca? Manteriam as duas o “trato” e depois ela seria a mamãe, por que não?
E Maria José estaria lá em cima, num outro quarto de boneca, acenando para ela, povoando os seus sonhos, e, quem sabe, perguntando:
- Você quer ser minha mãe?


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