sexta-feira, 12 de novembro de 2010

MICROMACRO

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Sentiu seu pijama frouxo, largo no corpo. Desfez o laço da calça e o refez, bem apertado. “Estou emagrecendo...” - pensou. Deitou-se. Resolveu ler um pouco, para chamar o sono. Tomou o livro nas mãos, estranhou seu peso. Teve dificuldade em erguê-lo. “O que está havendo comigo?”- perguntou-se, em voz baixa - "Sinto-me fraco, parece-me estar definhando...”
Não estava definhando. Era então o seu quarto que crescia, avolumava-se, expandindo-se aos seus olhos? Os objetos, as paredes, o teto pareciam-lhe estar se afastando, aumentando as proporções entre ele e o resto do aposento. O cadarço da calça, passados uns momentos, já pedia novo reajuste, que o quase pânico não permitiu que fosse feito. Os braços começavam a desaparecer dentro das mangas do pijama. O livro, agora muito maior, pesava-lhe nas mãos a ponto de deixá-lo cair sobre a cama. De repente os óculos rolaram-lhe do nariz.
Mas não era o seu quarto que crescia. Era ele que via seu tamanho reduzir-se, lentamente. Já tinha agora o corpo de uma criança, uma criança que lutava para se desvencilhar das roupas enormes que lhe tolhiam os movimentos.
A noite estava muito quente, mas o suor que o banhava da cabeça aos pés não era causado pela temperatura elevada e sim pelo pavor que tomou conta dele. Pensou em chamar o irmão que dormia no quarto ao lado, ou seus pais. Mas a sua regressão física era geométrica. Cada vez mais e mais rapidamente se processava. Seu tamanho já era tal, que se quisesse descer da cama, por certo não conseguiria. Poderia também gritar à vontade, que não seria ouvido. E a lâmpada da cabeceira tornara-se um sol no seu firmamento, cada vez mais distante.
Seu raciocínio, porém, não se alterara. Lúcido, embora embotado para o que seria ilógico. Em nada havia lógica. Via as transformações se processarem cada vez com mais rapidez, e sentia-se cada vez menos capacitado a tentar qualquer explicação. Só sabia que tudo em sua volta crescia, crescia, num ritmo desconcertante.
O lençol era uma vastidão branca que encostava nos limites do seu horizonte, como se fosse um campo de neve com suas monótonas ondulações, iluminado por um sol amarelo e artificial.
Estava já numa sebe de pequenos arbustos, que, sempre crescendo, começaram a parecer-se com um emaranhado de cipós brancos, altos, enormes e trançados. No constante processo de redução se viu a cavaleiro em um fio, que em crescimento vertiginoso, ou antes, em sua redução vertiginosa, agora era um espaço plano, onde ele, de pé, nada podia fazer senão esperar.
Conseguiu um arremedo de raciocínio, imaginando já estar no universo molecular. Era um mundo pastoso onde ele sentia dificuldade de locomover-se; sufocava, sentiu-se ameaçado e engolido por monstros viscosos, que sabia não serem produtos de sua imaginação. Mas mesmo essa fase do processo já ia ficando para trás, e, sentindo-se bem menor do que uma molécula, refugiou-se compulsoriamente no espaço vazio entre os átomos.
Estaria ainda no lençol ? Não sabia. O mundo era vivo à sua volta. Vivo, palpitante. Não um mundo - um universo. Um universo, preenchido por muitos e muitos mundos, esferóides como a própria Terra, que passavam flutuando em vertiginosa carreira.
Onde a solidez de sua cama, de seus lençóis, de todas as coisas que lhe eram tão familiares? Não sabia. Ele também flutuava, imponderável, embora agora muito maior do que todos aqueles corpos celestes, obedecendo a todas as leis de atração e repulsão. Nada se tocava; tudo, em todos os sentidos e direções, movimentava-se num incrível equilíbrio de movimentos e massas.
Era um Universo! Aos poucos conseguia encaixar seus parcos conhecimentos de relatividade naquela situação absurdamente irreal. Diminuía, diminuía sempre. Entretanto, estava muitas vezes maior do que a maior das galáxias daquele sistema. Também os pensamentos tomavam conta de sua mente com surpreendente velocidade, e com a mesma velocidade sendo substituídos por outros.
Tempo? Onde estava o Tempo, senhor absoluto das nossas vidas? Onde estava o Espaço, naquela mutação constante de micros e macros que se revezavam?
Imaginou todos aqueles sistemas galácticos, que não paravam também de crescer, cada um com incontáveis sistemas solares, cada sistema com seus planetas, cada planeta, quem sabe, com suas luas. E vida! Vida dentro da vida, civilizações inteiras dentro de um átomo de um lençol... E quantos átomos haveria em um lençol!
Era a constatação do Infinito, ausência de tempo e de espaço, ainda incompreensível para ele.
Já não estava menor do que aqueles mundos. A sua respiração, o pavor inicial, tudo havia passado. Ele continuava flutuando, fazendo parte daquele equilíbrio de massas, embora fosse o único corpo do imenso conjunto em constante mutação. E o seu mundo, onde estaria?
