domingo, 24 de outubro de 2010

CARTA A UM DESCRENTE




Meu amigo

Recebi a sua carta. É bom saber que vocês estão bem. Embora nem todas as suas palavras estejam envoltas pelo ânimo, percebe-se que você continua a vencer - e bem - esta atual etapa da sua vida. Sei que você não pensa assim, e que se considera um perdedor. Não faz mal. Chegará o dia em que iremos conversar do mesmo lado do muro.

Você sabe, raramente se faz na vida o que se quer. Quase nunca trabalhamos no que queremos e o serviço nunca nos satisfaz. Às vezes conseguimos tal coisa, mas por tempo determinado. E quando conseguimos até mesmo dilatar esse tempo, tornando-o toda a nossa vida, envolvemo-nos com tantos outros problemas que sequer percebemos que estamos satisfeitos... O que é bom passa despercebido. Por que? Porque no contexto da Vida - com maiúscula - isto está certo. Se estamos aqui, neste planeta, é porque, por enquanto, precisamos estar neste lugar onde a felicidade plena não existe, onde o que existe são momentos de felicidade, que devem ser usufruídos enquanto durarem.

Não, meu caro, não me considere um pessimista. Veja se não tenho razão: onde trabalho, por exemplo - o clima é bom, a paisagem não é hostil, não há poluição, o ambiente de trabalho é ótimo, confortável, as refeições são de boa qualidade. Mas... parece uma prisão sem grades. Vestimo-nos todos da mesma cor, vamos ao almoço à mesma hora, nada temos a fazer após a refeição e gastamos o restante do tempo de que dispomos debruçados sobre o jornal do dia na própria mesa de trabalho. O jornal é o único contato com o mundo, das oito da manhã às cinco da tarde. Distantes que estamos muitos quilômetros da cidade, de suas vitrines, de seu comércio, de seus bancos, a calma e o silêncio daqui reforçam-nos, a toda hora, a diferença marcante entre nós e o burburinho e a agitação do centro urbano.

Mas... quantas vezes já reneguei este mesmo burburinho, o calor, a condução cheia, os elevadores demorados, os restaurantes cheios e caros, as filas dos bancos e o ruído ensurdecedor do transito que polui - enfim, quantas vezes reneguei a liberdade de ir e vir! No entanto, foi necessário que eu a perdesse para aquilatar o valor destas pequeninas coisas. Você sabe, nada melhor do que uma extração de dente para que se dê importância à mastigação temporariamente perdida...

E o raciocínio é o mesmo, para as partes ou para o todo. E o todo é a Vida infinita, que é a sucessão destes fugazes “minutos” de nossa Vida, aos quais chamamos de vida, do nascimento à morte; como se um curto período de oitenta e poucos anos fosse tudo o que existisse, e nada mais.
Se hoje, por estar aqui trabalhando neste “presídio”, consigo entender a liberdade, a qual não tinha valor para mim enquanto usufruía dela, faço o mesmo raciocínio para compreender o que estarei eu fazendo aqui na Terra, cercado de todo o conforto que esta maravilhosa Natureza me dá, porém cerceado em meus prazeres e em minha felicidade, que somente virão quando eu conseguir expurgar da minha mente - imortal que sou - todos os meus deslizes acumulados, adquirindo a capacidade de valorizar o meu próximo mundo, a minha próxima “vivenda sideral”, seja ela melhor ou pior do que esta aqui.

Certamente um pouco melhor há de ser, daqui a não sei quantas vidas. A atmosfera de cada mundo é o reflexo das emanações das mentes que o povoam - como nos nossos ambientes aqui na Terra.
Tanto um “inferninho” do nosso sub-mundo quanto um teatro de ópera refinado são construídos com os mesmos materiais. Mas cada um deles tem entranhado, no chão, nas paredes e no teto, os resquícios das emanações mentais dos seus frequentadores, que até se sentem mal quando por acaso trocam os lugares que frequentam.

Ao “todo”, novamente: por que não há de acontecer o mesmo com os mundos, que andam por aí girando em número infinito? Cada um deles reflete a mentalidade dominante de seus habitantes. Mas esta mentalidade há de sempre influir na formação dos fluidos que envolvem seu mundo, para melhor ou para pior, dependendo do seu estado evolutivo. Por isso, repito, quando eu merecer deixar de voltar para aqui, será porque deverei estar a caminho de outras vidas em um mundo melhor do que este. (Espero...) Ninguém regride. Ninguém dá para trás. Mesmo que durante toda uma vida tenha-se a impressão de regressão, é um engano. Cada uma delas é um degrau na escada infinita da ascensão. E se acontece descermos um degrau, será para aprendermos a subir os próximos dez ou vinte...

E esta escada, para onde vai? Não sei. Ainda não faz parte do nosso entendimento. O que sei é que há uma compulsão que nos aponta sempre o topo invisível, ainda que, às vezes, levantemos pela manhã achando que nada vale a pena e perguntando-nos o que estamos fazendo por aqui.

Sei que você não comunga comigo, quando se trata de entender a Vida. É pena, porque as coisas ficam mais claras, nós mesmos nos respondemos quando temos dúvidas, nós mesmos nos empurramos para a frente e para o alto. Nossa estada aqui “por baixo” é provisória, a verdadeira Vida está no mundo espiritual. Esta compreensão terá que vir de dentro para fora, nada se aprende nos livros além de rudimentos a serem trabalhados. Como na matemática: as quatro operações nos abrem as portas - o resto é raciocínio.
Como num computador: quantos milagres se conseguem apenas com o 1 e com o zero!

A compreensão das coisas torna a vida mais fácil, tudo passa a ter uma razão de ser, sejam bons ou ruins os acontecimentos. E a gente deixa de ter a necessidade de pensar assim: “eu não mereço tudo isso por que estou passando, nada fiz...”, porque passa a entender o que é a perfeição absoluta ; e que, se se está “passando” por alguma situação ruim, será porque não só a merece, como ela é necessária, e até mesmo salutar. O termo é corretíssimo: está passando, não volta mais, está de saída.

Vamos tocar para a frente, meu caro amigo. Algum dia estaremos do mesmo lado do muro. Se não for neste “minuto” da Vida que estamos atravessando, será no próximo. Ou no intervalo entre dois “minutos”...

Um grande abraço do seu amigo.
                                                            M.

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