sábado, 6 de novembro de 2010

A IGREJA DA COLINA





Fevereiro - 2006 - Direitos autorais garantidos


Amâncio era um cara boa vida, brincalhão, sempre mexendo com todo mundo, alegrando toda a cidadezinha, – uma cidadezinha pequena, perdida no interior de Minas Gerais – que nem parecia ter a idade que tinha.
Mas, de uns tempos pra cá, ele já não era mais o mesmo. Também, com tudo o que aconteceu, não era de se estranhar.
Desde que chegaram os homens pra construir a barragem, avisando pra todo mundo que a cidade ia ser inundada, que Amâncio viu que a história não ia dar certo. Eles iam construir ou-tra cidade, perto dali, é verdade. Mas nunca seria a mesma coisa.
Mas não ia dar certo não era só pra ele, não; pra todos, ninguém estava achando bom, imagina, trocar de cidade, ser levado lá não sei pra onde, praquelas casinhas todas iguais... Ninguém ia ter mais a sua identidade, não, ia ser tudo igual, as casas enfileiradas uma ao lado da outra...
Ih, Amâncio ficou muito triste, muito triste... Risoleta então... Eles já estavam velhos, lá com seus sessenta e não sei quantos anos, mudar de vida naquela idade... Pros moços, tudo bem, vá lá, cidade nova, vida nova, todo mundo estava feliz. Mas ele mais Risoleta e meia dúzia de velhos... não iam achar graça naquilo, entende? Não iam mesmo achar graça.
E muito menos graça achava o padre. A igreja era no alto de uma colina, pertinho da cidade. Todos os domingos tinha a missa, era aquela romaria. O pessoal subia a colina, - um aclivezinho suave, mas que bastava ser uma colina pra não ser atingida pelas águas do lago, aquele lago que ia se formar, que ia submergir toda a cidade - subiam todos, conversando, botando as modas em dia, aquilo já fazia parte da rotina dos domingos.
A igreja era de N.S. da Boa Vista, que tinha esse nome não era à toa, a vista lá de cima era uma beleza. A gente via a cidade toda. Uma construção já com seus quatrocentos anos, trezentos, sei lá, um negócio assim. Pequenina, era mais uma capela do que uma igreja. Simpática, sozinha na colina, que era toda descampada, não tinha árvore nenhuma... Era muito bom, todo domingo aquele pessoal indo pra igreja. Pra ser procissão, só faltava o andor...
Amâncio acompanhava a construção da nova cidade sempre, a umas quatro, cinco léguas dali. De vez em quando ele ia lá, conferir. Eram as casinhas, era o mercado, era a farmácia, os homens estavam construindo tudo. Construíram até uma outra igreja, mas uma igreja muito sem graça... nova, toda bonitinha, mas... sem graça...
Então, quando estava tudo mais ou menos pronto, que a firma começou a providenciar a mudança do pessoal, o padre, num domingo, na hora do sermão, falou:
- Eu não vou. Eu vou ficar aqui na minha igreja, não sei se vai ter gente pra vir aqui, não sei. Mas eu vou ficar aqui na minha igreja, eu não vou.
- Mas, seu padre, a gente precisa de um padre lá, a gente precisa de igreja na cidade nova... Igreja já tem, mas o senhor diz que não vai?
- Não vou. Tô muito velho, tenho aqui a minha casinha atrás da igreja, tenho aqui a minha horta, tenho aqui meus dois, três cabritos, não vou pra lá não.
E não foi mesmo. Mudaram-se todos, mudou-se o Amâncio mais a Risoleta, e tiveram que arranjar outro padre, que ficou lá na igrejinha nova, tudo direitinho.
Amâncio era uma tristeza só. Alem de mudar de casa a contragosto e ir pra uma casa nova que não tinha nada a ver com a sua, ainda ficou sem os domingos na igreja.
Lembrava-se tão bem... Cá em baixo, no pé da colina, tinha uma mangueira enorme, uma árvore frondosa, bonita, com uma bela de uma sombra aconchegante... Todo domingo de manhã, ele gostava de ir pra lá, com a Risoleta. Sentavam debaixo da mangueira e ficavam jogando conversa fora, até que ia chegando o pessoal pra missa. Então eles se levantavam e acompanhavam os outros, subindo a colina naquela conversa, naquele papo, e assistiam lá a missa. Na saída, a mesma coisa, depois... iam todos embora pras suas casas, cuidar do almoço.
E agora?
Como é que ia ser? Não tinha a mangueira, não tinha o padre, só tinha aquela missa sem graça, todo mundo entrava e saía, batia um papinho... As pessoas eram as mesmas, mas os velhos, principalmente, estavam muito tristes. Tinham perdido a memória toda – memória que tinha ficado debaixo da água, naquele lago bonito...
Os rapazes e as moças não estavam nem aí, iam tomar banho no lago, arranjaram até uns barquinhos, uma beleza. Mas os velhos não aceitavam aquilo.