Seu tamanho já era tão insignificante quanto a influência de sua massa na atração da matéria, naquele complexo astral. Em volta de si havia um firmamento estrelado, tal como via da Terra. Agora sabia que nada era tão firme que merecesse essa denominação... Havia atravessado esse firmamento, havia sido maior do que qualquer um naqueles astros, maior do que todo o universo visível reunido; e agora ali estava, prestes, pela lógica, a orbitar um daqueles sóis.
Só então lhe veio novamente ao pensamento a idéia de tempo. Por quanto tempo estaria viajando por aquela estranha dimensão, que já não lhe causava mais mal estar, medo ou qualquer outra sensação?
Imaginava-se já em órbita de algum astro ou planeta e que esta órbita não deveria ser fixa, uma vez que vendo sua massa diminuir incessantemente, tal mundo chegaria cada vez mais perto até engoli-lo, sabe-se lá como.
Não estava errado. Começou a agigantar-se diante de seus olhos um dos corpos celestes do éter que o envolvia, e uma forte pressão começou a se exercer em todo o seu corpo. Não era desagradável. Apenas uma pressão indefinida, que aumentava gradativamente, até fazê-lo sentir-se em incontrolável queda livre.
Libertara-se da órbita que o mantinha preso e estava sendo atraído por um campo gravitacional poderoso, tal como tantas vezes fizeram as cápsulas espaciais em seu mundo. Foi a melhor comparação que lhe veio à mente.
A sensação de pressão foi sendo substituída por ligeiro mal estar e respiração ofegante. Só então percebeu que não se lembrava de ter respirado, durante toda aquela inusitada experiência... “Devo ainda estar vivo.” - pensou. E não viu nem sentiu mais nada. Perdeu os sentidos.
Voltou a si com um choque um tanto violento no que lhe pareceu ser água. E era. Salgada, fria, sob um céu estrelado, como o mar que ele conhecia tão bem. Olhou em volta. Não era, entretanto, um mar sem fim. Havia uma praia, a poucas braçadas de onde estava. Ainda atordoado, lançou-se a ela, esperando encontrar segurança no que lhe parecia terra firme.
Completamente despido, arrastando-se pela areia, examinou o local onde caíra.
Era a sua praia, de todos os dias... Era o seu bairro; as ruas, as casas, tudo ali bem na sua frente.
Sem pensar, completamente nu, correu como um louco, pelas ruas desertas - devia ser madrugada - em direção à sua casa.  Galgando a janela do seu quarto, lançou-se por ela com tamanho ímpeto que mais parecia estar sendo perseguido por todos os monstros do universo. Pôde ver então, ainda ofegante, sua cama desfeita, seu pijama sobre o lençol em desalinho, o livro aberto e o “sol artificial” ainda aceso.
Não se deitou, jogou-se na cama. Ali ficou, sem noção de tempo, de espaço, e até de família. Novamente sem capacidade para pensar. Cercado de tudo o que mais conhecia, de sua intimidade, viu-se, entretanto no maior dos vazios desde o início daquela insólita experiência, até ser vencido pelo sono, muito tempo depois.
Acordou suavemente, descansado e tranquilo, porém consciente de tudo o que se passara. Olhou o relógio: 7:30. Permitiu-se a uma divagação: estaria do seu mundo? Ouvia vozes, ruídos da rua, como todos os dias, e por certo seus familiares àquela hora estariam aguardando-o para o café da manhã. Mas seriam mesmo os seus familiares?
Repeliu, por tolices, estes pensamentos, mas não deixou de lado outros que vinham aos borbotões. Algo lhe fazia recusar a idéia de ter sido um formidável pesadelo acompanhado de uma crise sonambúlica, talvez, que houvesse culminado com um banho de mar em plena madrugada. Ao mesmo tempo não conseguia repelir a possibilidade de ter tido o seu tamanho micrometricamente reduzido até estacionar em um mundo fantasticamente igual ao seu.
Correu novamente os olhos pelo quarto. Estava tudo na mais perfeita normalidade. Sentia-se completamente impotente para concluir qualquer raciocínio, mas ainda assim reviu a hipótese do sonambulismo e resolveu adotá-la. Adotá-la, mas não aceitá-la; satisfazer-se com ela, por absoluta incapacidade de aprofundar-se em divagações.

Tomou um bom banho, livrou-se do sal que o mergulho no meio da noite lhe deixara no corpo, vestiu-se e foi juntar-se à família, que tomava a primeira refeição do dia. O incidente ia aos poucos tendendo para o esquecimento, seria apenas mais um desses sonhos absurdos que às vezes nos pregam peças fantásticas. Narrou, durante o café, o “pesadelo” que tivera, tendo o cuidado de omitir o mergulho na madrugada e a volta para casa, correndo nas ruas completamente despido...

Em seu quarto, entretanto, um pequeno detalhe lhe passou despercebido: o seu pijama, em desalinho, estava com a blusa abotoada e o laço do cadarço da calça não havia sido desfeito...

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