domingo, 17 de outubro de 2010

Até a Última Gota


Direitos autorais garantidos - 17.10.2010


- Você sabe por que eu aluguei este quarto ?
A moça, sorrindo, oferecia-lhe um cafezinho. Não disse nada, talvez esperando que ele próprio respondesse à sua pergunta.
- Eu vou acabar com a minha vida.
Ela continuou sorrindo, a xícara de café na mão.
- Vou. Vou acabar com a vida. - repetiu, como dando ênfase aos seus propósitos.
Falava a sério. Seu semblante estava contraído. Já estava ali há meia hora e nada ainda havia dito. Todo o tempo ficara na janela, olhando para fora. Agora, resolvera falar:
- Vou acabar com a vida.
Parecia buscar coragem na ênfase da repetição. Por certo, não pularia lá em baixo, pois seria um espetáculo de extremo mau gosto, finalizado com o seu corpo esborrachado no meio da calçada. E ele positivamente não era trágico, tampouco buscava o sensacional. Mas falava a sério:
- É o “esquema”. Agora faço parte do “esquema”, mas... do lado errado. Demitiram-me, ninguém precisa dos meus serviços. Manda o “esquema” que cada vez se consiga mais lucro, mais dinheiro, mais posição - porém, para as empresas, as onipotentes empresas... e não para nós, reles empregados. Por que o “esquema” me corta, quando os fabricantes da crise continuam impunes, apenas administrando-a? Eu também preciso comer!
Ele continuava o seu pseudo diálogo. A moça, essa não dizia nada. Sorria, apenas.
- A médio prazo, ainda me aguento, enquanto derreto os meus bens. Não... meu suicídio não será por falta de dinheiro. É muito mais do que isso. Será por tristeza e desalento, por ver que muitos se imaginam preocupados com a crise e com a situação geral enquanto aumentam seus próprios salários, sem sequer pensar que existem famílias que já estão deixando de comer...
Ele se inflamara tanto que não percebia que a idéia de suicídio estava passando sutilmente para segundo plano. E aquela moça, com a sua mudez e seu eterno sorriso parecia ter o poder de neutralizar os seus funestos pensamentos.
- Ainda há muita coisa a se fazer por aqui - continuou - mesmo deste lado do “esquema”. Na verdade, devo agradecer a Deus por estar deste lado, por não ter aprendido a pactuar com os que estão do outro lado. Dependerá de mim sobreviver ou não fora do “esquema”, reavaliando os valores convencionados e substituindo-os pelas verdadeiras necessidades de uma vida tão singela e modesta quanto pura e livre dos modismos pré-fabricados. Pensando bem, o homem é fabricante de suas próprias necessidades, e eu não preciso acompanhar este cordeirismo...
Aos poucos, sem perceber, afugentava para sempre a lúgubre idéia de utilizar o quarto do hotel como câmara mortuária. Já lamentava até mesmo a quantia paga antecipadamente pela diária. “Fará falta lá em casa”, pensava, enquanto novos planos invadiam seus pensamentos.
- Sabe de uma coisa? - disse, dirigindo-se pela última vez à moça - Eu vou é para casa. Obrigado, meu anjo, pelos bons fluidos que você passou para mim...

Eram seis horas da tarde. Olhou demoradamente para o céu. Parecia estar presenciando as cores cambiantes do crepúsculo pela primeira vez... Depois saiu, fechando a porta atrás de si.
E lá fora, do outro lado da rua, fios de néon começaram a acender-se, marcando os contornos do rosto e da mão da moça, que continuava oferecendo o seu cafezinho, sorridente... Por último, acendeu-se o “slogan”:
“Bom até a última gota”...
As inspirações divinas vêm, às vezes, por caminhos inimagináveis...

Um comentário:

  1. Sempre te disse que estes contos dariam belos "Casos Especiais", episódios de quinze minutos, meia hora e com custo bem baixo, como neste caso. Que venha a Globo!

    ResponderExcluir