Passaram-se uns anos, o padre continuou na igreja da colina. De vez em quando alguém ia lá, batia papo com ele, mas foi indo, foi indo, até que ninguém mais foi.
Nem mais foi ninguém lá.
Correu o boato que ele tinha morrido, umas duas ou três vezes que alguém voltou encontrou a igreja fechada, e no fim ninguém mais se interessou pela história.
Depois de algum tempo, o Amâncio ficou sem a Risoleta. Ela ficou doente - doença de tristeza, talvez, não sei,que naquele tempo acho que não tinha nenhum médico na cidade, pra diagnosticar as coisas. Foi indo, definhando, definhando... morreu. Também já estava lá com seus setenta e tantos anos, isso não era motivo, mas, juntou tudo, a Risoleta morreu.
Aí que o Amâncio ficou mais triste. Não tinha mais sua cidadezinha, não tinha mais a sua igreja, não tinha mais o seu padre... e agora a Risoleta?
Nem mais quis ir na missa da igreja nova. Em vez disso, todo domingo de manhã ele caminhava as cinco léguas até chegar na mangueira. Chegava lá, sentava debaixo dela, recostava naquele tronco amigo e ficava olhando pra igreja, lá no alto, saudoso. Ainda pensava:
- Ai, meu Deus, se pelo menos Risoleta ain-da estivesse aqui comigo...
E ficava ali, cismando... Quando era no horário de acabar a missa, voltava pra casa, pra sua casa novinha, pintadinha, e... sem graça.
E o tempo passou. Os velhos da cidade foram morrendo, foram dando lugar pros novos, e toda aquela história da cidade velha, submersa, aquilo tudo foi caindo no esquecimento.
Amâncio, no entanto, continuava firme na sua rotina. Todo domingo lá ia ele pra baixo da mangueira, ficava olhando aquela igreja, chegava quase a acompanhar uma missa, sem padre mesmo, cá de baixo. Voltava pra casa, fazia sua comidinha de domingo, morava sozinho, ele mesmo cozinhava, e ia passando o tempo.
Então, num desses domingos em que estava lá sentado debaixo da mangueira, olhando pra igreja, falou assim, falou pra si mesmo:
- Será que esse padre morreu mesmo?...- e fez uma pausa no pensamento - Mas é hoje que eu vou ver isso. Eu vou subir essa colina e vou até lá na igreja. O pessoal fala, fala, mas ninguém nunca mais foi lá.
E assim fez.
Subiu o morro, a igreja estava fechada. Rodeou, pelo lado, e quando chegou atrás da igreja, teve uma bruta de uma surpresa.
Deparou com o padre, velhinho, cuidando da horta... Ali, com a enxada na mão, a horta bem bonitinha, a casinha dele lá trás, tudo no jeito. Não conteve o espanto:
- Oi, seu padre! E não correu o boato que o senhor tinha morrido?... Que tava abandonado isso aqui tudo...
- Oi, Amâncio, cê tá bão, meu velho? Que abandonado que nada! Vem cá, deixa eu te mostrar como que tá a igreja...
Abriu-a pela porta de trás, que dava no altar. Estava toda arrumada, direitinha.
- Mas, seu padre, quem que vem aqui, seu padre, pra estar essa igreja assim toda arrumadinha desse jeito?
- Ah, Amâncio, vem muita gente, vem muita gente... Você quer ver? Agora mesmo, tá quase na hora da missa. Eu vou rezar a missa... Você vai ver como vai chegar gente. Você vai ver só.
Enquanto o padre arrumava as coisas no altar, pra rezar a missa, Amâncio ficou do lado dele, olhando a igreja. Estava vazia, ainda. Aí chegou um, chegou outro, chegou mais outro, foi chegando gente...
Amâncio olhava praquelas pessoas... e não estava entendendo nada.
- O quê que é isso, quê que essa gente toda tá fazendo aqui?
E continuava a entrar gente. Todos conhecidos dele. Até que uma hora, o padre já estava vestido pra rezar a missa, já estava no altar, quem é que entra?
Risoleta.
Amâncio olhou pra ela... olhou pro padre... e ficou com uma pergunta muda na boca.
O padre só fez sorrir pra ele. E falou:
- Vai lá ter com ela, homem... Vai ter com a tua mulher...
Amâncio olhou pra Risoleta. Ela estava sentada na última fila, sorrindo. Ele foi devagarinho, chegou perto dela, e falou:
- Risoleta! Você tá aqui? Como é que pode?
Ela não se assustou.
- Oi, Amâncio... Você veio me ver, Amâncio... Que beleza... Tô tão feliz, tô tão contente de você tá aqui me vendo...
Ele sentou do lado dela, a missa já ia começar. Então, deu a mão a ela, apertou bem aquela mãozinha enrugada, e disse assim:
- Ah, Risoleta... Eu não tô entendendo nada... Mas eu vou te dizer uma coisa: eu não vou mais sair daqui, eu não vou te deixar mais nunca... Não vou te deixar...
Ela olhou pra ele com todo o carinho que tinha... Sorriu, encostou a cabecinha branca no ombro dele, suspirou fundo, e... não disse nada. Ficou ali.
E o padre começou a rezar a missa.

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